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INDÚSTRIA CULTURAL

Entre o céu e o inferno

No ano em que alcança o maior público na década, o cinema brasileiro sofre queda nos investimentos e pode ter seu futuro comprometido


O cinema brasileiro anda com o semblante preocupado. Ficou de cara amarrada quando parecia estar sorrindo. A produção nacional está em nova turbulência sete meses depois de competir por um Oscar com Central do Brasil. Tudo parecia festa naquele momento. Mas o cenário, agora, é outro. Orfeu foi escolhido no fim de outubro para ser o novo candidato brasileiro a uma vaga para disputar o prêmio. Mas não há razão para comemorar. Nuvens negras ameaçam tirar o colorido de um ano de progressos nas bilheterias. Com um total de 4 milhões de espectadores e quase 8% dos ingressos vendidos no país (contra 5% em 1998), o cinema brasileiro teve o melhor resultado de público na década. O movimento de produção, em contrapartida, despencou em queda livre. Falta, como sempre, dinheiro. Sobram idéias para consegui-lo.

Produtores e cineastas entram em colapso só de pensar na última grande crise do setor. O fim dos mecanismos estatais de produção/distribuição em 1990, quando o presidente Fernando Collor acabou com a Embrafilme, varreu das telas e dos sets o cinema nacional. Em conseqüência, apenas três filmes estrearam em 1992 - um recorde negativo. Graças às leis de incentivo e ao apoio dos governos que se seguiram a Collor (Itamar e FH), a produção foi retomada, resultando em 105 estréias desde 1995. Em escala progressiva, o público foi aumentando. O êxito, porém, é relativo. A soma dos espectadores de apenas três filmes responde por 87,5% do público em 1999: Simão - O Fantasma Trapalhão, com Renato Aragão (1,6 milhão de espectadores), Orfeu, de Cacá Diegues (960 mil), e Zoando na TV, com Angélica (900 mil). Todos tiveram amplo esquema de divulgação. São exceções. A maioria dos lançamentos entra e sai de cartaz sem ninguém reparar.

No terreno da produção, mesmo com 20 títulos prontos para estrear, a situação está cinza. Mais de 60 projetos, com orçamentos quase fechados, ainda não saíram do papel. Também existem mais de 70 produções já filmadas que não têm dinheiro para o acabamento final. Poucas empresas estão usando as leis de incentivos fiscais através das quais podem destinar até R$ 3 milhões por ano ao cinema nacional - ou 3% dos impostos devidos. O volume captado caiu de R$ 112 milhões em 1997 para R$ 71 milhões em 1998 (soma da Lei do Audiovisual com a Lei Rouanet). Este ano, segundo a Secretaria do Audiovisual, está em R$ 14 milhões. A retração econômica é uma das causas da queda. Outra foi a privatização das estatais de telecomunicações, as principais investidoras do setor.

Embora sejam necessárias para manter a produção acesa, as leis de incentivo não são alvo só de elogios. Delegam às empresas a decisão pela escolha dos filmes a ser feitos e tendem a beneficiar projetos com apelo de marketing para os investidores. Temas espinhosos, dizem os cineastas, sofrem rejeição. "Muitos projetos são escolhidos já em função da facilidade de captar recursos", afirma José Henrique Fonseca, diretor de um dos episódios de Traição.epoca.gif (12311 bytes) "Um filme barra-pesada como Trainspotting, com cenas de consumo de drogas, não conseguiria financiamento aqui. É censura econômica." Isso tem impedido o cinema nacional de abordar com maior freqüência e intensidade as questões sociais do país. O universo enfocado, em geral, é o da classe média. Filmes sobre setores desfavorecidos são minoria. Para impedir nova estagnação do setor, a Secretaria do Audiovisual acionou o alarme. Criou um fundo de financiamento com o BNDES, que conta com um caixa de R$ 80 milhões para ser emprestados para produção, finalização, distribuição e exibição de filmes (incluindo reformas de cinema).

O governo também está propondo ao Congresso mudanças na Lei do Audiovisual, o principal mecanismo de incentivo fiscal do segmento. A nova linha de financiamento, contudo, ainda é vista com receio. Apenas seis projetos estão inscritos. Os juros anuais são de 17,5% e o prazo de pagamento é de três anos. "Está sobrando dinheiro e faltando projeto", ironiza José Álvaro Moisés, secretário do Audiovisual. É fato. Muitos produtores têm receio de tomar dinheiro emprestado, não conseguir o retorno do investimento nas bilheterias e ficar sem condições de pagar o empréstimo. O risco é maior para filmes de pouco apelo comercial. E nem por isso de menor valor artístico.

