LEGADO DA SOCIEDADE PALESTINA É TER SOBREVIVIDO Por Edward Said O clima político e moral de hoje é bem mais grosseiro e redutor, o papel destrutivo da mídia (que tem destacado quase exclusivamente os ataques suicidas palestinos e os isolado de seu contexto no quadro dos 35 anos de ocupação israelense ilegal) vem sendo maior no sentido de favorecer a visão israelense, o poder dos EUA é mais inconteste, a guerra contra o terror tomou conta mais completamente da agenda global e, no que diz respeito ao ambiente árabe, a incoerência e a fragmentação são maiores que nunca. Os instintos homicidas de Sharon foram fortalecidos e ampliados. Isso significa, na prática, que ele está podendo causar mais mal, de forma ainda mais impune, que antes, embora ele também esteja sendo solapado mais profundamente que antes pelo fracasso que acompanha a negação e o ódio exclusivos, que, em última análise, não alimentam o sucesso político, nem mesmo militar. Os conflitos entre povos, como esse, abrangem mais do que é possível eliminar com tanques e poderio aéreo, e uma guerra contra civis desarmados -não importa quantas vezes Sharon repita seus estúpidos mantras relativos aos terror- jamais poderá trazer resultados políticos realmente duradouros, da espécie que seus sonhos lhe dizem que poderia ter. Os palestinos não vão desaparecer. Ademais, Sharon quase certamente vai terminar desmoralizado e rejeitado por seu próprio povo. Ele não tem plano nenhum, exceto o de destruir tudo o que diz respeito à Palestina e aos palestinos. Mesmo sua irada fixação por Arafat e o terror não faz muito mais que aumentar o prestígio do líder palestino e, ao mesmo tempo, chamar atenção para a monomania cega da posição de Sharon. Em última análise, porém, Sharon será um problema a ser resolvido por Israel. Para nós, a consideração mais importante, neste momento, é fazer tudo o que estiver em nosso poder para assegurar que, apesar do enorme sofrimento que nos é imposto, continuemos a seguir em frente. Cada vez mais americanos e outros estão ficando
desencantados com Israel, vendo-o como um protegido que custa muito caro aos EUA e lhe
suga muitos recursos, que custa demais ao país, aumenta o isolamento americano e
prejudica a reputação do país. 1. Para o bem ou para o mal, a Palestina não é uma causa apenas árabe ou islâmica - ela é importante para muitos mundos diferentes, contraditórios, mas que se entrecruzam. Trabalhar em prol da Palestina significa, necessariamente, ter consciência dessas muitas dimensões e educar-se constantemente nelas. Para isso, precisamos de uma liderança altamente educada, vigilante e sofisticada e do apoio democrático a ela. Sobretudo, precisamos ter consciência de que a Palestina é uma das grandes causas morais do nosso tempo. Portanto, devemos tratá-la como tal. É uma causa justa, que deve permitir que os palestinos alcancem e mantenham a superioridade moral. 2. Existem diferentes tipos de poder, e o poder militar é
o mais evidente. Israel pôde fazer aos palestinos o que vem fazendo nos últimos 54 anos
em consequência de uma campanha cuidadosa e cientificamente planejada para justificar
moralmente as ações israelenses e, ao mesmo tempo, desvalorizar e apagar as palestinas.
Não se trata só de manter uma força militar poderosa, mas de organizar a opinião
pública. Desde o final da Guerra Fria, a Europa se tornou quase insignificante no que diz respeito à organização de opinião, imagens e pensamentos. Excetuando a própria Palestina, a principal arena da batalha é formada pelos EUA. Simplesmente nunca aprendemos a importância de organizar nosso trabalho político, de modo que, por exemplo, o americano médio não pense imediatamente em "terrorismo" cada vez que se diz a palavra "palestino". Israel tem, portanto, podido lidar conosco com impunidade
pelo fato de não contarmos com a proteção de qualquer opinião pública capaz de
impedir Sharon de cometer seus crimes de guerra e dizer que o que ele fez foi combater o
terrorismo. 3. Simplesmente não adianta operar política e
responsavelmente num mundo dominado por uma superpotência única sem contar com profundo
conhecimento e familiaridade com essa superpotência, os EUA, sua história, suas
instituições, suas correntes e contracorrentes, sua política e sua cultura. E,
sobretudo, sem um conhecimento operacional perfeito de sua língua. 4. A lição mais importante de todas a nosso próprio
respeito está manifesta nas terríveis tragédias que Israel está provocando nos
territórios ocupados. Nossa maior vitória sobre Israel é o fato de que pessoas como Sharon e outros de sua laia não têm a capacidade de enxergar isso, e é por isso que estão fadados ao fracasso, a despeito de seu grande poder e de sua crueldade enorme e desumana. Já superamos as tragédias e as memórias de nosso passado, enquanto israelenses como Sharon ainda não o fizeram. Ele irá ao túmulo apenas como matador de árabes e como político fracassado que levou a seu povo mais intranquilidade e insegurança. Parte do legado de um líder certamente consiste em deixar para seus sucessores algo que sirva de alicerce sobre o qual as gerações futuras possam construir coisas novas. Sharon e todos os outros associados a ele nesta campanha repressiva e sádica de morte e carnificina vão deixar para trás apenas lápides de túmulos. A negação gera a negação. Acho que nós, como palestinos, podemos dizer que deixamos uma visão e uma sociedade que vêm sobrevivendo a todas as tentativas de matá-las. E isso é alguma coisa. É alguma coisa para a geração dos meus e dos seus filhos, que poderão partir disso e seguir adiante, de maneira crítica e racional, com esperança e com tolerância. Publicado na Folha de São Paulo de 07/04/02 |