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OS
NAVIOS DO INFANTE
Artigo publicado no Diário de
Notícias de 29 de Agosto de 1960
A
mera construção do barco antigo de pequeno porte, prescinde como vemos, e com
vantagem, de mais saber técnico do que as regres tradicionais que os mestres,
os carpinteiros de machado e os calafates herdaram de seus pais e avós e trazem
no sangue.
O
rigor da matemática é aqui tão descabido como seria a colaboração de um
engenheiro de automóveis na mecânica de um carro de bois.
Foi
assim que, declinando, como me competia qualquer responsabilidade quanto às
condições de equilíbrio dos navios, abertamente confiava na velha prática do
construtor, que logo à vista dos desenhos os achou bons. E não me admirei que
ele, impaciente com a demora da fiscalização oficial, experimentasse a
primeira nau com 70 pessoas a bordo, e depois outra com cerca de 140. Com todas
essas pessoas encostados a uma banda, os navios apenas acusaram uma pequena
inclinação.
Para
um barco de grande porte o caso é diferente e, com muito mais razão, nunca nos
poderíamos responsabilizar pela estabilidade de um grande navio verdadeiro. Foi
o que fizemos com a «Nau Portugal» e talvez ainda valha a pena falar nisso.
A
bela iniciativa de Leitão de Bairros encontrou-me em Paris, onde estudava
outras coisas. Ali, por indicação de Quirino da Fonseca, a quem o grande La Roërie
escrevia respeitosamente tratando-o por «mon maitre et ami» procurei
saber a opinião deste sobre o caso. Aconselhou-nos, como ponto de partida, um
plano inglês, visto não haver a seguir à Restauração (época escolhida
para a nau), originalidade portuguesa na arte de construir navios, embora
houvesse talvez alguns caracteres especiais na sua ornamentação.
La
Roërie estava muito ao par dos problemas histórico-navais desde que Quirino
lhe enviara. os seus livros (ele lia o português), apesar de na obra do sábio
francês as referências a Portugal serem poucas, embora sempre agradáveis aos
nossos sentimentos.
Essa
deficiência dera-se porque as repetidas solicitações de elementos dirigidas
por La Roërie às nossas instituições oficiais para isso indicadas não
obtiveram qualquer resposta.
O
comandante Quirino concordou com a sugestão trazida, e nessa base estabeleceu,
com a sua indiscutível competência e com os necessários cálculos, um plano
de formas que o construtor Manuel Mónica (o mesmo de quem um jornal americano
disse fazer melhores barcos americanos do que os próprios americanos),
executou com a sua mestria habitual.
Mas
a nau tombou logo depois de lançada à água. Porquê? Não se podendo duvidar
da competência técnica do comandante Quirino, nem da do construtor,
claro que as suspeitas... caíram sobre os planos arqueológicos-artísticos,
embora o seu autor se confinasse a estudos independentes dos cálculos de
estabilidade e os seus projectos tenham sido plenamente aceites por aqueles dois
técnicos!
Era
necessário esclarecer o caso, e Leitão de Barros, interessado bambém, porque
além da direcção artística geral, era a alma e o motor da iniciativa,
confiou ao Sr. Engenheiro construtor naval Lemos Viana, inspector-chefe das
construções navais do Ministério da Marinha, a análise do navio quanto às
suas possibilidades náuticas.
Das
conclusões a que chegou este técnico superior, no final do seu minucioso
estudo, extraio as seguintes palavras: «O navio pode fazer a sua entrada nos
portos, todo arvorado e com o seu velame completo, nas condições de tempo
definidas no relatório. Os acidentes sofridos até agora nada têm que
ver com a sua construção. A «Nau Portugal» é uma bela peça, etc. etc., e
quanto mais a estudo mais admirável me parece. Em minha opinião, este navio
invulgar, nunca deverá deixar de ser aquilo que é, qualquer que seja a despesa
a fazer para a sua manutenção...».
Mas
a nau desventurada, afinal deixou de ser aquilo que era; e, vencida pelo
temporal dos homens, sulcou ainda os mares, como navio de carga, durante 12 anos
e sem um acidente. E ninguém mais a reconheceu! Mudou apenas de nome.
O barco é uma das mais belas criações utilitárias do homem e para muitos, a mais bela. A sua forma, afinada, depurada, provada pela experiência, é eminentemente funcional, aproxime-se ela das formas dos peixes ou siga mais as das aves aquáticas. Será por tudo isso que a sua beleza é tão pura.
