ATÉ QUE EM FIM!!!

 

 

Nem acredito que finalmente minha mãe encontrou o casaco e as botinhas que tanto sonhava comprar para mim. Ela queria me ver vestida como crianças se vestem em dias frios, e sempre falava que o casaco teria que ser de pura lã, vermelho, com capuz e com detalhes em preto. Os detalhes teriam que ser em preto para combinar com minhas botinhas que seriam de camurça e verniz. Quando minha mãe quer alguma coisa não desiste enquanto não consegue. Após alguns meses de procura, o meu casaco foi encontrado em uma loja de roupas usadas. Quando ouvi onde tinha sido comprado esse meu casaco tão  especial, pensei comigo: “Roupas usadas???”. Sempre ouvia minha mãe falar que esse casaco seria muito caro, assim, contra sua vontade, teve que optar por esse tipo de loja. Faltavam poucos dias para embarcarmos para o Brasil. No momento em que mostrava à meu pai, reparou que o casaco havia ficado muito comprido, mas, como disse, era o único que havia encontrado. Penso que minha mãe esqueceu que eu não sou uma menininha de verdade e não tão grandinha para caber no casaco que havia comprado. Mas, tenho certeza que logo dará um jeito, pois sempre fazia reformas em roupas para seus filhos. Depois de vestida com o casaco de capuz vermelho, fiquei parecida com Chapeuzinho Vermelho,  faltando apenas a cestinha igual a que Chapeuzinho Vermelho costumava levar para a floresta com comidinhas e frutas para sua avozinha. Como gostei de olhar minha mãe enquanto me vestia com o meu novo casaquinho... Quanto ao comprimento do casaco e da manga fiquei tranqüila, pois sabia que minha mãe poderia fazer as alterações necessárias. Apenas ficou faltando as botinhas de verniz, pois em lojas de roupas usadas ouvi minha mãe falar que estavam muito estragadas. Como eu poderia chegar no Rio de Janeiro, encontrar as amigas de minha mãe e pessoas da família que iriam nos esperar usando um sapatinho velho e surrado??? A botinha que minha mãe procurava era muito especial, pois tinha que combinar com o meu casaco no estilo “Vitoriano”. Finalmente depois de muita procura, minha mãe conseguiu encontrar a botinha tão especial que procurava. Achei linda!!! Era feita de verniz, e nos cantos haviam alguns detalhes em camurça com flores bem pequenas bordadas com linhas brilhantes. Penso que minha mãe não poderia encontrar bota mais bonita. Assim vestida, eu já me sentia preparada para visitar os museus da cidade de Londres antes de viajarmos, e tirar as fotografias que minha mãe queria para poder começar a escrever os livrinhos educativos que tanto queria escrever.

 

Os dias foram passando, e eu continuava sentada no meu lugar como de costume, junto de meus amiguinhos Feliz, Florida e das duas espantalhinhas que ela havia comprado nos Estados Unidos. Minha mãe achava que Feliz precisava de companhia, e assim, trouxe essas espantalhinhas que eu achei muito bonitinhas. Ouvi quando minha mãe falou, que estava pensando em colocar na maior o nome de Maria Carolina, e a menor foi logo batizada de Pirulita, pois era sustentada somente por um pauzinho comprido parecendo um pirulito. Desde que minha mãe comprou meu casaco vermelho e as botinhas pretas, eu não via a hora de poder me ver em algum espelho e saber como eu havia ficado vestida com minha roupa nova. E assim, na primeira oportunidade que tive, corri a procura de um espelho para me ver inteirinha.

 

