COMEÇO DE UMA
NOVA VIDA
CHARLOTTE CHEGA
AO RIO
Foi assim que fiquei... amarrada em cima de malas,
até o momento em que entramos no avião para iniciar nossa viagem ao Rio
de Janeiro.
Minha mãe como sempre cuidava muito de mim, e
me olhava sempre para que eu não
caisse. Eu já havia notado que a sua maior
preocupação, era não estragar o meu novo casaquinho vermelho que havia comprado.
Minha mãe queria que eu chegasse no final da viagem bem arrumada. Minha
mãe comprou esse casaco com todo carinho, assim como as minhas botinhas pretas de
verniz. A viagem foi tão longa que cheguei a perder a noção do tempo. Um
certo momento, senti uma forte claridade entrando onde eu estava, era uma pessoa abrindo a porta
do cubículo em que eu fiquei. O movimento dentro do avião era
grande, assim como era grande o barulho dos cliques cliques das pessoas abrindo
os compartimentos onde estavam guardados seus pertences. Logo notei que havíamos
chegado nessa cidade famosa e conhecida como “Cidade Maravilhosa”.
Algumas vezes ouvia
minha mãe cantar uma música que dizia: “Cidade maravilhosa, cheia de encantos
mil”. Encantos mil??? Pensei comigo. Será que tudo nessa cidade é bonito e
encantado como nas estorinhas infantis que conheço dos livros?
Eu não via a hora de
sair desse avião calorento, e logo conhecer as pessoas que iriam ao aeroporto
nos esperar. Apesar de ser boneca eu já estava ficando preocupada com tudo que
meus pais falavam: “Será que vamos passar no sinal vermelho? Será que vamos
passar no verde? Acho bom você passar primeiro. Penso que o melhor é passarmos
juntos”. Eu nunca havia escutado uma conversa tão maluca, mas, deveria ter
alguma razão e eu estava curiosa para saber qual seria. Juntos com outros
passageiros apressados deixamos o avião, e após alguns minutos, meus pais
ficaram perto de uma esteira muito comprida e cheia de malas. Como fiquei feliz
em me sentir junto deles e não sendo tratada como um pacote qualquer. Continuei
a ouvir a conversa dos dois, e logo comecei a entender o significado de suas
preocupações sobre os sinais verde e vermelho. Enquanto pegavam suas malas, vi
pessoas aborrecidas com suas bagagens sendo abertas em cima de mesas, e com
muita dificuldade abriam para serem examinadas. Haviam passado no sinal
vermelho. Entendi então, a preocupação de meus pais caso pegassem o sinal
vermelho. Suas malas estavam super cheias, e, como fechar depois de serem
examinadas!!! Realmente seria um desastre...
Separados como se fossem dois estranhos, meus pais aproximaram-se da
saída. Fui colocada em cima das malas de minha mãe, e já estava começando a
ficar um pouco nervosa por não estar perto de meu pai. Notei que a senhora que
iria nos atender não gostava de crianças e nem de bonecas, pois não fez nenhum
comentário sobre mim. Pensei logo: “Vai apertar o sinal vermelho”, e
assim que nos aproximamos, ela levantou uma das malas e perguntou à minha mãe,
o porque da mala estar tão pesada. Minha mãe explicou que estava voltando ao
Brasil após passar alguns anos morando fora. Ela logo pediu a lista do material
que se encontrava dentro da mala, e ai... atrapalhou tudo. A lista estava com
meu pai. Meu pai vendo que alguma coisa errada estava acontecendo, aproximou-se
de minha mãe, e procurou dar as explicações necessárias. Sem nenhum comentário
pois era muito mal educada, a mulher nos indicou um fiscal para que examinasse
nossas malas. Justamente nesse momento chegou a hora da boa sorte de meus pais.
O fiscal era um rapaz muito educado, tinha feito a Escola Naval, e vendo que
meu pai era um Mar-e-Guerra da Marinha Brasileira voltando da Inglaterra após quatorze anos em missão
diplomática, só faltou fazer continência para meu pai. Assim, as malas não
foram abertas, e tudo acabou dando certo. Como meu pai sempre fala para seus
filhos quando estão passando por algum problema.
Quando saímos pela porta principal, tivemos uma grande surpresa: Não
havia ninguém nos esperando. O que teria acontecido??? Será que as pessoas não
estavam felizes com a volta de meus pais??? Será que não estavam curiosos em me
conhecer??? Charlotte, pare com essa vaidade!!! Onde estavam os parentes e
amigos que sempre ouvia meus pais falarem que tinham??? Meus pais esperaram
durante uma hora, pensando que talvez fosse um atraso devido ao trânsito.