O
barco deve ser amado por ele mesmo, mais ainda num país «todo ele marítimo»
como o nosso, e também pelo que nele se retracta da vida milenária dos homens,
com uma perenidade difícil de conceber-se através das máquinas modernas ainda
sem tradição. Com esse amor, a arqueologia naval é uma coisa viva e não
fossilizante. Antes de ser ocupação de cientistas medidores é campo de
artistas, mais afeitos, por natureza, às subtilezas das linhas e das superfícies
do que o observador comum, mesmo com grande erudição histórica, naval ou
matemática. A ideia contrária, do predomínio do pormenor sobre o conjunto de
pormenores, ideia ainda reinante nalguns lados, explica a existência em muitos
museus navais (não é só no de Lisboa) de modelos que podem ter todas as
coisas que devem ter, mas não as têm nas proporções e na expressão devidas
e por isso soam a falso.
O
arqueólogo naval, particularmente no capítulo da forma dos cascos, pode não
ser marinheiro nem construtor; basta-lhe que os possa entender, na escala em que
esse conhecimento interessa à sua formação humanística e artística, o mesmo
é dizer universalista (e universitária, sem mal nenhum), que lhe é indispensável,
e a uma paixão que não se inventa nem nunca poderá ser profissional. Alguns
queridos amigos, velhos companheiros do liceu e das matemáticas da Faculdade, e
agora em altos postos da Armada, dizem-me estarem absolutamente fora dos
problemas do barco antigo, que em nada lhes interessam. Têm outros violinos de
Ingres.
Acusam-se
em geral os artistas de fantasiosos e tem-se mais confiança em provas fotográficas
do que em desenhos ou pinturas documentais. Mas será legítimo
duvidar-se da concordância universal tantas vezes verificada nos desenhos de vários
artistas da mesma época? Será lógico duvidar-se da objectividade de pinturas
como as de Rafael, Carpaccio, Van der Welde, Breughel, etc., que nos seus
quadros teriam reproduzido tudo certo, das pessoas aos monumentos, alguns
existentes ainda, e só errariam nos barcos? Certamente há pormenores que não
se entendem bem em pequenos desenhos muito antigos porque são perfeitamente ilógicos
aos olhos dum construtor actual. Mas o modelo de Mataró, atrás citado, feito
em 1450 «certamente por mãos marinheiras», vem explicar alguns desses
pormenores ilógicos e a dar razão aos desenhadores. O barco antigo, acima da
linha de água, está quase sempre carregado de «erros» construtivos. Eram
assim mesmo e este tema levar-nos-ia longe.
Na
Exposição do Mundo Português viu-se a carta de Juan de la Cosa, do começo do
séc. XVI, onde aparecem algumas das primeiras representações conhecidas de
caravelas portuguesas, e uma de Mateus Prunes, de 1563, onde aparece uma
caravela de três mastros, um deles arvorando uma vela altíssima.
Não
podemos saber rigorosamente como era a caravela henriquina e por isso declinei o
convite que me fizeram para reconstituir, em Lisboa, uma «rigorosa». Ninguém
sabe. Todavia, o que se afirma comummente é que devemos desconfiar dos desenhos
antigos porque neles se exagerava muito a guinda e o tosamento dos barcos, ou
sejam a altura das velas e a curvatura dos cascos.
Por
isso um meu amigo, entendido técnico, procurava demonstrar-me a injusteza de
certo modelo de caravela, exibido na Exposição de Belém em 1940, de grosso
casco e pequenas velas. Mas ao sairmos do pavilhão onde estava o modelo os meus
olhos deslumbrados viram correr, sobre as águas agitadas do Tejo. com vento
muito fresco, a vela esguia duma canoa que demandava a barra. Apontei-a ao meu
amigo. Era a ressurreição da caravela desenhada na carta! As razões que ele
me deu para me provar que a caravela não podia ser assim, têm um adjectivo que
eu acho delicioso; eram perfunctórias.
Numas
águas como as do século XVI, sob um céu como o do século XVI, um barco de
madeira como os desse tempo, com vela semelhante às de então, «nas proporções
que viramos pouco antes no desenho de Mateus Prunes», tripulados por homens
como os daqueles anos, a fazer o que eles faziam, pelos mesmos meios, e com os
mesmos fins, era mentira. A
congeminação académica que se corporizara na múmia exposta era a verdade.
Não
se pode vencer esta cegueira.
A
costa portuguesa, tendo sido, no decorrer de dezenas de séculos, ponto de
confluência equilibrada de duas correntes de civilização, a do Norte e a do
Mediterrâneo, e depois a do Extremo Oriente, arquivou nos seus barcos o melhor
do que lhe veio de todas aquelas origens. Dizia Quirino da Fonseca ser a costa
portuguesa a mais rica de tipos de barcos de pesca em toda a Europa, e eu
creio-o bem. Muitos desses tipos ligaram-se, pouco ou muito, mas outros
mantiveram vida isolada.
