ATUALIDADES
O RETORNO AO AFEGANISTÃO: EFEITO COLATERAL
Por Robert Fisk - 06/08/02
Aproxima-se o primeiro aniversário dos ataques de 11 de setembro e da "guerra contra o terror" que se seguiu logo depois. Para marcar a data, o Independent inicia, hoje, uma nova série de reportagens especiais de nosso correspondente no Oriente Médio, Robert Fisk. Em seu primeiro comunicado do Afeganistão, ele conta a história fantástica de Hajibirgit, uma aldeia mínima no sudoeste do país, onde um ataque das Forças Especiais dos Estados Unidos matou um velho e uma menina de 3 anos ...
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A "guerra contra o terror" do
presidente Bush chegou à aldeia deserta de Hajibirgit, à meia-noite do dia 22 de maio.
Haji Birgit Khan, um velho líder tribal pachtun de 85 anos e chefe de 12.000 famílias
tribais da região, estava deitado no gramado do lado de fora de sua casa. Faqir Mohamed
estava dormindo entre suas ovelhas e cabras, num monte de areia mais ao sul, quando ouviu
"grandes aviões voando no céu". Mesmo à noite, é tão quente que muitos
aldeões preferem passar algumas horas da escuridão fora de suas casas, embora Mohamedin
e sua família estivessem dentro dos limites de sua propriedade. No dia 22 de maio, havia
105 famílias em Hajibirgit, e todas foram despertadas pelo estrondo dos helicópteros e
das
hélices e vozes dos americanos gritando.
Haji Birgit Khan foi visto correndo angustiadamente de seu pequeno gramado para a
mesquita de muro branco da aldeia, um prédio retangular de cimento, com um único
alto-falante e alguns surrados tapetes. Depois, o que se viu foram vários homens armados
correndo atrás dele. Hakim, um dos pastores de animais, viu os homens dos helicópteros
caçando o velho dentro da mesquita e ouviu uma rajada de metralhadora. "Quando nossa
gente o encontrou, ele tinha sido morto com uma bala na cabeça", disse, apontando
para baixo. Há apenas um único buraco de bala no chão de concreto da mesquita e uma
mancha de sangue seco ao lado. "Nós encontramos pedaços de seu cérebro na
parede."
Por toda a aldeia ouvia-se explosões nos quintais e portas das pequenas casas. "Os americanos estavam lançando granadas sobre nós e bombas de fumaça", lembra Mohamedin. "Eram dezenas de granadas sobre nós e eles berravam o tempo todo. Não compreendíamos a sua língua, mas havia atiradores afegãos entre eles também, afegãos com os rostos pintados de preto. Muitos começaram a amarrar nossas mulheres e os americanos levantavam suas burqas para olhar seus rostos. Foi quando se viu uma menina fugindo". Abdul Satar diz que ela tinha três anos de idade e que saiu correndo de sua casa gritando de medo, que seu nome era Zarguna, a filha de um homem chamado Abdul-Shakour, que alguns a viram cair a poucos metros do poço do outro lado da mesquita. Durante a noite ela ficou ali, sozinha, com as costas machucadas pela queda, talvez. Outras crianças da aldeia encontraram seu corpo na manhã seguinte. Os americanos não prestaram atenção. Na descrição das roupas usadas por eles feita por alguns aldeões, parece que eles incluíram as Forças Especiais e também as unidades das Forças Especiais Afegãs, as brutais e indisciplinadas unidades, saindo do antigo quartel-general da polícia secreta Khad, de Cabul. Havia também 150 soldados do US 101 Airbone, cuja base é em Fort Campbell, no Kentucky. Mas, Fort Campbell está bem distande de Hajibirgit, que por sua vez, se está a uns 15 km ao sul de Candahar. E os americanos estavam obcecados com uma idéia: a de que na aldeia estariam líderes do Talebã e do movimento al-Qaida, de Osama bin Laden.
Um ex-integrante da unidade das Forças Especiais da coalizão formada pela América, dava sua própria explicação para o comportamento dos americanos, quando o encontrei alguns dias mais tarde. "Quando entramos numa aldeia e vemos um fazendeiro de barba, o que vemos é um fazendeiro afegão de barba", disse ele. "Quando os americanos entram na aldeia e vêm um fazendeiro de barba, o que eles vêem é Osama bin Laden".
Todas as mulheres e crianças receberam ordens para se juntar no final de Hajibirgit. "Eles nos empurravam e nos arrancavam de nossas casas", diz Mohamedin. "Alguns dos atiradores afegãos gritavam ofensas para nós. A todo o momento, atiravam grandas em nossas casas." Os poucos aldeões que conseguiram fugir pegaram as granadas no dia seguinte com a ajuda das crianças. Havia dezenas delas, pequenos artefatos verdes, cilíndricos, com nomes e códigos estampados de um lado. Um diz "7 BANG Delay: 1.5 secsNIC-01/06-07", um outro "1 BANG, 170 dB Delay: 1.5s." Um outro cilindro diz: "DELAY Verzagerung ca. 1,5s.". Eram as granadas que aterrorizaram Zarguna e que finalmente causaram sua morte. Uma parte do equipamento regular das Forças Especiais dos Estados Unidos, é manufaturada na Alemanha pela firma de Hamburgo, Nico-Pyrotechnik, daí as iniciais NIC em vários cilindros. "dB" são os decibéis.
