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ATUALIDADES

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'SOMOS OS ESQUECIDOS'

Os chechenos sabem que foram esquecidos pelo ocidente.

Por Anne Nivat

O dramático acidente com um helicóptero militar russo, ocorrido na Chechênia esta semana, no qual mais de 100 membros dos serviços armados foram mortos, foi uma advertencia para o ocidente de algo que muitos se esqueceram nos últimos anos; A guerra na Chechênia continua. Pode ser pior do que nunca.

Nos últimos três anos, viajei intensamente pela pequena e montanhosa república, determinada a relatar de forma justa este esquecido conflito, que o Kremlin gostaria muitíssimo que o resto do mundo ignorasse. O ocidente precisa saber que as perdas reais se deram, em sua grande maioria, entre civis chechenos,  governos locais pró-independência, a economia chechena e a pacífica cultura mulçumana sufi da população.

Na falta de sucessos militares expressivos, os russos conseguiram evitar a crítica ocidental definindo o conflito como uma "operação antiterrorista". Mostraram o povo checheno como terroristas sanguinários que queriam impor a lei islâmica nas outras repúblicas do Cáucaso. Atualmente, até moscovitas instruídos dizem normalmente que não há nada de errado nas mortes de chechenos não combatentes, até mesmo de bebês.

Ao voltar para a Chechênia, em junho, esperava encontrar uma situação "em  processo de normalização", conforme diz o Kremlin. Funcionários de alto escalão disseram várias vezes que, desde março de 2000,   "a fase militar acabou" na Chechênia. Na verdade, o que encontrei foi uma situação se deteriorando.

Muitos chechenos estão preocupados em planejar formas de evitar os "zachistkas",  ataques assustadores e fora de controle às aldeias, praticados por soldados mascarados em busca de rapazes chechenos. Tais operações são realizadas todos os dias pelo exército russo. Em seguida, as famílias saem em busca do destino dos entes queridos que foram arrastados de suas casas. Em todas as aldeias, rapazes desapareceram. Alguns com mais sorte retornam depois que seus familiares pagam por sua libertação. Muitos jamais retornam. Os chechenos com quem resisti a longas horas de um bombardeio aéreo, no auge da guerra no inverno de 1999-2000, falam do receio de que todo homem com a idade entre 12 e 60 possa desaparecer a qualquer momento sem deixar vestígios.

Eu viajei usando o traje de uma camponesa chechena, lenço amarrado em volta da cabeça, uma saia comprida arrastando nos meus tornozelos e um telefone celular preso à barriga. Desde o início não quis participar das excursões organizadas pelos russos. Certo dia de 2000, enquanto meus colegas visitavam um mercado de flores em Grozny, a capital do país, com um acompanhante do governo, eu consegui fazer meu próprio roteiro, indo  a um mercado de armas perto dali. Os serviços secretos russos finalmente me encontrarm em fevereiro de 2000 e me mandaram de volta para Moscou, mas consegui voltar clandestinamente mais tarde.

Os chechenos sabem que foram esquecidos e não mais esperam uma intervenção ocidental como a ocorrida no Kosovo. Eles sabem que as organizações de ajuda ocidentais acham a região muito perigosa para se aventurarem nela, por causa da luta continuada e do risco de sequestro. Alimento, abrigos e remédios são distribuídos em quantidades insuficientes e a intervalos irregulares.

Os chechenos ficaram obcecados por três coisas: como sobreviver nesse ambiente hostil, como passar a salvo pelos vários postos militares de fiscalização russos nas estradas e como evitar que os rapazes sejam sequestrados. "Nós somos os esquecidos", disse-me Tabarka Lorsanova, de 46 anos, quando eu a vi de novo em junho.

Ela falou muito a mesma coisa quando eu a encontrei pela primeira vez, em novembro de 1999. Ela fugiu de Grozny para uma aldeia próxima no sul do país, onde pensou que estaria segura. Agora, de volta à casa na capital, ela estava tentando reconstruir sua vida a partir do monte de ruínas onde outrora existiam as lojas, agora sem eletricidade, aquecimento ou água corrente.

Tabarka tem apenas um filho e não quer perdê-lo. Em abril de 2001, ele desapareceu durante um ataque à Universidade de Grozny, numa operação que deixou os estudantes em estado de choque. A mãe se recorda como ela discutiu com os soldados russos que haviam cercado o prédio e a impediam de entrar. Após insistir por duas horas, finalmente ela conseguiu entrar com um grupo de outros pais ultrajados.

Dez estudantes foram presos, um deles seu filho, pelo simples fato de que ele "não se parecia com a fotografia do passaporte". Todos acabaram sem soltos, mas dois tiveram que pagar um resgate de US$1.800, cada. Tabarka resume bem a perplexidade da população chechena com relação ao comportamento da máquina militar russa: "Assim que Putin anunciou que a guerra tinha acabado, nós entendemos que, pelo contrário, a situação tinha piorado. Após tantos horrores, como vamos confiar neles?" Para muitos chechenos, a declaração do presidente russo marcou o início da "era dos zachistkas".

Cheguei em Meskert-Yurt, uma aldeia de 5.000 habitantes, dois dias após o fim de uma dessas operações "limpeza", uma excepcionalmente longa, que durou de 21 de maio a 11 de junho. O que vi desafia qualquer descrição. Em maio passado, num cenário que se repete sempre, a aldeia foi lacrada - cercada pelos soldados russos mascarados. Embora uma ordem do Kremlin conhecida como "Decreto N° 80" proíba máscaras e obrigue a identificação dos soldados e dos objetivos do ataque, isto foi ignorado pelos autores do cerco.

