UM BOUQUET DE SAUDOSAS LEMBRANÇAS...

RELEMBRANDO O MEU PASSADO

 

 

Fui a sétima dos noves filhos: três irmãos e seis irmãs, todos nascidos na mesma casa e com a mesma parteira Dona Suzana. Relembrando os primeiros anos de minha vida, lembro quando em um quarto iluminado apenas pelas sombras de uma luz opaca, minha mãe, anos após anos, pacientemente esperava pela hora em que todos nós nascêssemos. Sobre um sofá de palhinha, nossas primeiras roupinhas preparadas com carinho por ela mesma, eram cuidadosamente perfumadas por um aroma vindo de um vaso, onde minha mãe queimava sementes de  ervas cheirosas. A atmosfera neste quarto a meia luz, ficava fresca e agradável e pronta para receber o seu novo neném. Com todo amor e carinho, após termos nascido, nossa mãe sempre nos aquecia junto aos seus seios inchados de leite, preparados para satisfazer a nossa fome e nos fazer felizes e confortáveis em nossos primeiros momentos de vida.

 

 

Muitos anos se passaram, quando a visitei em uma tarde chuvosa e fria. Fraca e doente, aos oitenta anos de idade, com seus olhos escurecidos e sua testa ferida após um tombo que levara. Sozinha, enquanto minha mãe dormia, pensei sobre nossas vidas, nossos dias no passado... sobre essa estória.

 

 

Nasci em um pequena e linda cidade praiana, o lugar mais agradável para se viver quando criança. Lembro um certo dia, após termos feito uma longa viagem junto com meus pais, chegando à cidade, uma velha ponte e uma pequena Igreja no alto do morro, eram os primeiros sinais para sabermos que estávamos chegando em casa e assim terminarmos a longa jornada de volta ao nosso lar. Ao atravessarmos a ponte, à nossa frente avistávamos um grande canal com árvores verdes ao longo de suas margens, dando-nos uma agradável sensação, como se estivéssemos entrando em um mundo encantado. Um vento fresco vindo do mar, tocava nossos rostos, fazendo-nos sentir benvindos à cidade. Ao atravessarmos a rua principal, a velha e imponente Catedral, nos impressionava, como também a todos quando chegavam de viagem. Antes de chegarmos em casa, sempre gostávamos de parar em frente à praia, sentindo saudades após os longos dias de ausência. Areias brancas cobriam a praia por milhas e milhas sem fim. A cor do mar, mudando de azul claro para escuro com nuances de verde, fazia uma bela combinação com o céu em dias de sol. O cenário era verdadeiramente lindo! Ao longe, um velho forte e um farol no alto do morro, bloqueavam parte de nossa visão. Essa era a parte da praia que mais nos amedrontava, um mundo para nós desconhecido e que sempre temíamos. Esse recanto era chamado “Praia do Diabo” e era um contraste com a beleza do mar. Como nos sentíamos felizes, voltando para nossa querida terrinha...

 

 

Nessa cidade pesqueira, passei importante parte de minha vida. Minha família era tradicional na cidade e a maioria de seus habitantes tinham o mesmo sobrenome, meu sobrenome... Azevedo. Esse sobrenome veio de muitas gerações passadas. Meu avô era um imigrante português, poeta e escrevia crônicas para o jornal da cidade. Muitos membros de minha família eram excelentes músicos. Sempre tive orgulho dela, pois quase todos eram pessoas importantes na cidade.

 

 

Meu pai foi um grande industrial ligado à indústria do sal e por muitos anos prefeito da cidade. Como prefeito, esforçou-se o mais que pode, promovendo o crescimento da cidade, fazendo-a florescer de sua letargia. Durante esse período, fez importantes contribuições à cidade, como pavimentando ruas, colocando o primeiro motor à luz, ajudando à igreja local como também a um convento de freiras franciscanas. Iniciou o primeiro curso ginasial, deu inicio a um clube esportivo e doou um terreno suficientemente grande para ser construído o primeiro estádio de futebol o qual hoje tem o seu nome...“Aracy Machado”. Iniciou também a primeira linha de ônibus conectando a nossa cidade com cidades vizinhas chegando até Niterói e introduziu a primeira  banda  de música, assim  como  as  escolas de  samba durante  o  carnaval.  Lembro-me ainda, quando em ocasiões ou festas especiais, os músicos paravam em frente à nossa casa para saudar o meu pai e as baianas entravam para dançar  em nossa varanda. Meu pai possuía  fazendas e seus gados iam periodicamente para exposições fora da cidade. Meu pai sempre ajudou aos pobres, assim como aos que batiam em nossa porta pedindo ajuda. Foi um grande homem, tinha um grande coração e durante toda a sua  vida foi respeitado por todos os filhos.