Meus amigos sempre diziam que eu estava muito bonita, mas, como eu sabia que gostavam muito de mim, não acreditava no que falavam. Assim sendo, um certo dia quando meus pais sairam, corri logo a procura de um espelho, e até que gostei de me ver vestida com meu casaquinho vermelho. Felizmente o capuz não escondia minhas trancinhas douradas que eram presas por dois pompons, um vermelho e outro preto. Será que minha mãe comprou vermelho e preto para combinar com o meu casaco e com as botinhas??? Acho que sim. Lembro quando por telefone falou com sua amiga inglesa Leonora, que gostaria que eu chegasse ao Rio de Janeiro vestida como uma verdadeira menininha inglesa, e ainda mais... da Época Vitoriana. Vocês devem estranhar essa palavra Vitoriana, mas, foi uma época muito importante na história da Inglaterra. Esse nome se relaciona com o nome de uma rainha que se chamava Vitória. Com apenas 18 anos Vitória foi coroada rainha da Inglaterra, e o seu reinado foi o mais longo na história, pois durou 63 anos. Sempre escuto minha mãe conversando com meu pai e aprendo muita coisa. Alguns anos depois de ser coroada, Vitória casou com um de seus primos que morava na Alemanha e que se chamava Alberto. Vitória teve nove filhos e ficou viúva muito cedo. Engraçado, uma rainha da Inglaterra casar com um príncipe alemão. Será que na Inglaterra não havia nenhum nobre que pudesse casar com Vitória? Acontece que os antepassados de Vitória eram alemães, e assim as duas famílias resolveram fazer o casamento entre os dois primos. Antigamente as pessoas casavam com outras pessoas da família para não dividir as terras e riquezas que possuíam. Muitas vezes casavam sem gostar um do outro para que o país ficasse mais rico e poderoso. Alberto morreu muito jovem, e, desde sua morte até o dia em que morreu, Vitória não saiu mais de casa para nenhuma festa. Só se vestia de preto, e todas as pessoas da côrte inglesa durante os sessenta e três anos do seu reinado tinham que se vestir como ela. Penso que devido a essa opressão em que viviam, quando a rainha Vitória morreu, o seu filho Eduardo VII que ocupou o trono da Inglaterra pareceu ficar muito feliz. O estilo de vida e a moda no país mudaram completamente, foi chamada a Época Eduardiana. Eduardo VII vivia em festas, e o luxo era demasiado em todo o país. Eu queria mesmo é ser gente de verdade e poder ler todos os livros que minha mãe tem, pois gosto muito de histórias do tempo passado. Pena que muitas crianças nem ligam para seus livrinhos, rasgam, deixam caídos pelo chão, e o mais importante, não têm amor à leitura que é tão importante para a educação de uma pessoa. Penso que só boneca como eu repara essas coisas, pois de onde fico sentada, a minha única distração é ficar olhando as crianças brincar.

 