Esperaram quase duas horas, e não apareceu ninguém, nem mesmo sua mãe que havia
prometido trazer um carro bem grande no qual caberia toda a bagagem. Eu já
estava cansada de esperar, pois até dois tombos com o meu rosto batendo no chão
eu já tinha levado. Minha mãe após ter arrumado minhas trancinhas douradas e o
meu casaco com todo cuidado, me sentou em uma cadeira presa em uma outra. Em
uma delas estava sentado um rapaz, e todas as vezes em que levantava, mexia a
cadeira de tal maneira, que me fazia cair no chão. Minha mãe ficava muito
aborrecida, pensando que eu apenas estava escorregando e me colocava novamente
na cadeira. Somente eu sabia o motivo dos meus tombos, mas… como explicar??? E
assim, mais uma vez cai. Logo que me pegava do chão, minha mãe procurava ver se
eu havia me machucado, sempre querendo entender os tombos que eu estava
levando. Quando notou o que estava acontecendo, pediu ao rapaz para que tivesse
mais cuidado quando levantasse para que eu não caísse outra vez. O rapaz olhou
para minha mãe um pouco espantado, penso que, surpreso com o cuidado excessivo
que ela estava tendo com uma simples boneca. Será que pela maneira com que eu
estava vestida e calçada, e sendo cuidada como uma verdadeira criança, ele não
notou que eu era uma boneca muito especial!!! Penso que ele não era uma pessoa
muito inteligente...
Depois de muito esperar, meu pai resolveu telefonar para
sua mãe. Muito surpresa, ouvi meu pai falar para minha mãe, que sua mãe só
estava nos esperando no dia seguinte. Que mal entendido!!! Parece até que não
falam a mesma língua!!! Tudo estava sendo preparado para o dia seguinte, faixas
de boas vindas e um carro especial em que cabia as irmãs de minha mãe já havia
sido reservado. Que belo “Welcome to Rio de Janeiro...” Mas, penso que foi
melhor assim, pois após uma viagem estressante, cansativa e calorenta não seria bom para meus pais
serem recebidos no aeroporto com muita festa. Assim sendo, meu pai pegou um
táxi, e partimos para casa de sua mãe. Ouvi quando ele pediu ao motorista para passar antes
na praia de Ipanema. Penso que ambos estavam
com saudades do lugar onde moraram durante muitos anos. Em menos de uma hora chegamos, e como de costume, a mãe do meu pai e
Ondina, a antiga empregada de meus pais estavam nos esperando. Ouvi falar que
Ondina começou a trabalhar em casa deles há mais de trinta anos. A alegria em
vê-los de volta foi grande, principalmente ao verem que eu estava junto deles e
finalmente poderiam me conhecer. Fui recebida com muita festa, e como sempre
acontecia, acharam que eu parecia uma criança de verdade. Acharam lindo o meu
casaco no estilo Vitoriano. Como sempre faz quando chegamos em qualquer lugar,
minha mãe logo arranjou um lugarzinho para me colocar. Pela primeira vez fui
colocada em um bercinho de neném, e não gostei, pois sou boneca mas não sou
bebê. Tirar foto no berço!!! Nem pensar. Espero que minha mãe não faça isso. A
mãe de meu pai sempre mantém uma bercinho arrumado em seu quarto a espera de
algum neto ou bisneto que venha visitá-la. Para falar a verdade, não gostei
mesmo, pois minha mãe logo me cobriu com um saco plástico para que o ar da praia
não estragasse a minha pele e minha roupa. Assim, deitada, encalorada e quase
sufocada com o plástico em meu rosto, fiquei a espera de dias melhores. Ouvi
falar que suas netinhas Stephanie e Rebecca iriam chegar para passar suas
férias no Rio, e que tinham muita vontade de me conhecer. Eu também estava
curiosa para conhecer as duas. Os dias foram passando, quando reparei que meus
pais andavam um pouco aborrecidos. As pessoas que alugaram o apartamento em que
moravam no Rio, o estragaram tanto, que as reformas iriam ser muitas e bastante
caras. Foi realmente uma triste surpresa, chegando a acabar com a alegria que
estavam sentindo em voltar para sua antiga casa após passarem tantos anos fora.
Penso que teriam que esperar alguns meses para terminar com toda a reforma.
Mas, com a chegada de Stephanie e Rebecca, penso que meus pais iriam esquecer
um pouco seus problemas.