 

 

No passado, nessa pequena cidade, todas as cerimônias tradicionais eram celebradas com muita festa. Lembro quando por ocasião do Domingo de Páscoa, vestida como um anjo, com camisola de cetim azul, azas brancas eram presas por minha mãe. No meu cabelo previamente enrolado com pedaços de jornais para que ficassem cheios de cachinhos, eram colocados guirlandas de rosas pequenas. Amanhecia quando com os pés descalços no asfalto gelado, eu fazia parte da Procissão da Ressurreição. Andando sem sapatos antes do nascer do sol, era um momento muito especial para mim. Eu sentia prazer quando meus pés tocavam o chão frio, embora pequenas pedrinhas os ferissem algumas vezes. As celebrações permaneciam durante o mês, com todas as pessoas da cidade participando felizes das festividades.

 

 

Outra lembrança do meu tempo de criança, foi quando o primeiro avião pousou em nossa cidade e principalmente, quando um zepelim Alemão foi visto no céu. Foi em um dia chuvoso e frio, quando todos ouvimos um estranho, inexplicável e intermitente som. Rápido abrimos as janelas para ver o que acontecia e, como um terrível monstro, um enorme zepelim cruzava o céu bem em frente a janela de nossa casa. Ficamos todos extasiados com essa grande surpresa, principalmente  nós crianças, que vivíamos nessa pequena cidade. Estarrecidos e assustados, olhávamos aquele objeto que vagarosamente desparecia dos nossos olhos. Foi um momento inesquecível, principalmente para mim que vivia longe do mundo moderno que já nessa época existia. Para nossa surpresa, momentos depois, ouvimos pelo rádio que a aeronave havia caído nas dunas de areia da praia. Pessoas apressadas corriam para ver os danos causados pelo  zepelim, mas felizmente não foram muitos, por ter caído justamente nas dunas. O que mais me impressionou a respeito desse triste evento, na minha imaginação de criança, foi uma capa de chuva comprida, preta e brilhante que alguém do zepelim havia doado à um senhor que morava em nossa vizinhança. Quando eu ouvia alguém falar que o homem com a capa de chuva preta estava chegando em casa, eu corria rápido para o portão em frente à nossa casa esperando que passasse. Mesmo escondida por trás das grades, eu via que era muito gordo, tinha o rosto muito corado e sempre passava com um ar de certa importância, usando sua capa de chuva brilhando como um sapato de verniz. O dia em que o zepelim caiu, tornou-se inesquecível  para mim, porque logo após o zepelim ter caído, nascia o primeiro filho da minha irmã mais velha e no mesmo quarto onde minha mãe teve seus nove filhos. A chuva forte e o acidente nas dunas, junto com o nascimento do meu sobrinho, foram emoções extremamente intensas para uma menina de apenas sete anos.

 

 

Nessa época a cidade ainda não tinha seu próprio aeroporto. Um imenso campo pouco distante da nossa casa, era onde algumas vezes um aeroplano pousava. Assim, para nós crianças, sempre brincando, logo que ouvíamos um barulho estranho parecendo motor de avião vindo do céu, começávamos a correr o mais rápido que podíamos, para chegarmos no campo antes dele.  Nesse momento, o que mais nos fazia felizes, era sentir o vento forte que vinha das paletas de suas hélices em nosso rosto e em nossos cabelos que voavam com o vento. Nós crianças, vivíamos em nosso próprio mundo, feito de inseparáveis e inesquecíveis momentos, brincando, rindo... e felizes. O progresso nessa época, ainda não tinha afetado a beleza do nosso mundo criado pela imaginação de criança.

 

 