Vários rótulos de datas mostram que as granadas foram feitas em março último. A companhia alemã se refere a elas oficialmente como "40mm by 46mm sound and flash (stun) cartridges".Mas os americanos também estavam atirando balas. Muitas delas perfuraram um carro destruído, onde um outro aldeão, um motorista de táxi chamado Abdullah, estava dormindo. Ele ficou gravemente ferido. Assim também o filho de Haji Birgit Khan.
Um porta-voz militar dos Estados Unidos alegaria mais tarde que os soldados americanos tinham "chegado debaixo de fogo" na aldeia e tinham matado um homem e ferido dois" suspeitos de pertencerem ao Talebã ou a Al-Qaida. A sugestão de que Haji Birgit Khan, de 85 anos, fosse um atirador é evidentemente um absurdo.
Os dois feridos eram supostamente o filho de Khan e Abdullah, o motorista de táxi. A afirmação dos Estados Unidos de que eram do Talebã ou da Al-Qaida era uma mentira deslavada, uma vez que os dois foram libertados depois. "Alguns dos afegãos que os americanos trouxeram com eles gritavam 'Cale a boca!' para as crianças que choravam", se lembra Faqir Mohamed.
"Eles nos fizeram deitar e colocaram algemas em nossos pulsos, uma espécie de algemas de plástico. Quanto mais tentávamos tirá-las mais elas apertavam e mais elas machucavam. Então, eles vendaram nossos olhos. Em seguida, começaram a nos empurrar para os aviões, dando murros enquanto tentávamos caminhar."
No total, os americanos juntaram em seus helicópteros 55 dos homens da aldeia, de olhos vendados, com as mãos amarradas. Mohamedin estava entre eles. E também Abdul-Shakour, sem saber ainda que sua filha estava morrendo perto do poço. O 56° prisioneiro afegão a ser carregado para o helicóptero já estava morto: os americanos decidiram levar o corpo do velho Haji Birgit Khan com eles.
Quando os helicópteros aterrissaram no aeroporto da base de Candahar, os aldeões foram amontoados em um container. As pernas foram amarradas e as algemas e a amarra de uma perna de cada prisioneiro foram presas separadamente a estacas fincadas no chão do container. Sacos grossos foram colocados em suas cabeças. Abdul Satar estava entre os primeiros a ser tirado desta pequena prisão. "Dois americanos entraram e rasgaram minhas roupas", disse ele. "Se as roupas não se rasgassem eles as cortavam com tesouras. Eles me levaram para fora, nu, para ser barbeado e tirar retrato. Por que eles me barbearam? Sempre usei barba durante toda a minha vida."
Mohamedin foi levado nu da "barbearia" para interrogatório em uma barraca, onde a venda dos olhos foi removida. "Havia na sala um tradutor afegão, um pashtun com o sotaque de Candahar, juntamente com soldados americanos, homens e mulheres soldados", diz ele. "Eu fiquei de pé, nu de frente para eles, com minhas mãos amarradas. Alguns dos soldados estavam sentados e outros de pé. Eles me perguntaram: 'O que você faz?' Respondi: 'Sou pastor, por que não pergunta para os seus soldados o que eu estava fazendo?' Eles disseram: "Diga-nos você mesmo.". Então, eles perguntaram: 'Que tipo de armas você usou?' Eu lhes disse que não tinha arma alguma.
"Um deles perguntou: 'Você usava armas durante a ocupação russa, a guerra civil ou o período Talebã?' Eu lhes disse que durante muito tempo eu havia sido um refugiado." Do testemunho dos aldeões, é impossível identificar quais as unidades americanas envolvidas nos interrogatórios. Alguns soldados americanos estavam vestindo boinas com emblemas amarelos ou marrons, outros estavam à paisana mas aparentemente usando chapéus de palha. O intérprete afegão estava vestido em seu tradicional salwah khameez. Hakim sofreu uma sessão de interrogatório um pouco mais longa; como Mohamedin, ele também ficou nu diante de seus interrogadores.
"Eles queriam saber da minha idade e atividade. Eu disse que estava com 60 anos, e que eu era um fazendeiro. Eles perguntaram: 'Existem muitos árabes, ou talebãs, ou iranianos, ou estrangeiros em sua aldeia?' Eu disse 'Não.' Eles perguntaram: 'Quantos cômodos tem em sua casa e você tem telefone móvel?' Eu lhes disse: 'Não tenho telefone. Sequer tenho eletricidade.' Eles perguntaram: 'Os talebãs eram bons ou maus?' Respondi que o talebã nunca chegou em nossa aldeia por isso não podia dar qualquer informação a respeito deles. Então eles perguntaram: 'E sobre os americanos? Que tipo de gente são os americanos?' Respondi: 'Ouvi dizer que eles nos libertaram com Karzai (presidente Hamid) e nos ajudaram mas não sabemos qual foi o nosso crime para sermos tratados desta forma.' O que eu deveria ter dito?"