Que sorte!!! Que sorte!!! Meus pais saíram e esqueceram o computador ligado!!! Não consigo mesmo resistir à curiosidade de tocar logo nessa máquina milagrosa e moderna que revolucionou a vida de adultos e crianças. Faz tempo eu já sabia, que as netinhas de meus pais usam o computador para escrever e para jogar joguinhos engraçados. Como eu gostaria de ser criança de verdade e aprender tudo que o computador ensina… Muitas vezes as crianças só usam o computador para brincadeiras, e não para aprenderem alguma coisa que possa melhorar o  seu aprendizado  na escola. Ouvi falar que no primeiro dia do ano dois mil, vai acontecer algo nos computadores que está deixando muita gente preocupada. Estão chamando de "bug" e vai causar muita confusão. Eu só escuto pessoas cheias de curiosidade querendo saber o que poderá acontecer se os computadores funcionarem errado. O perigo é que hoje em dia, quase tudo no mundo funciona por meio de computadores. Será verdade essa estória do “bug”? Bom que eu não sendo gente de verdade posso ficar bem tranqüila. Vou pegar uma almofada e poder sentar bem pertinho do teclado. Meus bracinhos são tão curtinhos... Charlotte, Charlotte, acorda!!! Por quê você quer ficar perto do teclado se não sabe ler e nem  escrever??? Bem que eu gostaria de saber ler e escrever, pois acho tão interessante esse tal de computador... Quantas coisas as crianças podem aprender nesse mundo diferente em que vivem. De tanto eu tocar muito apressada nas teclas, aconteceu alguma coisa que fez com que o visor do computador ficasse todo escuro. Fiquei logo assustada, pensando que talvez tivesse quebrado o computador, mas, logo notei, que apenas havia desligado sem que eu soubesse o motivo. Foi até bom, pois ninguém poderia descobrir que passei muito tempo me divertindo nessa peça rara que como falei, está revolucionando o mundo. O melhor ainda é que não vou ouvir uma leve discussão quando meus pais voltarem para casa. Tenho certeza de que iria ouvir muito essa frase: “Quem foi que esqueceu o computador ligado???” Fico algumas vezes pensando, que novidades como o computador e outras novidades que existem no mundo dos brinquedos, deixam as crianças um pouco confusas. Certas crianças não conseguem nem escolher o seu brinquedo favorito devido a tantos brinquedos que os pais compram. Lembro um dia quando meu pai falava com minha mãe sobre os brinquedos que ele tinha quando criança. Muitos eram feitos por ele mesmo, produto de horas e horas em pé em frente a vitrinas de lojas, pesquisando e pensando na melhor maneira de copiar o brinquedo. Hoje em dia as crianças não dão valor a nada pois conseguem tudo com muita facilidade. Isso não é nada bom para o desenvolvimento normal de uma criança. Felizmente sou boneca, e não tenho esses problemas. Ouço sempre meus pais comentando sobre a maneira com que suas netinhas são educadas. Eles não aprovam muitas coisas, principalmente quando chega a época do Natal, quando as crianças recebem tantos brinquedos, que perdem todo o interesse na hora de brincar. Ouço também minha mãe falando, que gosta muito de dar roupa e calçados como presente, pois além de serem úteis, ajudam muito à seus filhos na parte financeira. Ela também gosta de dar livros educativos como presente, pois acha que desde pequenos as crianças têm que ter amor à leitura. Penso que minha mãe tem toda razão. Na última casa em que morei antes de minha mãe me comprar, quando chegava a época de Natal a mãe das crianças reunia os filhos, e mandava que todos escolhecem brinquedos usados para serem enviados à um orfanato onde existiam crianças pobres. Sempre achei esse gesto muito bonito, mas, como eu sofria esperando por esse dia... Minha maior preocupação era pensar que eu pudesse ser um desses brinquedos doados. Felizmente entre seus filhos, havia uma menina chamada Vanessa Maria, que gostava muito de brincar comigo, e assim, eu ficava tranquila, pois eu era a sua boneca preferida. Apesar dessa minha preocupação constante, eu sempre tive a esperança de ficar nessa casa. Assim aconteceu, mas, só até quando Vanessa Maria cresceu e foi estudar em um colégio interno longe de casa. O tempo foi passando, quando um certo dia a mãe de Vanessa Maria achando que eu já não servia como um brinquedo na casa, me doou para uma igreja. Foi quando me colocaram para ser vendida em uma feira de caridade, minha mãe me encontrou, e me trouxe para sua casa onde vivo muito feliz até hoje. Quando meus pais saem me divirto bastante parecendo gente de verdade. Mas, só brinco mesmo em casa, e aproveito agora a mudança de meus pais para subir em cima das caixas que meu pai já preparou. Brinco com muito cuidado, pois se  caio, como explicar o porque de eu estar brincando em cima das caixas e estar quem sabe, caida no chão? Dizem que quando a criança é levada é sinal de que tem  muita saúde. Geralmente são mesmo malcriadas, porque seus pais não lhes ensinam a ter boas maneiras, como respeitr os mais velhos,  se comportar bem na escola e principalmente como cuidar de seus brinquedos. Estando sempre sozinha, fico muito solitária nesse apartamento, apesar de ter muitas coisas boas para fazer e brincar. Mas... essa é minha vida e tenho que me conformar. Sei que estou errada, pois eu deveria me sentir feliz por estar morando com minha mãe e meu pai, e não estar para ser vendida nas feiras de rua, enfrentando o frio e a sujeira que existem fora de casa. Gosto muito também de ver um pouco o que acontece na rua olhando pela janela da cozinha. Gosto de ver os carros passando e crianças felizes indo ou voltando das escolas. Mas, do que realmente gosto, é quando chove e fico sentindo as gotinhas da chuva parecendo tocar o meu rosto através do vidro da janela. É tão geladinho… Algumas pessoas acham que o tempo na cidade de Londres é muito ruim, mas, não vejo minha mãe reclamar, pelo contrário, ela sempre fala que se adaptou muito bem ao clima Londrino. Realmente, ela fica sempre preocupada pensando no dia em que tiver que voltar ao Brasil. Não sei porque minha mãe reclama tanto quando falam em voltar ao Brasil. Ouvi falar que o clima é muito bom e existem praias muito bonitas no Rio de Janeiro. O problema, é que minha mãe não gosta de praia, e o que fazer para passar o seu tempo livre??? Apesar de ter muitas amigas para se divertir junto delas, minha mãe vai sentir falta da parte cultural, dos parques e da vida tranqüila e livre que vive em Londres. Londres é uma das cidades da Europa que mais facilita essa parte cultural. Os museus da cidade são preparados especialmente para facilitar os turistas a como se locomoverem dentro deles, como também facilitar o acesso aos ensinamentos que oferecem. Meus pais gostam muito quando chega o fim de semana, e logo cedo saem andando pela cidade à procura de feiras de livros ou de antiguidades. Como se divertem... Ouço quando chegam em casa sempre muito tarde e felizes, falando sobre o que viram e fizeram durante um “longo” dia, pois só eu sei o quanto foi longo e o quanto me senti sozinha. Apesar de ser boneca e ficar sempre sentada no lugar em que me colocaram, sinto falta dos meus pais em casa e do barulhinho constante da televisão. Não sou gente de verdade, mas gosto de ver pessoas, ouvir o som da televisão, ver o movimento dos meus pais procurando o que comer, enfim, poder ver e apreciar tudo que fazem e me distrair um pouco. Não gosto de solidão… Charlotte!!! Charlotte!!! Penso que você tem esquecido de lembrar a si mesma, que essa sua vida de boneca mimada não vai durar para sempre. O que você ouviu falar sobre Gepeto, o velhinho que fez o boneco Pinóquio e fez também com que o Pinóquio andasse como uma criança e a estória de Cinderela que casou com um príncipe… isso tudo só existe mesmo em estórias infantis!!! A mesma coisa acontece com as estorinhas que minha mãe escreve e onde você vira gente quando está sozinha. Essas estórias brotam na imaginação de pessoas que gostam muito de escrever e vivem no mundo da fantasia. Acorda Charlotte!!! Será que você nunca vai parar com essa mania de ser de verdade e dizer que não gosta de solidão???