Um certo dia ouvi minha mãe falando no telefone, e senti que estava muito
preocupada. O que estaria acontecendo? Pensei comigo. Realmente minha mãe tinha
que estar preocupada, pois dois dias antes do outro avô de Stephanie e Rebecca
vir trazê-las ao Rio, ele foi assaltado enquanto botava gasolina em um posto, e
levaram o seu carro importado. Eram apenas nove horas da manhã. Em que mundo
perigoso vivem as pessoas de verdade... como sempre falo, até que é bom ser
boneca. Sem o carro, como trazer as crianças??? Ouvi mais tarde alguém falando,
que as duas viriam de ônibus com a mãe. Eu sabia, que tinham que arranjar
rápido uma outra maneira de trazê-las, pois Stephanie e Rebecca estavam
contando os dias para passarem pela primeira vez suas férias escolares no Rio
de Janeiro, e ainda mais com a chegada de vó Lúcia, de vô Carlos e naturalmente
com a minha chegada. Coitada da Caroline, só ela não veio, pois é ainda muita
pequenina. Foi em uma sexta feira à noite que chegaram. Meus pais foram
buscá-las na rodoviária, e logo que entraram escutei as duas correndo em minha
direção. Stephanie e Rebecca estavam curiosas para me conhecer, principalmente
Rebecca que era menorzinha, e logo começou a preocupar minha mãe, pois não
queria mais me largar. Minha mãe ficou preocupada, pois não encontrava as netas
há mais de um ano, e como dizer não para o que pedissem, mesmo que fosse para
brincar comigo. Na mesma hora fiquei sentada na sala de jantar junto de
Rebecca, enquanto todos na mesa tomavam um lanche e contavam as novidades.
Rebecca ficou pouco tempo na mesa, e logo começou com sua imaginação de criança
inocente, a fantasiar nossas brincadeiras. Como Rebecca falava!!! Enquanto
falava ela me balançava e me jogava para cima e para baixo. Eu já estava
ficando tonta, mas, não me incomodava, pois eu podia sentir enquanto brincava
comigo, o quanto Rebecca estava feliz. Sentada na mesa, minha mãe nos olhava
preocupada, pois nunca pessoa alguma havia me segurado de alguma maneira em que
pudesse soltar meus braços ou desmanchar as minhas trancinhas douradas. Rebecca
estava me fazendo virar cambalhotas!!! Penso que minha mãe deu graças a Deus
quando foi ficando tarde e a hora de dormir chegou. Todos estavam prontos para
dormir, quando começou uma forte discussão. Stephanie também me queria perto
dela. Ouvi minha mãe falando, que, cada dia eu dormiria junto com uma delas.
Mas, essa solução não foi aceita. E assim, minha mãe teve que usar a imaginação
para resolver o grande problema que sem querer eu estava causando, e já no
primeiro dia. Bem no meio das duas camas, com as duas olhando para ver se eu
ficaria mais perto de uma do que da outra, ela colocou duas cadeiras e ali fiquei
deitada. Ouvi minha mãe contando que foi dormir muito preocupada, pensando como
fazer Rebecca entender que eu era uma boneca, mas não uma boneca com que ela
pudesse brincar e fazer o que quisesse com ela. Como fazer Rebecca entender,
que os lacinhos das minhas botas minha mãe não gostava que fossem desatados!!!
Como fazer Rebecca entender, que minhas trancinhas douradas não poderiam ser
desmanchadas e o meu cabelo ficar despenteado!!!. Realmente, seria muito
difícil, mas, ela tinha que pensar em uma boa desculpa, pois nunca, nunca ela
gostaria de magoar as netinhas de que tanto gostava.
Os dias foram passando, quando naturalmente surgiu uma maneira de Rebecca
até querer, que eu voltasse para ficar no berço e coberta com o tal saco
plástico. Foi em um domingo, quando Rebecca pediu para que eu fosse à missa das
crianças junto com ela e Stephanie. Fiquei torcendo para minha mãe deixar, pois
eu nunca havia saído daquela cama desde que chegamos de Londres. Junto com
minha mãe, meu pai e a vó bisa, enquanto descíamos as escadas em direção ao
portão principal do prédio, pessoas que nos encontravam já começaram a querer
saber sobre a minha vida. Comecei a ouvir o mesmo de sempre: “Como é bonita!!!
