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Gosto
pelo imprevisível Único
brasileiro a ganhar a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes, Anselmo
Duarte teria provocado um ataque de ciúmes no cineasta Orson Welles, que
se apaixonara por sua noiva quando estava no Rio no início dos anos 40
para produzir um musical
Rogerio Sganzerla
especial para a Folha
Cinema é um ofício que permite realizar
tudo. Mesmo o (que parece) impossível, a arte das aparências enganosas,
conferindo aparência de realidade aos sonhos mais quiméricos e
mirabolantes invenções do espírito. Isso ocorre desde a criação do
espetáculo cinematográfico por George Meliès, há um século, quando se
fazia tudo com nada (ao contrário da era do asneirol), pois tinham
imaginação para usar a serviço da sétima arte. E hoje?
Permanece, no entanto, a grande aula de um cinema maior praticado durante
três ou quatro décadas por um dos nossos monstros sagrados. Seu exemplo
vivo de grandeza deve servir como matéria de reflexão para que não se
cometam tantas vezes os erros do passado. Valorize-se o realizador, o
autor, o projeto (e não os modelos da moda). São poucos os diretores
profissionais nesse país de contrastes.
Como tudo começou? O destino jogou duro com uma obra sem exemplo nem
seguidores.
Devido ao seu pronunciado gosto pelo imprevisível, produziu sequências
majestosas e colossais movimentações de massa. Sua prestidigitação dos
meios de reprodução do real se deve a propósitos honestos de interpretação
das coisas nossas, sendo a um só tempo nobre e popular.
Ainda capaz de imantar a multidão, merece o reconhecimento e o apoio que
se faz necessário numa arte industrial como o cinema. Enfim, não há
nada a acrescentar; é preciso realizar o impossível, passando por todas
as ilusões que podem produzir prestidigitação. Na tela (e cheia de ação
contínua). A arte era a razão de sua vida; sem ela não poderia explicar
a que veio a este mundo imundo. A arte e um par de coxas monumentais
chamadas Lolita, o "furacão de Santos", com quem abandonou a
Paulicéia e formou par constante, arrancando aplausos nos clubes
santistas. Ao chegarem ao Rio, estava desempregado e as contas no hotel não
permitiam adiamentos. Anúncios de emprego eram os menos convidativos possíveis.
Assim, aquela página de jornal logo o atraiu: "Precisa-se de
bailarinos". Onde era? No Cassino da Urca. Duas horas depois, chega a
pé ao local, pois não tinha dinheiro para a condução. E sem a
fantasia, uma exigência do anúncio. Onde arranjar dinheiro ou crédito
para comprá-la? Anselmo tinha que tentar a sorte. Felizmente, ela estava
à sua espera na pessoa de Lolita, seu par de outros Carnavais. Ela já
fazia parte do elenco contratado, pois conquistara a simpatia do empresário,
que era nada mais nada menos do que Orson Welles, que planejava rodar um
musical no Rio em 1942.
Maxixe com elegância
Dançaram um número de maxixe com elegância e agilidade. Mesmo sem a
indumentária exigida, foi admitido.Tudo começava a dar certo, porém
cedo se mostrou o reverso da medalha. O americano dava em cima da dançarina
e, para dobrar sua resistência, bancava no jogo da roleta. Lolita jogava
alto, e as fichas não faltavam. Quem não juntaria de boa vontade aquela
mulher belíssima à sua coleção? Percebendo que tinha em Anselmo um
rival, Welles mordia-se de ciúmes ao vê-lo sair todos os dias depois dos
ensaios de braços dados com a garota sorridente e feliz. Welles se
apaixonou, mas Lolita negaceava todas as suas investidas. Quem faturava
era o ex-escriturário. O carro da produção costumava apanhá-lo no
Catete, mas, em vez de rumar à Urca, abalou para o Alto da Boa Vista.
Dentro, dois brutamontes, seguranças ou leões-de-chácara do cassino
tinham caras de poucos amigos. E revelaram ter sido contratados pelo
gringo para lhe darem uma boa surra em lugar ermo, ameaçando novas represálias
se continuasse a procurar Lolita. Daquela data em diante, já estava
dispensado. E que não aparecesse mais na Urca. Anselmo tentou e conseguiu
levá-los na conversa. Condoídos pela sorte do rapaz ou irritados com a
brincadeira do americano, desistiram da empreitada. Não iam mais surrá-lo.
Bastava o passeio e pronto. Com sua imaginação à solta, convenceu seus
raptores a darem ao fato um desenlace sem maldade, mas desmoralizante para
o gringo. Dali mesmo telefonou e relatou o rapto, sugerindo que aparecesse
lá com o empresário. Lolita relutou a princípio, pois temia más
consequências para Anselmo, que acabou a convencendo a vir devidamente
acompanhada. Fingindo se dobrar às suas investidas, Lolita saiu a passeio
com o empresário. Rodaram muito, até que se viram no local escolhido.
Muito bem, pensou, era só saltar para um breve romance na mata. Welles já
estava ansiosamente satisfeito, esfregando as mãos de contentamento. Mas,
ao desembarcar, sumiu-lhe o sorriso das faces. Lá estava o rival,
fagueiro e despreocupado, ladeado pelos capangas, abrindo flores enquanto
calmamente assoviava.
Desfecho rocambolesco
Um desfecho cômico, mas frustrante. Essa passagem, relatada pelo único
ganhador brasileiro da Palma de Ouro em Cannes (em 1962, por "O
Pagador de Promessas"), que foi, em seus 80 anos, homenageado na
entrega do Grande Prêmio Cinema Brasileiro, em Petrópolis, no dia 12 de
fevereiro, tem sabor de uma película barata, narrada com pendor
rocambolesco e desfecho empolgante, ou cômico, se quiserem.
Meio século depois, a garota perdida na noite paulistana, o ator e
diretor conclui que Lolita tinha mesmo provocado uma paixão avassaladora
em Welles, cujo ciúme pelo noivo também ciumento seria uma das razões
do descontrole emocional, contribuindo para o escandaloso episódio no
Hotel Copacabana.
Logo em seguida, teria Welles jogado os móveis da sala do apartamento na
calçada da avenida, onde uma pequena multidão urrava (como sempre):
"Joga mais".
Existem quatro ou cinco versões para o fato, mas, segundo Anselmo, essa
é a verdadeira explicação para a ciumeira, sua paixonite aguda e outros
escândalos, culminando com o arquivamento definitivo do material, embora
totalmente rodado.
Lolita o transformou. É algo muito suave e indecifrável o grande
movimento que se opera num coração que começa a amar. Aquele filme,
construído sob um trocadilho como a Igreja Católica para James Joyce,
nascido de um mal-entendido no famigerado DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda), se desfez em horas, após o estranho acidente ocorrido na
Barra da Tijuca em 18/5/42. A partir daí, Welles nunca mais foi o mesmo.
E tudo isso faz o homem tanto antes quanto depois do dilúvio universal do
nosso cinema.
Rogerio Sganzerla é cineasta,
diretor de "O Bandido da Luz Vermelha", entre outros
Fonte: Jornal Folha de S.Paulo, 14 de Maio de 2000 -
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