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Pioneirismo que vira pó

Acervo da Multifilmes, histórica produtora do italiano Mario  Civelli, está apodrecendo em São Paulo

Do primeiro filme colorido brasileiro, Destino em apuros, estrelado por Paulo Autran, só resta um trailer e algumas fotos. Imagens raras do início das carreiras de Eva Wilma, Ilka Soares, Herval Rossano, Ítalo Rossi e tantos outros também correm o risco de virar pó. Oitenta por cento do valioso acervo da Multifilmes, companhia fundada pelo produtor e cineasta italiano Mario Civelli em Mairiporã (SP) na década de 50, está se deteriorando nos arquivos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A recuperação de cada um desses filmes custa, em média, R$ 50 mil reais, verba que a publicitária Patricia Civelli, filha de Mario, vem tentando obter há dois anos, na iniciativa privada, através da Lei Rouanet.

Só que Patricia ainda não conseguiu um tostão, e enquanto isso ela vem recebendo relatórios aterrorizantes da Cinemateca Brasileira, que não possui verba própria para restauração. "Eles me mandam faxes alertando sobre o estado das cópias. Cada dia que passa elas vão se deteriorando ainda mais", lamenta a herdeira do acervo. Em estado crítico estão filmes como O craque, de 1953, o primeiro longa de ficção sobre futebol no país, estrelado por Eva Wilma e Carlos Alberto e com participação dos jogadores do Corinthians (incluindo o goleiro campeão do mundo, Gilmar). O roteiro é de Alberto Dines e a música, do maestro Guerra Peixe. "A cópia está podre. Precisa ser restaurada com urgência, quadro a quadro", diz Patrícia.

Na mesma situação encontra-se O homem dos papagaios, realizado também em 1953, o primeiro papel de destaque da carreira de Eva Wilma, que vinha de uma ponta em Uma pulga na balança, produzido pela Vera Cruz. O elenco tinha ainda Procópio Ferreira e Hélio Souto, e quem despontava como galã era um jovem aventureiro de vinte e poucos anos chamado Herval Rossano. "Em 1951 eu tinha ido fazer teste para o tal filme colorido que iria ser rodado no interior de São Paulo, mas o diretor de fotografia, um americano chamado H.B. Korrel, dizia que eu tinha os olhos muito fundos. E o maquiador implicou com meu nariz", lembra Herval. O faro de Mario Civelli, no entanto, falou mais alto. "Ele gostou de mim e disse para eu voltar dois anos depois. Peguei uma grana emprestada para o ônibus com meu amigo Antônio Olinto e fui. O Civelli me ofereceu 2,5 mil cruzeiros para me contratar. Não tinha um centavo nem pra comer, mas, com ar de sério, fiz uma contraproposta de 5 mil. Ele acabou topando", diverte-se Herval, hoje diretor da Rede Globo. Civelli já havia descoberto no primeiro filme da companhia, Modelo 19, o galã Luigi Picchi, um imigrante italiano que havia estudado teatro em Florença e trabalhava como pintor de paredes.

O homem dos papagaios, Modelo 19 e outras relíquias da Multifilmes têm sido exibidos esporadicamente no Canal Brasil, mas Patricia ressalta a importância da preservação do acervo em película. "É a memória cultural do país que está em jogo. É inacreditável o descaso por parte do governo com a preservação de nossa história. Se essas cópias não forem restauradas logo, nem a telecinagem será possível".

Por preservação da memória, entenda-se também as imagens das florestas brasileiras registradas por Mario Civelli nos documentários O grande desconhecido e Rastros na selva, rodados em 1956 e 1958, depois que a Multifilmes fechou as portas. Foi a primeira vez que uma equipe de longa-metragem profissional percorreu as matas virgens de Goiás, Mato Grosso, Bahia e Alagoas, mostrando costumes e rituais dos nossos índios e documentando povoados que já não existem mais. O grande desconhecido acabou premiado como melhor documentário no tradicional Festival Internacional de Karlovy Wari, na Tchecoslováquia. Rastros na selva, por sua vez, registrou uma expedição que percorreu o Brasil para capturar os primeiros animais que iriam para o zoológico de São Paulo, cuja inauguração contou com a presença de ilustres amigos italianos de Civelli, como a atriz Giulietta Massina e o cineasta Mario Monicelli.