 

Um certo dia, chamei Feliz, Pirulita e a espantalhinha bonita que ainda não tem nome, para falar sobre meus novos planos. Todos logo ficaram curiosos, a espera de que eu fosse contar suas estórinhas preferidas ou se seria alguma nova brincadeira. Feliz vinha quase caindo, segurando nos móveis tentando pular com suas perninhas de palha. Atrás dele, vinha a espantalhinha sem nome, apressada colocando o seu chapéu, pois não gostava de mostrar seus cabelos. Dizia que tinha a cor muito feia e não tinha trancinhas bonitas como as minhas. Pirulita como sempre, vinha pulando na sua perninha única, mas, com todo cuidado para não cair. Felizmente já estava acostumada a ter só uma perninha. Como eu ficava feliz ao ver meus amiguinhos correndo ao meu encontro… parecia que éramos de uma só família, e muito felizes. Enquanto me ouvia, Florida correu para perto de nós e subiu na maleta do meu pai na pontinha dos pés para saber qual seria a novidade. Juntos olhavam para mim ansiosos, querendo saber a minha próxima peraltice. Essa era a minha novidade. Agora que eu estava me achando bem vestida comecei a sentir  vontade de sair sozinha. Me sentia bem e feliz, usando o meu casaquinho vermelho com minhas botinhas de verniz e pensava que facilmente eu poderia passar por uma criança de verdade. Perguntei o que eles achavam. Imediatamente todos juntos responderam que seria uma loucura. O pior seria se eu me perdesse, e eles ficassem sem a amiguinha que tanto gostavam. Apesar das preocupações dos meus amiguinhos, não desisti do meu plano. Quando abri a porta para sair, Feliz e Florida ficaram encostados na porta me olhando preocupados, mas ao mesmo tempo loucos de vontade de poder me acompanhar nessa maluquice como falaram, que eu havia planejado. Sai andando  pelo corredor  comprido, e enquanto andava bem devargar nos meus passinhos de boneca, comecei logo a ficar preocupada. Custei tanto a chegar perto do elevador, que tive tempo suficiente para pensar na loucura que eu estava fazendo. Felizmente, após alguns minutos, acordei desse meu sonho impossível, sonho de uma boneca que parecia uma criança de verdade, pensava como uma criança de verdade, mas... que era apenas uma boneca. Enquanto voltava, minha tristeza acabou quando vi o sorriso de Feliz e o nariz pontudinho e vermelho de Florida que muito preocupada me olhava da porta. Pirulita perto deles, tentava pular de alegria quase caindo e se equilibrando na sua única perninha. Enquanto isso, a espantalhinha bonita puxava aflita o meu casaco, querendo sentir que eu estava outra vez junto deles. Como é bom quando a gente tem amiguinhos... Tudo isso compensou o meu desapontamento e me fez ficar feliz outra vez. Mas, após esses momentos de alegria, tive como sempre, de continuar sentada no mesmo móvel e na mesma posição de boneca que sempre me colocavam.

 

