ATUALIDADES
Por Peter Symonds
1/07/2002
No dia 24 de junho, o governo provisório do Afeganistão prestou juramento em rápida cerimônia nos jardins do palácio presidencial. Trata-se de uma grande combinação instável de nomeados, designados para apaziguar a miríade de interesses rivais. Nenhum dos 29 ministros foi eleito - seja direta ou indiretamente. O presidente provisório do país, Hamid Karzai, os escolheu após dias de intrigas e conversas por debaixo dos panos, envolvendo vários líderes tribais e representantes da ONU e dos grandes poderes.
A reivindicação do poder feita por Karzai tem apenas uma fina camada de legitimidade. Ele conquistou o voto na recente loya jirga, a grande assembléia tribal, depois que observadores americanos e estrangeiros pressionaram seus dois maiores rivais, o ex-rei Zahir Shah e o ex-presidente Burhanuddin Rabbani - a se retirarem da disputa. No último dia da reunião, Karzai apresentou 13 de seus ministros aos 1.600 delegados na loya jirga, cuidadosamente selecionados. Não houve debate ou eleição - os ministros foram "aprovados" em questão de minutos com o simples levantar de mãos.
A administração provisória anterior foi instalada por uma conferência organizada pela ONU em Bonn, em dezembro passado. As principais qualificações de Karzai para o cargo de presidente interino foram sua estreita ligação com Washington, inclusive a CIA, que data dos anos 80, e sua etnia. Ele é um l[ider tribal da maioria pashtun. Os postos restantes foram preenchidos levando-se em conta os vários grupos de milícia que foram fundamentais na operação militar americana para derrubar o antigo regime do Taleban - em particular, a Aliança do Norte, que tem por base as minorias hazara, uzbeque e tadjique.
As mesmas rivalidades étnicas e religiosas nortearam as escolhas para o novo governo provisório, com Washington exercendo um poder de veto efetivo por trás dos bastidores. A questão básica que envolveu a barganha entre os grupos foi sobre quem controla as armas e o dinheiro.
No governo anterior, os três mais elevados postos, defesa, interior e assuntos externos, eram ocupados pelos líderes da Aliança do Norte - general Qassim Fahim, Younis Qanooni e Dr. Abdullah Abdullah, respectivamente. Eles são da etnia tadjique do vale do Panjir, protegidos do líder Ahmad Shah Masud, que foi assassinado em setembro do ano passado.
Fahim e Abdullah continuaram em seus postos. Na tentativa de evitar críticas ao trio de líderes pashtuns, Qanooni se ofereceu para renunciar. Mas ele claramente esperava ocupar um outro posto poderoso, em troca de seu gesto. Quando lhe foi oferecido o cargo de ministro da Educação, Qanooni ameaçou abandonar o governo e formar um partido político de oposição. Karzai trouxe-o de volta ao gabinete, criando um cargo especial de conselheiro de segurança presidencial.
Ainda na cerimônia de juramento, Karzai criou um outro cargo de conselheiro de segurança para pacificar os seguidores do ex-monarca, que tinha sido alijado do gabinete. Os monarquistas Arsala Amin e Rasul Amin perderam seus postos nas finanças e educação. Zalmay Rassul, o antigo ministro da Aviação e ajudante próximo de Zahir Shah, ficará com as relações de segurança internacional enquanto Qanuni aconselhará o presidente em questões de segurança interna. Al[em disso, tem o ministro do Interior, Taj Mohammed Wardak, um pashtun de 80 anos e governador de província.
O fato de três pessoas terem sido indicadas para postos de segurança no gabinete só demonstra o grau de desconfiança entre as várias facções. Nenhuma delas está preparada para ver seus rivais ganharem o controle sobre o aparato de segurança. O país é dominado por uma porção de senhores da guerra que competem entre si, comandantes de milícias e líderes tribais - grandes e pequenos. Muitos construíram feudos importantes - Rashid Dostum, em Mazar-i-Sharif, e Ismail Khan, em Herat - de onde controlam tudo.
Rivalidade violenta
Em Cabul, a polícia e agentes de segurança são principalmente soldados da milícia da Aliança do Norte, leais a Qanuni e Fahim. Doze das quinze delegacias de polícia na capital são comandadas por tadjiques do vale do Panshir. Um outro - Mohammed Arif - manteve o controle da agência nacional de inteligência, que foi criticada por sua presença maciça na loya jirga. Após o anúncio de que Wardak substituiria Qanuni como ministro do Interior, a polícia e soldados tadjiques protestaram com bloqueios de estrada e greves.