Parece de verdade!!! Qual o seu Nome???” E assim continuou até o momento em que
entramos na igreja. Todos que me olhavam no colo de Rebecca diziam: “Parece uma
criança de verdade!!!”. Comecei a ficar irritada, pois, como já falei muitas
vezes, o que mais eu gostaria na vida era ser uma criança de verdade... e não
sou. Na igreja sentamos na segunda fila, e logo as crianças que estavam
sentadas na frente viraram, e começaram a fazer perguntas sobre mim, e
felizmente sobre Stephanie e Rebecca também. Pensaram que as duas fossem
gêmeas, e isso as irritavam demais, pois já estavam cansadas de ouvir falar
também sobre isso. Stephanie disse logo assim: “Não estão vendo que o meu
cabelo tem a cor diferente do dela?” Rebecca mais sem paciência do que
Stephanie fez logo um gesto com a boca, mostrando que já estava cansada de responder
a essa mesma pergunta. Felizmente o padre chegou e a missa começou, pois a
nossa família já estava terminando com o silêncio que se deveria ter em uma
igreja. Acabando a missa voltamos para casa, e como era de costume, minha mãe
foi arrumar minha caminha perto de Stephanie e Rebecca. No momento em que me
segurou, minha mãe notou que o meu rosto estava um pouco húmido. Ficou logo
preocupada, e Rebecca muito assustada com os olhinhos arregalados perguntou o
que estava acontecendo. Minha mãe respondeu que deveria ser o ar da praia que
estava afetando o material com que eu havia sido feita, e que ela achava que eu
teria que ficar outra vez coberta com o plástico. Rebecca muito tristonha
perguntou: “Eu não vou mais poder brincar com ela?” Minha mãe ficou com muita
pena, e prometeu que nos fins de semana ela poderia me levar à missa. Rebecca e
Stephanie entenderam e dormiram satisfeitas, após ouvir minha mãe prometer que
eu continuaria a dormir perto delas, mas, coberta com o plástico. Eu não
agüentava mais de tanta felicidade, em saber que essa duas crianças que tinham
muitos brinquedos e muitas bonecas haviam gostado tanto de mim. Penso que eu já
não me importava em ser boneca... pois sabia que eu era muito querida por
crianças tão boas e inteligentes.
Ah!!! Já ia esquecendo de contar o que aconteceu quando pela primeira vez
meus pais foram no apartamento onde moraram. Quando mudaram para Londres meu
pai já não sabia onde colocar tudo que tinham. Assim, resolveu esconder atrás
de uma tábua no alto de um dos armários, vários brinquedos que pertenciam à
seus filhos. Sendo assim, encontraram um trem elétrico, livros de estórias
infantis, jogos diversos e muitas bonecas com suas roupinhas. Para surpresa de
minha mãe havia uma boneca que havia sido de Teresa, que era muito maior do que
eu. Uma outra chamada Mãezinha, pois sempre balançava uma bonequinha no colo,
havia sido de Cláudia. Haviam outras bonecas que tinham sido de Paula. Minha
mãe ficou encantada com as bonecas. Sua imaginação logo começou a trabalhar pensando
em escrever essa estória. Ela queria contar o encontro dessas bonecas comigo,
chegando de Londres, e muito bem vestida usando meu casaquinho Vitoriano.
Pensou logo em levar as bonecas para casa da mãe do meu pai e fazer o nosso
encontro. Assim, quando uma noite voltavam para casa, os dois foram caminhando
pela praia de Ipanema carregando as duas bonecas nos braços. Pessoas que
passavam os olhavam curiosos, não entendendo o porque de dois adultos quase dez
horas da noite carregavam duas bonecas no colo. Uma das bonecas com a cabeça
quase caindo do pescoço, e tendo em um dos lados, uma pequena inchação. Essa
inchação aconteceu devido a um problema que aconteceu na borracha com que foi
feita, como também por ter sido guardada por muitos anos em lugar abafado. O
clima do Rio de Janeiro sendo muito quente não ajudou a conservar o material
com que a boneca havia sido feita. Quando finalmente chegaram em casa da mãe do
meu pai, pude de onde estava deitada, escutar a empregada e a mãe do meu pai
falando muito, admiradas ao ver o que estavam trazendo. Não entendiam o motivo
deles trazerem duas bonecas caindo aos pedaços para sua casa. Mas, após minha
mãe contar que seriam duas personagens de uma estorinha que iria escrever junto
com Charlotte, logo entenderam e até gostaram da idéia
No dia seguinte, logo que minha mãe acordou, ela pegou as
bonecas e iniciou a grande tarefa, a de transformar essas bonecas tão sujinhas, maltratadas e machucadas, em personagens decentes da
estorinha que iria escrever.