Passaram-se muitos dias, quando ouvi a minha mãe falar que ela havia sido convidada para um chá de despedida oferecido por suas amigas Leonora e Marianne. Quase não acreditei no que ouvia, e fiquei logo louca de vontade de sair junto com elas. Foi assim, que no dia seguinte tive a grande surpresa de ver o meu desejo realizado. Depois de estar toda arrumada, minha mãe me pegou no colo e saímos em direção do elevador. Eu não me sentia bem sendo carregada no colo feito boneca, mas, como poderia andar se eu não era de verdade??? Passamos pela portaria, e logo os porteiros assustados pararam minha mãe, e me tocaram para sentir se eu era realmente uma boneca. Começaram a fazer perguntas, querendo saber quando e onde ela havia me encontrado e o porque dela estar saindo comigo. Como são curiosos!!! Chegam a incomodar. Logo vi que não eram pessoas de muita educação, pois não é costume de um inglês educado ficar fazendo perguntas. Quando saíamos, vi que em frente ao prédio estava estacionado um carro esporte vermelho. Fiquei surpresa, pois era o carro da amiga de minha mãe, e pude ver que dentro dele haviam duas pessoas. Eram suas amigas Leonora e Marianne, que imediatamente começaram a olhar para mim de cima para baixo. Pensei comigo: “Será que nunca viram uma boneca saindo para passear com a sua dona???” Me senti muito feliz, até o momento em que paramos em uma casa de chá muito fina, e fui colocada em cima do carro feito uma boba para que tirassem retratos. Tanto minha mãe quanto suas amigas, tinham mania de tirar fotografias e fazer álbuns de suas memórias. Mas, tirar fotos de uma boneca, no meio da rua e ainda mais em cima de uma carro esporte vermelho!!! Penso que foi um pouco de exagero da minha mãe. As pessoas passavam e me olhavam. Fiquei me achando ridícula, e fiquei pensando qual seria a próxima novidade da minha mãe. Lembro quando falou que Marianne tinha também uma boneca, só que a boneca de Mariannne era feita de porcelana alemã, e o seu cabelo era cabelo de pessoa de verdade. Ainda bem que Marianne não sabia que eu vinha, só assim não trouxe a sua boneca junto com ela. Já pensou, eu ficar perto de uma boneca com cabelo de uma pessoa que poderia ter morrido de doença contagiosa??? Charlotte, você só pensa em coisas ruins!!! Realmente eu nunca gostaria de ter em minha cabeça um cabelo de alguém que eu não conhecesse. Que mistura!!! Cabelo de gente de verdade em cabeça de boneca!!! Gosto mais de bonecas que são feitas como eu, e mais ainda se tiverem trancinhas douradas como as minhas. Pela primeira vez eu havia entrado em um carro. Minha mãe me colocou em pé na parte de trás do carro, e assim, me diverti muito indo para o restaurante enquanto olhava os carros que nos seguiam. Não foi pouco o que passei quando acabaram de tirar fotos. Enquanto conversavam, me deixaram em pé por muito tempo, e logo depois me trancaram no porta malas do carro. Durante quase três longas horas durou esse meu sofrimento. Enquanto fiquei sozinha no carro, fiquei pensando que boneca só serve mesmo para ser bonitinha, colocarem roupinhas e ser brinquedo de crianças, sendo que, muitas vezes, vão parar mesmo é em latas de lixo. Quando voltamos para casa procurei esquecer toda essa tristeza, e pensar somente em tudo de bonito que eu havia visto.

 

Os dias foram passando, quando finalmente chegou o momento que minha mãe nunca gostaria que chegasse: O dia de deixar para sempre essa cidade que viveu feliz por tantos anos e que tantas boas recordações ficaram em suas memórias. Realmente durou muitos anos essa temporada que meus pais passaram fora do Brasil. Em cada carta ou cartão de despedida que enviava para seus amigos, minha mãe colocava uma poesia que falava sobre a “Hora de voltar”. Essa hora que todos que foram felizes onde viveram, nunca gostariam que chegasse essa hora. A poesia era um pouco triste, mas muito bonita. Dizia assim:

 

HORA DE VOLTAR

 

   Nada na vida é eterno,

Como as flores que nascem

A chuva que cai,

O vento que sopra...

A nossa vida.

 

Hora de voltar,

Hora de sentir o coração apertado

Molhado com lágrimas

Vindas de um choro escondido

Por não se poder chorar.

 

Hora de voltar,

Despedidas infindas.

Como sussurros,

Palavras ouvidas de pessoas amadas

Misturam-se à nossa voz chorosa, saudosa.

 

Hora de voltar,

Momentos que ficam em nossa lembrança,

Em nosso coração apertado de saudade,

Que por algum tempo

Vai ter que ficar.

 

Parece que as pessoas sentem mesmo qualquer coisa no coração quando ficam longe das pessoas que gostam. Ouvi minha mãe falar qualquer coisa sobre isso, pois ela vive sempre tristonha e preocupada com seus filhos. Foi depois que seus filhos casaram e foram morar longe dela, que minha mãe começou a escrever poesias. Todos acham suas poesias bonitas, mas, um pouco tristes, apesar dela ser uma pessoa muito alegre e cheia de vida. Todos falam que a alma do poeta é triste. Penso que é verdade, pois minha mãe não consegue fazer poesias alegres.

 

O dia amanhecia, quando minha mãe me pegou e me colocou em cima de várias malas enfileiradas na sala. Enquanto esperava por meus pais eu pensava: “Charlotte, você é uma boneca de sorte”... você não foi embalada como os seus amiguinhos. Lembrei quando Florida foi empacotada, e junto dela ainda tinha que ter espaço para Feliz, a espantalhinha sem nome e Pirulita. Realmente eu tinha tido muita sorte, pois ganhei casaquinho, botinhas novas e estava indo morar em um país bem mais quentinho do que onde antes morava. Mas, pensando bem, passando todo esse tempo vestida com o meu casaquinho vermelho, tenho certeza de que não vou me sentir bem nessa cidade quente como o Rio de Janeiro. O que será de minha vida??? Penso que vou morrer de calor.