Fahim tem o controle indiscutível do Ministério da Defesa. No entanto, vários senhores da guerra regionais poderosos foram indicados para uma comissão de defesa nacional, inclusive Ismail Khan, Rashid Dostum e seu rival local, Atta Mohammed, juntamente com Gul Agha, de Candahar. Diferente de outras comissões que se reportam a Karzai, Fahim detém inteira autoridade sobre a Comissão de Defesa Nacional.
Fahim também foi indicado com um dos vice-presidentes do país, o que o torna mais forte na nova administração. De início, o número de vice-presidentes era para ser três, mas o número teve que ampliar para quatro e agora para cinco, numa tentativa de atender aos vários interesses regionais, étnicos e religiosos. Os outros - inclusive o líder hazara, Karim Khalili, o governador pashtum da província de Nangarhar, Abdul Qadir, e o líder usbeque, Nematullah Shahrani - assumiram seus postos em cerimônia separada, no dia 27 de junho.
Karzai manteve um controle rígido, indicando seu conselheiro Ashraf Gani, um ex-funcionário do Banco Mundial, no mais alto posto econômico de Ministro das Finanças. Gani efetivamente controlorá a distribuição de US$ 1.8 bilhão da prometida ajuda financeira para este ano. Um outro antigo funcionário do Banco Mundial, Juma Mohammed, foi indicado como ministro das Minas.
O caráter antidemocrático da loya jirga e as escolhas ministeriais receberam consideráveis críticas, dentro e fora do Afeganistão.Um artigo intitulado "O Afeganistão consegue um governo provisório esboçado pelos Estados Unidos", na última edição do jornal inglês, The Friday Times (TFT), comentou: "Ao que tudo indica, nada saiu diferente do roteiro pré loya jirga preparado pelos Estados Unidos para a criação de um regime provisório no Afeganistão. Muitos críticos disseram ao TFT que não houve uma tentativa de se acabar com a liderança dos senhores da guerra que levou o país a uma perda nas últimas duas décadas."
"Todos estão no gabinte. Na verdade, seu papel foi santificado", disse um analista em Cabul ao jornal. Um pesquisador do Human Rights americano, Saman Zia-Zarifi disse ao TFT: "Os senhores da guerra afegãos são mais fortes hoje do que eram há dez dias atrás, antes de começar a loya jirga. Expediente de curto prazo triunfou sobre os direitos humanos."
Em uma declaração à imprensa, o Human Rights chamou a atenção para a indicação de um clérigo islâmico conservador, Fazul Hadi Shinwari, como responsável pela Justiça no país, dizendo que era uma indicação que trazia preocupação com relação aos direitos humanos. "Em janeiro,Shinwari foi citado nas entrevistas de imprensa, como tendo dito que as punições previstas na Shariah (a lei islâmica), inclusive apedrejamento e amputação, seriam mantidas, embora com mais garantias do competente processo do que durante o governo do Taleban."
Shinwari e outros líderes islâmicos já começaram a impor seus conceitos sociais reacionários, bloqueando efetivamente a indicação de Sima Samar como ministra para as questões da mulher. Ela ficou sujeita a uma torrente de críticas e ameaças sob a alegação de que teria dito a um jornal canadense que se opunha à Shariah. Shinwari declarou que suas palavras eram "contra a nação islâmica do Afeganistão". Outras a definiram como a "Salman Rushdie do Afeganistão" - aí subentendido que seria condenada a morte. Samar assumiu o cargo de chefe da Comissão de Direitos Humanos do país.
A influência de Shinwari e de outros clérigos conservadores é apenas um indicação do caráter antidemocrático de todo o processo. O gabinete de Karzai é o resultado das sórdidas negociações realizadas entre os líderes tribais - com cada etapa aprovada pelos Estados Unidos e por outros poderes maiores, para garantir que seus interesses na região fiquem protegidos.A grande maioria do povo afegão não teve participação no governo que regulará sua vida.
(*) Peter Symonds é um jornalista australiano, membro do Conselho Editorial do WSWS, World Socialist Web Site [http://www.wsws.org].