O método em todas essas operações é o mesmo: sob o pretexto de procurar rebeldes, o exército entra nas casas, aterroriza as famílias e arrasta um ou mais civis masculinos, principalmente entre os mais jovens, mesmo que os documentos sejam autênticos. Alguns dias mais tarde, alguns familiares dos desaparecidos são informados por intermediários da possibilidade de "recompra" de seus entes queridos com dinheiro ou rifles.

Em Meskert-Yurt, a maioria das casas são fazendas, com criação de gansos, galinhas e perus, algumas vezes de vacas e cavalos. Numa tarde ensolarada de quinta-feira, a única coisa que pude ver foram os habitantes da aldeia estupefatos, revirando os campos e valas em todas as direções em volta das fazendas, para recuperar os corpos ou partes dos corpos de seus entes queridos. Quando encontrei Maaka, 43 anos, mãe de 6 filhos, ela já não conseguia mais chorar. Seus três filhos, Aslan, de 15 anos, Makmud, de 13, e Rashid, de 11, tinham sido mortos por soldados enfurecidos, depois de terem sido terrivelmente mutilados. Ela me mostrou os corpos alinhados ao lado de vários outros. Eu não vi uniformes militares entre os ossos quebrados e pedaços de carne, mas vi um lenço de mulher e um tênis de basketball de adolescente. Olhos projetados, carne ensanguentada pendurada em crâneos esmagados, algumas vezes o suficiente para exibir a expressão de terror no momento da morte.

No sexto dia do bloqueio, algumas mulheres incrivelmente determinadas conseguiram fazer passar uma carta com o pedido de SOS aos habitantes da cidade vizinha de Argun, que retransmitiram para o kommandantura (quartel-general russo. Alertado, o chefe da administração chechena, Akhmed Kadyrow, tentou, então, ir ao lugar mas não obteve a permissão para entrar. Depois, foi a vez de Aslanbek Aslakhanov, o único deputado checheno na Duma (câmara baixa do parlamento russo), tentar furar o bloqueio. A pé, pelos campos, ele conseguiu com grande dificuldade entrar na aldeia. Quatro dias mais tarde, o zachistka tinha acabado e 40 pessoas haviam desaparecido.

Esta é a nova estratégia do exército russo: evitar o combate formal e bombardeio aéreo e multiplicar os ataques clandestinos sob o pretexto de que terroristas se escondem nessas aldeias.

Os russos identificaram 4 "terroristas" principais, que precisavam ser capturados para acabar a guerra. Entrevistei todos com exceção de um e não tive problema em conseguir seus esconderijos. Em três anos de guerra. somente um dos quatro foi eliminado, um comandante de origem saudita, que se autodenominava Khattab e que morreu em abril último. Na Chechênia, ninguém acredita que Khattab tenha sido morto pelo serviço secreto russo. Diz-se que ele foi vítima de outros militantes que queriam suprimir qualquer evidência de uma conexão com a al-Qaida ou que simplesmente já não precisavam mais dele.

O exército russo deve saber exatamente onde os líderes rebeldes se encontram, graças às informações interceptadas de chamadas de telefones celulares, de fotografias aéreas ou de informações obtidas através de tortura. Contudo não houve qualquer movimento no sentido de matá-los ou capturá-los. Por que? Talvez porque enquanto a guerra continuar, o pessoal militar mal pago consegue aumentar sua renda oprimindo os civis. Agora ficou impossível cruzar qualquer posto de fiscalização na Chechênia sem subornar um soldado, geralmente um jovem recruta. E os benefícios são divididos com os oficiais. Quando um carro pára, o motorista recebe "o formulário n° 10", que significa que uma nota de 10 rublos deve estar dobrada dentro do passaporte. Algumas vezes o soldado pode pedir uma quantia bem maior, "formulário n° 50", talvez. Em razão disto, poucos civis podem se deslocar dali. As pessoas ficam em casa, mesmo quando tem a ameça de zachistka.

Não há um clamor no ocidente a respeito de uma guerra acontecendo nas extremidades da Europa. Parece que aceitamos a justificativa da Rússia: ou seja, é uma guerra contra o terrorismo, também. O presidente Vladimir Putin é bem recebido como colega e tratado como amigo - principalmente depois de 11 de setembro - pelos chefes de estado de toda a Europa e nos Estados Unidos. Mas, ao mostrar sua determinação de riscar a civilização chechena do mapa para impedir a independência de um povo, a Rússia nos diz bastante sobre como se comportaria com seus próprios cidadãos sob o pretexto de "manter a ordem".

Por enquanto, Tabarka, Maaka e milhares de outras mães, os velhos e as crianças da Chechênia aguardam. Não têm outra opção. Tabarka está vivendo em dois cômodos pequeníssimos de sua casa em um dos mais devastados bairros de Grozny. Contadora profissional antes da guerra, ela gostaria de achar um emprego na administração chechena indicada pelo Kremlin, mas isto só é possível subornando oficiais e ela não tem dinheiro. Seu filho, agora com 24 anos, está em Odessa, Ucrânia, tentando avida enquanto espera que a guerra acabe. No momento, ela o proibiu de voltar para casa.

Anne Nivat é uma escritora sediada em Moscou. Seu livro   "Chienne de Guerre: A Woman Reporter Behind the Lines of the War in Chechnya", ganhou o prêmio Albert Londres na França.

© 2002 The Washington Post Company
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A42397-2002Aug20.html
Quarta-feira, 21/08/02, pág. A 17
 

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