Algumas horas mais tarde, os aldeões de Hajibirgit receberam roupas de um amarelo brilhante e foram levados para várias gaiolas no chão de areia da base aérea, uma versão menor de Guantanamo Bay, onde receberam pão, biscoitos, arroz, feijão e garrafa d'água. Os rapazes foram mantidos em gaiolas separadas dos mais velhos. Não houve mais interrogatório, mas eles ficaram enjaulados por mais 5 dias. Todo o tempo, os americanos tentavam descobrir quem era o homem de 85 anos. Eles não perguntaram aos prisioneiros quem poderia identificá-lo, embora os interrogadores americanos talvez não quisessem que os prisioneiros soubessem que ele já estava morto. No final, os americanos deram uma fotografia do cadáver para a Cruz Vermelha Internacional. Disseram à organização em Candahar, que o velho era, talvez, o mais importante líder tribal da cidade.
"Quando finalmente nos tiraram das gaiolas, havia 5 conselheiros americanos esperando para falar conosco", diz Mohamedin. "Eles usaram um intérprete e nos disseram que queriam que aceitássemos seus pedidos de desculpas pelo mau tratamento dispensado. Disseram que estavam tristes. O que podíamos dizer? Nós éramos os prisioneiros. Um dos conselheiros disse: 'Nós os ajudaremos.' O que isto significa?" Uma frota de helicópteros levou os 55 homens para o campo de futebol de Candahar, outrora cenário das execuções do Talebã, onde todos foram libertados, ainda vestidos com as roupas da prisão e com braceletes de identificação no pulso com um número." "Ident-A-Band Bracelet made by Hollister", estava escrito em cada um deles.
Somente então os homens souberam que o velho Haji Birgit Khan tinha sido morto durante o ataque da semana anterior. E somente então, Abdul-Shakour soube que sua filha Zarguna estava morta.
O Pentágono inicialmente disse que achava
"difícil acreditar" que mulheres aldeãs tinha tido suas mãos amarradas. Mas,
levando em conta descrições idênticas do tratamento dispensado ás mulheres afegãs
depois do bombardeio americano na festa de casamento de Uruzgan, que se seguiu ao ataque
de Hajibirgit, parece que os americanos ou seus aliados afegãos fizeram isto sim. Um
porta-voz do exército americando alegou que as forças americanas encontraram "itens
de importância para a inteligência", armas e uma grande quantidade de dinheiro na
aldeia. Que "itens" eram estes, nunca foi esclarecido. As armas certamente eram
para proteção pessoal contra ladrões. O dinheiro permanece um ponto delicado para os
aldeões. Abdul Satar disse que ele tinha 10.000 rúpias paquistanesas e que levaram dele
US$200(130). Hakim diz que ele perdeu as economias no valor de 150.000 rúpias, US$3.000
(1.900). "Quando eles nos libertaram, os americanos deram 2.000 rúpias para cada
um", disse Mohamedin. "São só US$40. Gostaríamos de saber para onde foi o
nosso dinheiro."
Mas, havia uma tragédia muito maior aguardando os homens assim que chegaram a Hajibirgit.
Na sua ausência, sem as armas para defenderem suas casas e com o velho morto e muitos dos
companheiros feitos prisioneiros pelos americanos, ladrões chegaram a Hajibirgit. Um
grupo de homens da província de Helmand, cujo líder é Abdul Rahman Khan, um antigo
"mujahid" brutal e voraz, que lutou contra os russos, e agora
comandante da polícia do governo de Karzai, atacou a aldeia assim que os americanos
partiram com vários homens da aldeia. Noventa e cinco das cento e cinco famílias fugiram
para as montanhas, deixando para trás suas casas para serem saqueadas.
As questões perturbadoras e terríveis que assaltam a mente de qualquer pessoa que atravesse a deserta Hajibirgit de hoje são óbvias. Quem disse para os Estados Unidos atacarem a aldeia? Quem disse que as lideranças do Talebã e da Al-Qaida estavam lá? Será que Abdul Rahman Khan, o cruel chefe de polícia cujos homens rapidamente saquearam as casas assim que acabou o ataque americano, já estava lá? Hoje, Hajibirgit é uma aldeia fantasma, seu líder está morto, a maior parte das casas abandonadas. O ataque dos Estados Unidos foi inútil. Ficaram uns poucos 40 aldeões. Todos eles se reuniram no túmulo de Zarguna há alguns dias atrás para honrar a memória da menina. "Somos um povo pobre, o que podemos fazer?", me pergunta Mohamedin. Não tive resposta. A guerra contra o terror" do presidente Bush, sua luta do "bem contra o mal", se abateram sobre a inocente aldeia de Hajibirgit.
E agora, Hajibirgit está morta.