Foi assim que pela primeira vez conheci minhas novas
amiguinhas brasileiras. Fiquei com pena, pois os olhos da maior nem a cor deles dava
para ver, estavam cobertos por uma poeira cinza.
O seu pescoço estava caído, e a sua roupa... não era um
vestidinho feito de rendinhas e lacinhos como o meu, era um blusão de homem
estampado e todo colorido. Ouvi minha mãe falando, que era a camisa predileta do
meu pai para usar durante os dias de carnaval. Ela não sabia como colocaram em
uma boneca tão bonita, essa camisa que não combinava nada com bonecas.
Dava pena ver o estado em que a boneca se encontrava.
O seu cabelo apesar de ser muito bonito, estava todo
colado e embaraçado após quatorze anos sem ser penteado. Embora sujo pude
perceber que tinha lindos cachos dourados, na mesma cor das minhas trancinhas.
Gostei muito porque minha mãe me colocou bem perto
dela, e pude ver todos esses detalhes, mas... me fizeram ficar muito triste. Eu tinha certeza, de que minha mãe iria rapidinho dar
um jeito nela, assim como na Mãezinha, que todos já sabiam o nome. Mãezinha
estava quase perfeita, e precisava apenas tomar um bom banho e ver se minha mãe
encontrava o filhinho dela que estava perdido. Foi o que logo a minha mãe fez
após meu pai ter prendido um pouco o seu pescoço que também estava solto. Nas
caixas que ficaram em casa da mãe do meu pai ela procurou mas não encontrou.
Quem sabe algum dia ela encontra no seu próprio apartamento. Eu estava doida
para saber o nome da boneca de Teresa, mas... nem minha mãe lembrava!!!
Ainda bem que fiquei perto delas na
hora do banho. Gostei demais, pois pude ver como bonecas tomam banho. Há dias
eu estava largada em cima da cama sem fazer nada, e já estava ficando triste de
morar no Rio de Janeiro. Charlote, Charlotte, acorda!!! Será que você vai
começar outra vez com seus ciúmes exagerados??? Acho bom gostar dessas bonecas,
pois sem elas você não vai ter nenhuma amiguinha para fazer suas peraltices. E
assim, continuei a ver o que acontecia. Minha mãe colocou a Mãezinha em uma
bacia, e a boneca de Teresa que era bem maior do que eu, dentro de um tanque bem
grande que havia na área de serviço.
As duas bonecas tomaram aquele banho que até eu
gostaria de tomar. Lembro um certo dia, quando ouvi Teresa falando com minha mãe
por telefone que o nome da sua boneca era Amiguinha. Felizmente fiquei sabendo.
Fiquei surpresa e admirada, quando vi minha mãe lavar a cabeça da Amiguinha com
seu melhor xampu, e colocou um creme especial para enxaguar. Se meu pai visse... penso que minha mãe iria levar
uma bronca danada. Será que já estou começando mesmo a ficar com ciúmes dessas
bonecas!!! Toma jeito Charlotte!!! Quem sabe um dia você também vai tomar um bom
banho e quem sabe até ir à praia junto com elas.
Após o banho, minha mãe enrolou uma toalha de
banho cor de violeta na cabeça na boneca de Teresa, e saiu à
procura de alguma roupa que desse nas duas. Antes teve o cuidado de
colocá-las em cima de uma cadeira para pegar um pouco de sol. O dia estava
lindo, e as bonecas pareciam que tinham criado vida.
Os olhos da Amiguinha depois de
limpos, pude ver que eram azuis, e o seu cabelo... era lindo, era dourado
brilhante.
Enquanto olhava como minha mãe cuidava dela, comecei a lembrar o dia em
que minha mãe me comprou na feira de rua em Londres... que diferença. Como
fiquei com inveja da Mãezinha e da Amiguinha... Vestida ainda com meu casaco
vermelho, eu já não agüentava mais de calor. Será que minha mãe não notava que
eu estava vestida demais para o clima do Rio de Janeiro??? Mas, desde que chegou
ao Rio ela só se preocupava com as obras do apartamento e na “reforma” das suas
novas bonecas. Não foi difícil encontrar uma roupa que coubesse na Amiguinha. Uma das blusas de lã da minha mãe que tinha uma gola alta coube
direitinho, ficou parecendo um vestidinho comprido.