É
curioso ver, ainda agora, como os mestres de machado, alguns deles quase
iletrados, talham e dispõem as madeiras com formas consagradas mas nunca
repetidas com rigor matemático, e sem planos ou papéis. E como, ao lado de
barcos como o rabelo e o rabão, de que fazem primeiro o fundo, depois o costado
e só no fim as cavernas, constróem outros, começando peia quilha e pelas
cavernas e terminando pelo forro. Como conclusão impressiona fundamente ver no
Douro um barco rabão, de claras formas orientais, todo ele em curvas
maravilhosas, subtis e moles, encostado a uma barca poveira, de linhas hirtas e
secas, de manifesta influência nórdica. É como se víssemos um árabe ao lado
dum saxão. Isto passa-se em Portugal e não se passa já nas costas de Espanha
ou da França ou da Itália, pelo menos no que eu conheço.
O
conhecido modelo de prata mesopotâmico de Ur, de há uns 8000 anos e agora num
museu inglês, é perfeitamente semelhante aos barcos de mar da Costa Nova ou da
Torreira. Não sabemos de outros iguais nas costas europeias. Medite-se no que
isto quer dizer.
A
muleta de pesca era um barco inconfundível. Uma canoa da picada, um batel da
Nazaré, ainda há pouco eram barcos vivos, genuinamente portugueses, tripulados
por portugueses e tão ligadas à caravela que quase a podiam representar agora.
Mas «eram»; com infinita pena o dizemos. Eram, porque todos estes
barcos maravilhosos desapareceram em nossos dias e sem deixar rasto, diante do
motor vitorioso.
Que
nos fica a lembra-los? No nosso Museu de Marinha não conheço, neste sector,
mais do que umas reduzidas miniaturas sem categoria para um museu e para a sua
missão.
Em S. Jacinto o cadáver dum barco corno o de Ur embranquece ao sol e à brisa, no areal salino. Ninguém o quer. Pela costa acima dizem-me haver apenas catorze barcos daqueles, com uma vida triste, e que não serão substituídos, porque a sardinha fugiu, a xávega é penosa e não compensa. Irão fazer companhia ao de S. Jacinto. E depois? Depois, como em Setúbal, Sesimbra e Nazaré, nada.
Entretanto,
segundo sei pelos Drs. Alberto Souto e Vale Guimarães, por sugestão dum pintor
espanhol, um museu da América comprou cá e levou para lá um daqueles barcos
incomparáveis, «os mais belos do mundo».
Assim,
quando os nossos filhos quiserem saber como eram os nossos barcos, já sabem,
pelo menos, onde podem ir ver um deles.
No
lindo cenário das Ataracenas, Barcelona mostra alguns dos seus barcos de pesca
reais, dos que andaram no mar.
A
Holanda dispensa por ora esse museu. Os seus verdadeiros museus desses barcos são
os canais, com inúmeras embarcações antigas, amorosamente conservadas e
servindo de «casas de campo itinerantes».
Entre
nós vimos há pouco num jornal do Porto que uma família de Povoa de Varzim, de
apelido Fome Negra, oferecera ao museu da sua terra uma barca local, com todos
os seus pertences, vendo o desaparecer absoluto dum tipo secular e famoso. Mas
este lindo gesto ficará, talvez, isolado.
As
nossas instâncias oficiais ainda não deram um passo, que seja do nosso
conhecimento, no sentido de salvar algumas daquelas espécies únicas e
moribundas. Não temos o direito de nos queixar da incúria dos nossos avós
quando numa viragem da civilização tão evidente e fulgurante como aquela a
que assistimos deixamos perder os tesouros que eles nos deixaram — e
irremediavelmente.
Faz-nos
falta um museu constituído por exemplares reais dos nossos barcos tão
variados, abrigados em telheiros (o barco sufoca entre paredes) onde a forma
total das querenas, insuspeitada por muitos, pudesse ser admirada como as
estatuas antigas. O seu custo seria irrisório e o seu valor, como propaganda
portuguesa, como interesse turístico e cultural, seria no futuro de grandeza
imprevisível agora. Artistas novos, de preferencia escultores, deveriam estudar
e ordenar as peças.
Ver-se-ia
então como a beleza das formas de alguns destes barcos suportava com vantagem o
confronto com os lindíssimos bergantins que, felizmente, se conservam, se nos
abstrairmos da riqueza ornamental destes.
Esse
museu faz falta a Portugal. Anexo ao Museu de Marinha ou separado, nas condições
do Museu dos Coches, que também nada tem que ver com o Ministério das Comunicações.
Um
barco a motor de agora pode ser belíssimo nas linhas sóbrias que a decoração
moderna explora; estão nesse caso de acordo a maquina e a concepção estética
com ela nascida ou pelo menos sua contemporânea.
Repare-se,
entretanto, na fealdade das traineiras, alheias de todo àquelas concepções
estéticas «e feitas precisamente pelos mesmos homens» que fazem os
maravilhosos saveiros, varinos, moliceiros, etc., e compreender-se-á o
desacordo entre o Diesel e os velhos barcos à vela ou a remos. Aquele vai
vencer tudo, fatal como o destino. Acudamos nós a estes, enquanto é tempo:
enquanto temos alguns a conservar e temos quem saiba repetir os que faltam.
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