 

Meus amiguinhos costumam falar que eu gosto de reclamar demais e nunca estou satisfeita apesar de tudo de bom que tem acontecido comigo. Vou sentir saudades deles, pois estão sempre satisfeitos e ficam mais felizes ainda quando ficam juntos.  Sei muito bem que esse é um grande defeito que tenho, mas, apesar das reclamações sou muito agradecida à minha mãe, desde o dia em que me tirou daquela banqueta na feira de rua e me trouxe para sua casa. Nunca vou esquecer esse dia, lembro até hoje o frio que fazia, dia típico do clima Londrino. Após algumas horas, um taxi chegou para nos levar ao aeroporto. Vocês não podem imaginar onde fui sentada, no colo do meu pai. Foi onde sobrou um lugarzinho para mim. Nunca havia ficado tão perto dele como naquele momento, e só pensava no trabalho eu estava dando. Meus pais devem gostar muito de mim para me levarem junto com eles apesar da bagagem grande que tinham. No caminho do aeroporto eu me distraía olhando o sorriso maroto da minha mãe enquanto me olhava sentada no colo de meu pai. O seu sonho de me levar junto com ela nessa viagem havia se realizado. Chegando ao aeroporto, assim que deixamos o taxi, as malas foram colocadas em cima de um carrinho, e eu em cima delas. Na posição em que me encontrava eu só podia ver o teto do aeroporto.  Minha maior preocupação era as pessoas que passavam, pensar que eu era uma criança de verdade e sendo tratada daquela maneira. Durante o tempo em que tivemos que ficar na fila, enquanto meu pai dava um jeito nas malas quase caí do carrinho. Dois senhores que estavam perto correram rapidamente e tentaram me pegar. Quando viram que eu era apenas uma boneca, todos ficaram surpresos e começaram a rir aliviados e satisfeitos ao mesmo tempo. Somente eu  não fiquei surpresa, pois já estava acostumada com as pessoas achando que eu era uma criança de verdade, e como ficava feliz… Esse foi um momento muito especial para mim, pois senti que realmente eu poderia passar por uma criança de verdade. Assim, comecei a achar essa viagem muito interessante, e realmente já estava gostando dessa minha nova aventura. Em um certo momento reparei que meus pais não estavam perto de mim. Fiquei assustada, e comecei a pensar onde teriam ido, me deixando sozinha em um lugar cheio de pessoas estranhas. Será que não ficaram preocupados em alguém me roubar??? Será que já estão ficando cansados de mim??? Quanto a isso, penso que não devo me preocupar, pois principalmente minha mãe sei que gosta muito de mim e nunca se cansaria de mim. Isso tenho certeza. Mas, estou dando tanto trabalho a meu pai nessa viagem, que realmente penso que ele não se incomodaria de me ver bem longe dele. Charlotte, por quê você é tão pessimista??? Logo eles vão voltar!!! Aos poucos fui ficando mais calma. Apesar de estar ainda um pouco preocupada, não resisti a vontade de sair do carrinho e dar umas voltas pelo aeroporto. Queria conhecer e ver tudo que criança gosta sem que tivesse sob a guarda de meus pais. Não foi fácil, mas depois de muito esforço consegui sair de cima das malas e descer do carrinho que era bem alto para o meu tamanhinho de boneca. Depois de percorrer todo o aeroporto sem que ninguém olhasse para mim, o que muito me surpreendeu, sai a procura das minhas lojas preferidas. Fui logo direto para as lojas onde vendiam chocolates e fiquei mexendo nas caixas como se fosse comprar algo, mas, dinheiro mesmo eu não tinha. Como toda criança eu tinha uma bolsinha, mas, enquanto olhava tanta coisa bonita, não deixava demonstrar que a bolsinha que eu levava estava vazia. A dona da loja várias vezes olhou para mim parecendo surpresa, pensando que eu talvez fosse uma criança sem a companhia dos pais. Bem, não sei o que ela pensou, e eu não estava interessada em saber, mas, logo depois ela virou de costas e não olhou mais para mim. Me senti a vontade para ver tudo que tinha nas prateleiras. Aproveitei esse momento para segurar os coelhinhos que estavam enfeitando a loja para a Páscoa e nos livrinhos de estórias infantis que estavam a venda. Mas, como comprar, se eu não tinha dinheiro e era apenas uma boneca!!! Aproveitei também para seguir um garotinho que estava brincando nos carrinhos e logo subi em um deles para ficar vendo o que ele fazia. Seu nome era Matthew, ouvi quando sua mãe o chamou, e parecia um garotinho muito levado, pois sua mãe o chamava e ele fingia que não ouvia. Era uma peraltice atrás da outra que ele fazia, mas era isso que eu gostava de ver criança fazendo. Assim, fiquei bastante tempo perdida naquele mundo encantado das crianças. Sempre pensei que crianças de verdade deveriam ter tudo que sonhassem, mas, penso que não é só isso que traz felicidade à vida das crianças. Criança feliz, é a criança que vive em uma família unida, e que, tenha principalmente muita paz em casa. A criança precisa também ter muitos amiguinhos para que possam brincar juntos, e viver esses momentos que passam tão rápido na vida da pessoa… a vida de criança. Resolvi voltar correndo para o carrinho antes que meus pais chegassem e pensassem que eu poderia se roubada. Não foi fácil, pois o carrinho era muito alto, mas, com muito esforço consegui. O mundo hoje em dia está bem diferente, existe muita maldade, e facilmente uma criança pode ser tirada de perto de seus pais sem que eles notem. Ouço quando meus pais falam, da preocupação que seu filho tem com suas três netinhas.