No seu cabelo, depois de escovar muito bem, minha mãe amarrou um de seus lenços de seda preto e fino com flores rosa e
vermelhas. Como Amiguinha ficou bonita... Eu só pensava no dia em que Teresa fosse
encontrar Amiguinha outra vez, e ver como estava sendo bem cuidada por minha
mãe. Penso que Teresa cuidava dela, mas foram tantos os anos que ficou
abandonada dentro do armário... O seu defeito no pescoço ficou coberto pela gola
alta. Penso que minha mãe escolheu essa blusa justamente para esconder esse
problema que nunca mais vai poder ser consertado. Quanto a Mãezinha, ficou sem
nenhuma roupinha e sem seu filhinho, mas, mesmo assim ela era bonita. O seu
cabelo era louro, comprido e brilhante. Seus olhos pareciam olhos de uma gatinha
e eram também azuis. Eu até já estava gostando do Rio de Janeiro depois de ter
encontrado Stephanie, Rebecca e essas bonecas que vão ser minhas amiguinhas para
sempre. Resolvi gostar muito delas, e esquecer esse meu ciúme doentio. Já ia
esquecendo de falar que estou doida para conhecer a Caroline. Ouço sempre minha
mãe falar que ela é tão linda, tão linda, que parece uma boneca tirada de uma
vitrina.
Os dias foram passando, e logo cedo meus pais saiam para o
apartamento que estava em obras. Enquanto meu pai fiscalizava as obras do
apartamento, minha mãe abria as caixas com louças e tudo mais que havia chegado.
Uma certa manhã, minha mãe resolveu me levar para nossa futura casa. Falo nossa,
pois é lá que vou ficar junto com eles para sempre. O meu desejo de poder estar
perto de minha mãe no dia em que fosse tirar meus amiguinhos Feliz, Florida,
Pirulita e a bonequinha sem nome das caixas se realizou.
Tive muita sorte, pois, ao invés da minha mãe me levar para
dentro dos quartos, não sei porque, ela me levou para a sala e me colocou bem
perto dela. Fiquei justamente em um lugar onde poderia ver as caixas assim que
fossem abertas. Será que ela adivinhou o meu desejo??? Seria demais, não???
Enquanto abria as caixas, eu torcia para chegar o momento em que a caixa onde
meus amiguinhos haviam sido embalados fosse aberta. E assim aconteceu.
Com todo o cuidado, minha mãe os havia embrulhado em papel
de seda branco.
A primeira coisa que vi foi o lindo
sapatinho vermelho de Florida e depois os rostinhos emgraçados de cada um deles,
parecendo quatro fantasminhas satisfeitos por me verem esperando por eles. Apesar de serem bonecos, pareciam
estar sorrindo e felizes por estarem de novo em casa. Mas… penso que estavam
mesmo é felizes por me verem pertinho deles novamente.
O sorriso de Florida,
parecia mais um sorriso de criança de verdade apesar de ser apenas feita de
tricô.
Feliz, com um de
seus bracinhos de fora parecia ansioso por começar nossas peraltices, junto com
Pirulita e a espantalhinha sem nome. E Doçura??? Onde será que ela estava??? Já
fazia mais de um ano que havia sido levada para o depósito. Como estará o seu
pêlo que já estava caindo??? Doçura também vai ficar muito feliz no dia em que a
caixa onde se encontra for aberta, e a minha mãe arranjar um lugar especial para
ela ficar. Ouvi minha mãe falar que ela iria ficar em cima de uma cadeira, bem
perto de sua cama. E o ar da praia? Será que não vai estragar o pelo de Doçura?
Lugar complicado esse Rio de Janeiro para se morar. Estou ansiosa para saber
onde vou ficar. Bem, mais tarde vou ver. Sossega Charlotte!!! Estou até
parecendo minha mãe, querendo arrumar tudo de uma só vez.
Passaram-se semanas, quando ouvi minha mãe falando com meu pai, que
estava muito preocupada, pois todos os caixotes já haviam sido abertos e Doçura
não havia aparecido. Será que havia sumido algum caixote durante a mudança?
Seria muito azar sumir justamente o caixote em que Doçura se encontrava. Há
muitos dias eu andava muito preocupada, imaginando que Doçura poderia ter
criado vida como acontece comigo algumas vezes, e fugido enquanto os homens
ocupados faziam a mudança. Depois que minha mãe levou Doçura em uma loja muito
chique em Londres para fazer nela uma pequena “cirurgia plástica”, notei que o
comportamento de Doçura já não era o mesmo.