"Não há mercado para recuperar o dinheiro do financiamento do BNDES", garante a produtora Sara Silveira, especializada em fazer obras baratas e de relevância cultural, como A Hora Mágica e Dois Córregos. Apostar na bilheteria, afinal, é operação de risco. Os produtores ficam em média com 35% da bilheteria. Para recuperar um investimento de R$ 2 milhões, orçamento médio de um longa-metragem, é preciso ter um público de 1,1 milhão de pessoas. Os filmes desse porte, porém, não têm alcançado nem 100 mil espectadores. Uma saída apontada pelo produtor Luiz Carlos Barreto, de O Quatrilho e O Que É Isso Companheiro?, é a formação de consórcios de produção e distribuição. Um grupo de produtores pediria empréstimo e usaria o dinheiro para financiar alguns filmes. O lucro obtido por uma obra compensaria o prejuízo de outra.

As baixas bilheterias são motivadas, segundo o coro dos descontentes, pela falta de cinemas no país. O circuito brasileiro, embora esteja em crescimento, ainda é pequeno. A relação é de uma sala para cada 125 mil brasileiros. México e Argentina têm algo em torno de uma sala para cada 50 mil pessoas. Pôr um filme brasileiro em cartaz nesse disputado mercado é uma batalha. Por falta de verba, a divulgação é fraca. A Secretaria do Audiovisual quer apertar o cerco para tornar menos árdua essa guerra. Planeja estipular multa pesada para os exibidores que não cumprirem a chamada cota de tela. Já os obedientes à lei ganharão prêmios em dinheiro. A cota de tela determina que, durante 48 dias por ano, qualquer sala exiba filmes brasileiros. Essa mesma lei ajudou os filmes nacionais a ocupar 30% da venda de bilhetes no país durante a segunda metade dos anos 70. Mas os ingressos eram mais baratos, e o público maior.

A secretaria também estuda proposta de criação de fundos para a produção através de uma taxa sobre o lucro remetido ao Exterior pelas distribuidoras estrangeiras. "As empresas podem não gostar disso, mas a gente negocia", diz José Álvaro Moisés, secretário do Audiovisual. "Se for preciso, haverá queda-de-braço." O cineasta Walter Salles tem mais uma alternativa: cobrar a taxa de registro do filme estrangeiro, hoje de R$ 1.090 para qualquer lançamento, de acordo com o número de cópias. "É kafkiano", diz Salles. "Os americanos taxam nossas laranjas e nós não cobramos nada de seus filmes." Arrecadar fundos através da taxação da própria atividade audiovisual é prática comum nos países europeus. "Precisamos de algo parecido aqui", diz a produtora Mariza Leão, de Guerra de Canudos. "Não estaríamos tirando dinheiro de projetos de irrigação, mas da própria movimentação de nosso setor."

Cinco anos depois da aprovação pelo Congresso, a Lei do Audiovisual reclama alterações. Uma necessidade urgente é a criação de critérios rigorosos para a seleção dos projetos habilitados a inscrever-se nas leis de incentivo. Muitos roteiros aprovados nos últimos anos foram de pessoas sem experiência. Estreantes tentaram fazer superproduções sem ter rodado nem curta-metragem. "Não se pode deixar um novato fazer filme caro e o Nelson Pereira dos Santos não conseguir dinheiro para filmar", diz José Álvaro Moisés. O limite de acesso às leis de incentivo, por meio da análise do currículo dos envolvidos, visa evitar casos como o do ator Guilherme Fontes. Ele levantou mais de R$ 7 milhões para realizar documentários e um filme sobre o empresário Assis Chateaubriand. Sem recursos para finalizar o longa-metragem, sua estréia como cineasta e carro-chefe do projeto, interrompeu as filmagens e colocou o projeto em risco. Está correndo contra o tempo para entregar uma cópia até o dia 23 de dezembro, quando se encerra o prazo estipulado pela Lei do Audiovisual.

O preço dos filmes é outra questão em debate. Orçamentos acima de R$ 4 milhões, que precisariam de um público gigantesco para recuperar o investimento, costumam atrair olhares tortos. O cineasta Walter Salles, que gastou R$ 3,5 milhões para fazer Central do Brasil, valor de uma produção de porte médio no país, propõe: "Não temos tradição em fazer filmes caros. Sou favorável à criação de um teto de R$ 2 milhões para a captação via leis de incentivo". Luiz Carlos Barreto rebate: "Fazer filme barato não é proibido", diz. "O que não se pode é impedir a realização de filmes maiores", argumenta. "Precisamos de liberdade temática, mas também de liberdade econômica." Essas diferenças de opinião são corriqueiras. Tendem a enriquecer o debate sobre os possíveis rumos da produção. Com bons e maus filmes, afinal, o cinema reflete o país. É um espelho nítido ou desfocado de seu tempo e meio social. Um prolongamento da crise pode resultar em falta de novos filmes para os próximos anos. Em uma era dominada pelas manifestações visuais, esse vazio seria um retrocesso para a cultura brasileira.

Reportagem: Cléber Eduardo
Fonte: Revista Época - Nov.99 - (www.epoca.com.br)

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