 

Que sorte!!! Cheguei antes deles!!! Assim que chegaram no aeroporto, meus pais foram fazer o “check-in” e entregar as malas maiores. Depois que as malas foram entregues, resolveram me prender com um elástico bem apertado nas malas de mão que estavam em um carrinho, para que não acontecesse o que havia acontecido antes comigo.  Todos agora podiam ver bem meu casaquinho novo, minhas botinhas e minhas trancinhas douradas presas com os pompons vermelho e preto. De onde estava, eu podia ver também crianças carregando ursinhos, bonecas e outros brinquedos. Como pareciam felizes… Vi algumas correndo e brincando pelo aeroporto, e logo me deu vontade de fazer o que faziam, mas amarrada como estava e junto de meus pais seria impossível. Enquanto esperava a hora do vôo comecei a ficar nervosa, e o medo de voar já estava tomando conta de mim. Minha mãe me pegou no colo e nos dirigimos para uma sala onde pessoas esperavam pela hora do vôo. Logo notei que era uma sala de espera. Meu pai seguiu na frente mostrando os cartões de embarque, quando de repente ouvi a pessoa que recebia os cartões, perguntar pelo cartão da criança. Eu estava de costas, e assim, ela pensou que eu fosse uma criança de verdade. Imagina, pedir cartão de embarque para uma boneca... Quando entramos no avião, enquanto meus pais procuravam nossos lugares todos nos olhavam. Eu pensava o motivo de tanta curiosidade. Seria porque nunca tinham visto uma boneca viajar de avião, ou estavam me achando bonita... Charlotte, Charlotte, pare com essa vaidade!!! Afinal de contas você não é tão especial assim. Mas, boneca viajando de avião e tão arrumada como eu, tenho certeza que nunca tinham visto.

 

Em certo momento, notei que minha mãe estava um pouco preocupada, quando meu pai parou perto dos lugares indicados nos cartões. Onde iriam me colocar? O avião estava lotado e não havia uma cadeira sequer desocupada para me colocarem. Penso que eu já estava começando a causar problemas para meus pais. Assim, como qualquer bagagem de mão, fui colocada em um compartimento no alto das cadeiras. Notei que minha mãe não havia gostado da maneira como meu pai me colocou em cima da sua capa de chuva. Coitado do meu pai, depois do que havia passado, tinha ainda de pensar em ter cuidado com a roupa de uma boneca que nem vida tinha!!! Acho que, com muita razão ele já estava perdendo a paciência. Esses cuidados exagerados eram coisas de minha mãe, que não queria que eu chegasse ao Rio de Janeiro com algum amassado no meu casaco Vitoriano e com minhas trancinhas arrumadas do jeito que eu havia saído de casa. Seria impossível!!! Eu mesma estava aceitando chegar de qualquer maneira, contanto que eu pudesse chegar, e ser capaz de ser conhecida por todos os parentes e amigos no aeroporto. Eles já estavam fazendo muito me trazendo junto com eles, e me carregando pelo aeroporto com todos olhando admirados. O pior, foi que minha mãe resolveu viajar vestida com uma suéter onde na frente tinha estampado um ursinho bem grande. Assim já era demais, não? Imagino como o meu pai deveria estar se sentindo envergonhado, enquanto carregava uma boneca no seu carrinho, e minha mãe usando uma suéter com um urso desenhado na frente. Depois que me deitaram em cima da capa de chuva de minha mãe em um compartimento cheio de embrulhos, eu só ouvi um barulho forte e uma grande escuridão em volta de mim. Pensei comigo: “Vida ingrata de boneca”, me sentia como se estivesse em uma prisão. Mas, logo em seguida, fiquei pensando nos meus amiguinhos Feliz, Florida, Pirulita e a espantalhinha sem nome que há mais de dois meses estavam empacotadas no depósito. E Doçura??? Lembrei também de Doçura, a raposinha que vocês conheceram na estorinha “Qual será o meu destino???” que minha mãe escreveu. Como estaria o seu pelo que já estava caindo devido a sua idade avançada? Doçura já tinha mais de cinqüenta anos. E assim, pensando nos meus amiguinhos, logo me conformei em estar ali por algumas “longas horas” de vôo. Ouvi quando meu pai falou que tínhamos que pegar outro avião em Chicago para chegarmos ao Rio de Janeiro. Viagem longa essa...