Lembro ainda Doçura deitada na prateleira do móvel
do quarto de meus pais onde ficava. Doçura ficava sempre pensativa. Penso que desde aquela época, já pensava em
deixar a nossa casa. Sempre ouvia Doçura falar, que, se fosse possível, ela
gostaria de criar vida e sair correndo pelas lindas fazendas que existiam na
Inglaterra. Penso mesmo que Doçura não prestava atenção no que meus pais
falavam, assim como nos noticiários da televisão. Em meus sonhos eu sempre via
Doçura como se estivesse ainda deitada calmamente na prateleira da penteadeira
da minha mãe. Quase todas as noites a televisão mostrava centenas de raposinhas
sendo devoradas pelos cachorros que são usados em caçadas para divertir os
donos de fazendas e seus convidados enquanto praticavam esse esporte horrível.
Espero que ela não tenha feito essa bobagem, e que minha mãe possa encontrá-la
em uma das caixas que meu pai embalou os artigos de Natal. Lembro como se fosse
hoje, o dia em que peguei Doçura em frente ao espelho vendo como o seu rabinho novo havia ficado. Doçura agora
enxergava tudo, pois seus olhos também foram trocados. Ela havia ficado
realmente bonita, a não ser o pelo do seu corpo que continuava a cair, e isso a
preocupava muito. Doçura, assim como eu, era muito vaidosa. Como não poderia
ser, se havia ficado exposta em uma vitrina de uma das lojas mais chiques da
Quinta Avenida em New York??? Meu pai lembra muito dessa época, pois morou lá
por alguns meses, êle tinha cêrca de doze anos. Assim, os dias foram passando,
e Doçura não havia sido encontrada. Todos em casa nos sentíamos muito tristes
sempre que pensávamos nela, mas, só podíamos esperar o tempo passar e ver se
Doçura aparecia.
Sem Doçura em casa minha mãe resolveu colocar Amiguinha na
cadeira do seu quarto, onde certamente seria o lugar de Doçura. Enquanto
estávamos sozinhas em casa, eu gostava de colocar a almofada de minha mãe perto
da cadeira, e subir para colocar Amiguinha na posição certa em que gostava de
ficar.
Enquanto
conversávamos, eu sempre falava que assim que Doçura aparecesse ela iria ficar
trancada no armário junto comigo. Amiguinha não gostava de ouvir falar nesse
assunto, pois se sentia muito feliz onde estava. O meu maior desejo seria ver
minha mãe me colocar sentada na sala de visitas, só assim suas visitas iriam
me ver logo que chegassem. Charlotte!!! Charlotte!!! Penso que você está sendo
muito pretensiosa, e isso não fica bem em uma pessoa como você. Bem… não custa
nada sonhar. Quando meu pai diz para minha mãe que ela é uma sonhadora, ouço
quando responde: “O que seria de nossa vida se não vivêssemos dos nossos
sonhos?” Foi assim, que de tanto sonharmos com Doçura, ela apareceu, dentro de
uma caixa onde estava escrito: “Roupa de ballet de Cláudia”.
Nesse momento eu estava perto de meu pai, e assim que se afastou de
mim, peguei Doçura no colo e lhe dei um abraço bem apertado.
Doçura
aconchegou-se no meu colo, e colocou a sua cabecinha em cima do meu braço, como
se não quisesse mais sair de perto de mim. Nunca pensei em ver minha amiguinha outra vez. Doçura era linda e muito
comprida.
O seu rabinho era bem grande, e ficou perfeito, depois que minha mãe
mandou trocar por um novo em uma das lojas mais caras que ficava na Oxford
Street em Londres.
Ouvindo os passos de meu pai, coloquei rapidamente Doçura onde estava
antes, e fiquei olhando o que meu pai iria fazer com ela. E foi assim, que
enquanto minha mãe calmamente assistia televisão, meu pai pegou Doçura e jogou
em cima do seu colo. Minha mãe ficou muito assustada, e não gostou da maneira
com que ele jogou Doçura em seu colo, apesar dele pensar que ela iria ficar
feliz por ter encontrado a Doçura que tanto gostava. Ouvi minha mãe dizer que
pela primeira vez sentiu algo estranho enquanto segurava Doçura. Era como se
estivesse segurando um animal vivo, pois ela sempre teve muito medo de bichos.
Mas, infelizmente Duçura era um bichinho morto, e há mais de cinqüenta anos,
desde quando a mãe do meu pai a comprou para se agasalhar no inverno de New
York. Hoje Doçura é apenas igual a muitos animaizinhos empalhados que existem no
mundo. Que maldade, não? O pelo de Doçura era muito bonito, apesar de estar
caindo desde quando morávamos em Londres. Parecia estar com alguma doença, pois
não se podia segurar em Doçura, que o pelo caia muito, além de estar todo
amassado. Minha mãe olhava para ela com muita pena, e arrependida de ter
colocado Doçura no depósito junto com sua bagagem. Mas, o tempo nunca volta
atrás, e minha mãe já se preocupava com o final que teria que dar à sua Doçura.