A noite de Natal sempre me traz boas memórias do passado em família. Sinto-me feliz ao relembrar esta noite que era bem diferente da que vivemos hoje. Lembro-me ainda de todas as emoções que sentia. Quantas noites sem dormir, quantos dias vivendo momentos de preparação para a festa de Natal. Meses antes muitos ovos eram cuidadosamente usados, para salvar suas cascas que seriam transformados em pequenos palhacinhos com rostinhos felizes, feito por cada um de nós. Todas as noites, logo que terminávamos o jantar, a longa mesa de madeira com bancos ao lado, era preparada por minha mãe. Sobre ela, papéis de seda coloridos, tesouras, fitas e uma cola feita de farinha de trigo, ficava pronta para que pudéssemos começar o nosso trabalho e fazer os enfeites. Todos na família trabalhavam juntos dando  um toque pessoal a cada um deles. Assim todos esperávamos pelo dia 24 de dezembro, quando pela manhã, um caminhão parava em nossa porta da frente trazendo um enorme pinheiro natural. Era o mais alto que já tínhamos visto, alto bastante para alcançar o teto da nossa sala de visitas. Todos nós ficávamos assustados com esse intruso sendo arrastado e carregado por homens fortes pela nossa varanda e que logo ficava em um dos cantos de nossa sala como se fosse uma pessoa muito importante. A nós crianças, só era permitido tocar na árvore com carinho ou brincar de joguinhos, tentando emendar pedacinhos dos galhos do pinheiro espalhados pelo chão. A árvore geralmente era enfeitada na véspera pelos membros mais velhos da família e antes da noite terminar, no dia 24, ela tinha que estar pronta. Como ficava bonita!... Nesta noite, as crianças logo cedo iam para a cama cansadas e ansiosas para que a noite passasse bem rápido. No dia seguinte pela manhã, assim que acordávamos olhávamos em baixo das camas para termos certeza, de que Papai Noel havia trazido os brinquedos que pedíamos. Rapidamente e cheios de curiosidade, corríamos para a sala para vermos a árvore enfeitada com seus enfeites e luzes coloridas. Cada criança tentava identificar os enfeites que tinham preparado com tanto cuidado e carinho. O dia de Natal era alegre, cheio de comemorações e excitação para toda a família. O amor e o carinho estavam em nossos corações enquanto celebrávamos mais uma vez unidos em família... a Noite de Natal.

 

 

Tenho ainda outras lembranças na memória:bons momentos para ressaltar do meu passado. Lembro o tempo quando os trens se moviam a vapor e queimavam carvão. Freqüentemente exigia uma longa viagem para que chegássemos a algum lugar saindo da cidade onde morávamos. Os trens moviam-se tão rapidamente quanto sua idade permitia... E em sua maioria eram realmente bem velhinhos. Lembro distintamente, quando certas viagens duravam o dia inteiro e só chegávamos ao por do sol.  Depois dessa viagem cansativa, nos sentíamos sujos,  empoeirados e famintos. Sentíamos em nossas roupas, em nosso rostos e no ar que respirávamos, quão desagradável havia sido a viagem. Mas, para nós crianças, todo esse incômodo era compensado com boas lembranças ao chegarmos no conforto de nossa casa. Que contraste com os trens que hoje existem, pois se tornaram bem mais agradáveis. Nesses trens modernos podemos viajar lendo, olhando através das janelas o verde dos campos, fazendas cheias de animais, assim como apreciar as flores silvestres que se espalham pelo caminho. Como aprecio agora as viagens de trem... São tão diferentes das antigas!...

 

 

Este foi o mundo em que vivi como criança. Tive uma vida feliz, pois vivi sempre ao lado de meus pais, minha mãe... e meus irmãos. Foram os melhores momentos de minha vida, os quais guardarei sempre vivos em minha memória e especialmente no meu coração.

 

O tempo de repente me acordou desse mundo encantado em que eu estava vivendo durante algumas horas, mundo de fantasia, mundo de imaginação... Um mundo de sonhos. Perto de mim, a minha mãe tranqüila continuava a dormir e quem sabe como eu, tendo os mesmos sonhos, os mesmos pensamentos e as mesmas ansiedades pelo seu futuro. Calma e tranqüila  continuava a dormir. Nesse momento, em sua homenagem escrevi essa poesia

                                       

 

 

MINHA QUERIDA MÃE
  

 

 Um dia vamos deixar essa vida,
 Cada um do seu jeito e na sua hora.
  Realidade verdadeira e cruel,
 Que a nós todos tocará um dia.

 

  

 Pobre Mãezinha...
  Quem não a olha sem sofrer?
  Tal qual um pássaro lindo,
 Pisoteado, amassado no asfalto ela se parecia.

 

  

Sempre alegre e suave,
Sua voz tal qual a dos pássaros se igualava.
 Voz clara e macia
 Que com todo carinho a nós embalava.

 

 

 Do jeito dos pássaros
  Que cuidam do ninhos,
   Da mesma maneira
   Nossa mãe sempre nos servia.

 

 

   Oh! Doce Mãezinha.
 Tão pequena e frágil...
  Parecia um pássaro
  Na muda das penas.

 

 

     As horas passam... o tempo passa... passou a sua vida.
   Vida de medo, vida trancada.
     Assim também como a de alguns pássaros...
Foi a sua vida.


 

 

 

MEMÓRIAS DO PASSADO NOS FAZEM PARECER QUE A VIDA SEMPRE CONTINUA... E NUNCA TERÁ FIM.

 

 

MARIA LÚCIA COSTA