 

Senti que haviam passado muitas horas, quando de repente encherguei uma claridade quebrando a escuridão de onde eu estava. Meu pai me segurou e me entregou à minha mãe. Havíamos chegado na cidade de Chicago. Após os empurra empurra para sairmos do avião, me colocaram outra vez sentada bem em frente ao carrinho que meu pai puxava. Pude ver assim, mais uma vez crianças brincando, como também ver como era bonito esse aeroporto. Ficamos aguardando a chamada para o próximo vôo, e assim, após nos chamarem, meus pais passaram por uma porta bem grande, e mais uma vez fui colocada em cima de uma esteira estreita e rolante. Fui colocada como se fosse uma bagagem a ser revistada. No momento em que as tiras de borracha da máquina tocaram o meu rosto, ouvi um grito forte que me assustou. Tinha que acontecer outra vez??? Uma das moças que ajudava nesse trabalho, pensando que eu fosse uma criança gritou para que parassem a máquina. Eu já estava cansada de tantas vezes ouvir as pessoas me acharem parecida com crianças de verdade. Isso me irritava muito, pois eu sabia que nunca, nunca eu poderia ser de verdade. Todos ficaram assustados e rindo ao mesmo tempo, até verem que Charlotte... era apenas uma boneca. Felizmente não pensaram em me examinar totalmente e estragar minha roupa tão bem cuidada. Notei que só minha mãe ficou feliz com essa confusão, pois a sua Charlotte estava chamando atenção de tudo mundo.

 

Assim que entramos no avião, logo notei que era bem mais novo e confortável do que o anterior. Pensei comigo: “Dessa vez vai haver uma cadeira vaga para mim”, mas, novamente fui colocada no bagageiro em cima das cadeiras. Ouvi minha mãe falando para meu pai, que estava com vontade de tirar algumas fotografias para sua próxima estorinha que já estava pensando em escrever. Ela queria me colocar sentada na cadeira como uma verdadeira passageira. Meu pai respondeu que ela poderia tirar as fotos que quisesse, contanto que as pessoas não pensassem que ele estava junto dela. Logo notei que minha mãe não havia desistido da idéia, pois me tirou do bagageiro e logo me sentou na cadeira. Quase não acreditei, quando colocou o “headphone” no meu ouvido, e em minhas mãos, colocou um folheto com instruções de como agir em caso de acidente. Só de pensar em acontecer um acidente, senti logo vontade de largar o papel. Como fiquei confusa com todas as instruções que estavam no folheto de bordo. Penso  que isso é também normal com pessoas de verdade.

 

Não satisfeita, minha mãe tirou mais uma foto, colocando uma revista em minhas mãos. Após as fotos, sem mesmo olhar para os outros passageiros, minha mãe me colocou outra vez no mesmo compartimento escuro em cima das cadeiras que eu não gostava. Procurei me acalmar e esperar o tempo passar nessa última etapa da viagem. Aparentemente eu me sentia tranqüila, pois tinha certeza, de que eu iria ser feliz nessa minha nova vida. Eu estava curiosa e ansiosa por começar a viver nessa cidade onde minha mãe sempre prometeu me trazer. Ela prometeu também, escrever livrinhos educativos para crianças viajando comigo por todos os estados do Brasil. Nessas estorinhas eu estaria envolvida, já que nos livrinhos que pretendia escrever me levando em todos os museus de Londres não teve tempo escrever. Penso que o Brasil tem vinte e seis estados, assim sendo, devo viajar muito e me divertir bastante nesse Brasil que muita gente no exterior tem vontade de conhecer. Você é uma boneca de sorte Charlotte. Mas... será que vou gostar das estradas para chegar nesses lugares tão longe??? Ouvi falar que as estradas são muito ruins. Pare de ser exigente Charlotte, você está ficando demais!!! Não esquece que você é apenas uma boneca!!!

 

 

Rio de Janeiro, maio 2003

MARIA LUCIA DA COSTA