Doçura no dia seguinte teria que ser posta na lata de lixo. Assim, quando meus
pais foram dormir, corri para a sala e peguei Doçura para poder ficar alguns
momentos mais junto dela. Doçura sabia qual seria o seu destino, mas, como falar
e mostrar o que sentia se era apenas um simples animalzinho empalhado!!! Nunca
pensei que esse seria o fim de um animalzinho empalhado tão bonito e tão querido
por nós. Como contar essa estória para Feliz, para a espantalhinha sem nome e
Pirulita!!! Todos esperavam com ansiedade o dia em que Doçura fosse encontrada
para continuarmos com todas as brincadeiras que antes costumávamos fazer.
De tanto pensar nessa situação, tive uma brilhante idéia e corri para
chamar os três amiguinhos de Doçura. Contei a verdade, e assim passamos juntos a
última noite de Doçura ainda com vida. O dia já amanhecia quando voltamos aos
nossos lugares de costume.
Assim que minha mãe acordou, ouvi quando falou para meu pai, que teria
que tomar uma decisão sobre a vida de Doçura. Pude sentir o quanto estava
triste quando foi para seu quarto e trouxe uma sacola de plástico bem grande.
No seu rosto pude ver o quanto estava com pena de colocar Doçura na lata de
lixo.
Mas, não havia outro jeito, e Doçura com sua
carinha engraçadinha, foi levada para a área de serviço onde se encontrava uma
lata grande de lixo marrom. Como um fantasminha e sem fazer nenhum barulho,
corri atrás de minha mãe, pois queria estar junto de Doçura naquele momento,
fiquei perto dela até que a tampa da lata fosse fechada. Hoje continuamos nossa
vida sem a nossa amiguinha, e, tenho certeza, de que se fosse possível, minha
mãe voltaria atrás do que fez. Um certo dia, minha mãe querendo nos agradar por
nos achar tristes sem a presença de Doçura, nos colocou fora do armário onde
nos guardava, e nos sentou no sofá do seu quarto de vestir. Fomos arrumados
enfileirados como soldadinhos, e bem perto de uma almofadinha linda que Paula
mandou para minha mãe nos Dia das Mães. Paula nunca esquece dela e sente muitas
saudades.
Fiquei sentada entre Feliz e Florida, e para nossa
surpresa, minha mãe apareceu com uma bonequinha vestida de anjinha com tranças
compridas de lã amarelas. Realmente era muito engraçada... Minha mãe a colocou
sentada bem pertinho de Pirulita. Penso que ela estava pensando substituir essa
anjinha por Doçura em nosso grupinho de amigos. Depois que minha mãe saiu,
curiosos fomos pegar na anjinha, todos pensando qual seria o nome que daríamos à
nossa nova amiguinha. Mas… tivemos uma “ótima surpresa”, pois a anjinha já tinha
um nome... chamava-se LÚCIA, o mesmo nome de nossa mãe. Começamos todos a sorrir
felizes, e sabem por quê? Porque a partir daquele dia, teríamos sempre em nossas
brincadeiras, a nossa querida mãe representada pela anjinha de trancinhas
amarelas. Não é engraçado? A nossa mãe inventa tantas brincadeiras boas… Lembro
quando Stephanie e Rebecca estiveram no Rio, a bagunça que faziam junto de vó
Lúcia. Digo vó Lúcia, porque de Stephanie, Rebecca, Caroline, Matthew e mais
dois netinhos que ainda não conheço chamados Peter Paul e John Paul ela é avó,
mas de mim, de Feliz, da espantalhinha sem nome e de Pirulita, ela é a nossa
querida mãezinha. Nossa mãe agora ganhou mais uma filha e sua xará, a anjinha de
trancinhas de lã amarela. Reparem só como Lúcia é engraçada. Enquanto
brincávamos um dia, Charlotte nos perguntou se achávamos Lúcia parecida com
nossa mãe. Tomamos até um susto com essa pergunta tão absurda, e logo rapidinho
respondemos…
NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!!!
Charlotte chegou a tomar um susto com nossos gritos, e falou: Eu estava apenas brincando!!!
Rio de Janeiro, agosto 2000
MARIA LUCIA DA COSTA