O trabalho de Civelli na selva despertou o interesse do Marechal Rondon. A partir dali nasceu uma sólida amizade e, após a morte de Rondon, em 1958, Civelli dedicou três décadas a pesquisar e reunir material sobre o desbravador. Parte desse acervo é a base para um longa que será dirigido por Roberto farias (leia ao lado).

As aventuras de Civelli estão captadas também em mais de 4 mil fotografias, que Patricia pretende restaurar junto com os filmes. Ela sonha ainda em produzir um documentário para a TV sobre a Multifilmes e a Maristela, as duas companhias fundadas pelo pai.

Marechal Rondon do cinema

A relação aventureira com o cinema sempre marcou a vida de Mario Civelli. Filho de um generalíssimo do estado-maior de Mussolini, ele era contrário ao fascismo, e deixou a Itália disfarçado de padre para integrar a equipe da força americana que produzia documentários de guerra para os aliados. Depois que a paz foi selada, voltou ao seu país -onde já havia trabalhado com as promessas Federico Fellini, Mario Monicceli e Luchino Visconti. Desembarcou no Brasil em 1946, contratado pelo produtor Dino de Laurentis para pesquisar locações para um filme sobre Anita Garibaldi que seria rodado no Brasil. O filme não foi adiante, mas o país encantou Civelli, que resolveu ficar.

Seguindo os passos do conterrâneo Franco Zampari, fundador da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, Mario Civelli acreditou na possibilidade de se fazer cinema comercial no Brasil. Depois de co-dirigir com Tito Batini o longa Luar do sertão, fundou em agosto de 1950 a Maristela Filmes, de onde saiu dois anos depois para criar a Multifilmes. Estabeleceu-se na cidade paulista de Mairiporã, construiu um estúdio que ocupou uma área de 5 mil metros quadrados e chegou a ter 200 empregados. Em apenas dois anos, chegou a produzir nove filmes, que não trouxeram o retorno esperado. "A companhia sofreu com a política de distribuição, que boicotava os filmes nacionais. Ficava difícil manter um staff daquele tamanho", avalia Patrícia, filha de Civelli com sua única esposa, a crítica de cinema Pola Vartuk. Bonachão, lembrava Orson Welles pelo tipo físico e o espírito empreendedor. "Civelli era um aventureiro. Gostava de ganhar dinheiro, mas tinha uma boa dose de romantismo", lembra a atriz Ilka Soares, que chegou a morar em sua casa durante as filmagens de Modelo 19. "Ele era um grande negociante", ressalta Herval Rosssano.

Todo o dinheiro que ganhava, no entanto, era reinvestido em seus projetos pessoais. Como distribuidor, apostou nos primeiros filmes do Cinema Novo, como Barravento, de Glauber Rocha, e Cidade ameaçada, de Roberto Faria. O grande projeto de sua vida, no entanto, não chegou a sair do papel: uma minissérie de TV e um longa-metragem biográfico sobre o Marechal Rondon, de quem reuniu um acervo gigantesco. Roberto Faria se interessou por um dos episódios pesquisados por Civelli - a visita do ex-presidente americano Theodore Roosevelt ao Brasil e seu encontro com Rondon - e pretende fazer um longa-metragem de ficção sobre o assunto. Depois de organizar uma grandiosa exposição sobre Rondon em Brasília, Mario adoeceu e faleceu, aos 70 anos, em 1993, deixando para trás uma biografia tão fascinante quanto a de seu personagem preferido.

Fonte: Marcelo Janot - Jornal do Brasil -  07/11/99 (www.jb.com.br)

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