
ATUALIDADES
PARA COMPREENDER AS REVOLTAS NO IRAQUE
Por Sami Zubaida
A causa básica da turbulência atual no Iraque é a insatisfação e a desilusão de
grande parte da população. Um ano após a ocupação e a derrubada do regime de Saddam
Hussein pelas forças da coalizão liderada pelos Estados Unidos, a grande maioria dos
iraquianos está vivendo em situação pior do que antes.
A pobreza, a insegurança, as deficiências na infra-estrutura deficiente e, sobretudo, o
desemprego, tudo aumentou de maneira maciça. Essa é uma população que sempre dependeu
do governo para seus empregos e sua subsistência. Por pior e mais opressor que fosse, o
governo sempre atendia a essas necessidades.
O primeiro -entre muitos- erro das autoridades de ocupação foi ter dissolvido o
Exército, composto de cerca de 450 mil homens, sem salários ou pensões, mas deixando
que os soldados levassem suas armas.
Estima-se que 2 milhões de iraquianos dependessem do Exército e dos salários que ele
pagava. Sua dissolução multiplicou o desemprego e a miséria e contribuiu para dar
munição à insurgência. Um ano já se passou, e essas frustrações alimentam
sentimentos cada vez mais agudos de oposição à ocupação, mesmo entre os setores que,
num primeiro momento, eram favoráveis a ela, e também entre os muitos que só querem
viver tranqüilamente, mas não conseguem.
A investida americana recente contra Fallujah (região oeste do Iraque) e o massacre de
civis na cidade provocaram um aumento enorme na raiva e no ultraje sentidos em todos os
setores da população iraquiana. Ela despertou um sentimento forte de nacionalismo
iraquiano.
Mas existem elementos diversos e contraditórios em operação por baixo da superfície.
As duas insurreições recentes -uma no chamado Triângulo Sunita e outra dos seguidores
xiitas de Moqtada al Sadr- divergem em pontos cruciais.
A insurgência sunita é niilista. Ela não possui programa político aparente nem
tampouco anuncia seus protagonistas. Visa causar o máximo possível de danos e confusão
e impedir o estabelecimento da ordem e da normalidade. Suas duas alas, a saddamista e a
islâmica, têm agendas distintas.
Os saddamistas querem pressionar os Estados Unidos a deixar o país, de maneira que tenham
a chance de restabelecer sua hegemonia antiga. Os islâmicos querem que as forças
americanas permaneçam, para que possam golpeá-las.
Liderada por Moqtada al Sadr, a insurreição xiita é política na medida em que visa
fazer manobras em busca do poder, com um programa e um conjunto de reivindicações
próprios.
Al Sadr é uma figura nova e arrogante na paisagem política xiita. Ele é jovem e
destituído de autoridade ou carisma religiosos, exceto o que herdou de seu pai, e mesmo
essa herança é discutida.
O sucessor designado de Al Sadr, pai, é Kadhim al Haeri, que vive na cidade iraniana de
Qum e é ideologicamente khomeinista [seguidor do aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da
Revolução Islâmica do Irã em 1979 e morto em 1989], mas não faz parte do
establishment religioso-político principal do Irã. A convivência entre Haeri e Al Sadr,
filho, é complicada.
Os escritórios e agentes de Moqtada al Sadr no Iraque continuam a evocar a autoridade de
seu pai, já morto, inclusive cobrando tarifas e exercendo autoridade em nome dele.
Isso é algo que não se justifica na doutrina xiita: a autoridade de um
"mujtahid" (aquele que aplica a lei islâmica) vem dele próprio, e os fiéis
devem seguir um clérigo vivo. Moqtada al Sadr procura passar por cima desse status
ambíguo e enfrentar seu rival aceito, para isso adotando uma postura militante.
Moqtada al Sadr adota uma postura política e militante contra o grande aiatolá Ali al
Sistani, a autoridade principal dos xiitas iraquianos.
Al Sistani evita envolver-se diretamente na política. Al Sadr critica o aiatolá
implicitamente, alegando que ele é persa e que um líder iraquiano precisa ser iraquiano
e árabe.
Na realidade, Moqtada al Sadr adota posição khomeinista na política, advogando um
Estado islâmico governado por clérigos, mas, ao mesmo tempo, uma posição antiiraniana:
o Iraque xiita para os iraquianos.
A família Al Hakim, líder do Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque
(CSRII), que exerce papel de liderança na política iraquiana e ocupa cargos no Conselho
de Governo Iraquiano instituído pelos Estados Unidos, é igualmente
""maculada" pelo fato de ter conexões iranianas, mas não está claro que
siga as orientações iranianas oficiais.
Na realidade, todos os grupos xiitas têm conexões iranianas, mas não necessariamente
sofrem a influência do governo iraniano, nem são subordinados nas relações que mantêm
com seus equivalentes iranianos.
Um dos objetivos principais de Moqtada al Sadr vem sendo o de controlar os santuários das
cidades sagradas, geradores de receita. Seus seguidores já travaram muitas batalhas com
facções rivais, mas com poucos êxitos.
Informações locais indicam que a base de apoio de Al Sadr entre os xiitas está nas
favelas pobres de Bagdá, especialmente entre a população jovem de Sadr City.
Essa área sempre foi o centro da agitação radical. Ela foi construída, com forte apoio
da esquerda, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, como o Madinat al Thawra, ou
Cidade da Revolução, pelo general Abd al Karim Qasim, que em 1958 derrubou a monarquia
iraquiana. Tornou-se reduto do Partido Comunista Iraquiano e foi um dos principais centros
de resistência a uma tentativa de golpe do Baath em 1963, ocasionando um massacre. Saddam
Hussein apropriou-se da área, batizando-a de Saddam City. Em 2003, a região foi
novamente rebatizada, passando a se chamar Sadr City, em homenagem a Mohammed Sadeq al
Sadr (morto por Saddam em 1999), o pai de Moqtada.
Mas observadores bem informados acham que, numa eleição livre nesse distrito, a base de
apoio a Al Sadr provaria ser limitada. Isso também se aplica a partes de Basra e outras
cidades do sul do país, onde os seguidores de Al Sadr ganham atenção em razão de seu
comportamento militante e por intimidarem a população local (obrigando as mulheres a
adotar o véu islâmico, fechando à força casas que vendem bebidas alcoólicas e outros
locais de entretenimento).
Manobras políticas
Embora ele próprio renuncie a qualquer ambição política, o aiatolá Al Sistani adotou
uma posição de liderança que visa garantir que os xiitas não voltem a ser relegados ao
segundo plano.
As críticas que Al Sistani expressa publicamente às cláusulas da Constituição
interina que conferem poder de veto aos curdos e sunitas têm por objetivo transparente
estabelecer o governo da maioria xiita. Essa linha foi largamente seguida por outros
partidos e facções xiitas.
Moqtada al Sadr já deve ter calculado que o processo de transferência do poder para um
governo iraquiano, seguido por eleições, vai apenas marginalizá-lo ainda mais.
Os outros partidos xiitas estão muito mais bem posicionados em termos de suas bases
eleitorais, além de serem mais bem financiados. Ademais, há indicativos de que, numa
eleição com voto secreto, muitos xiitas talvez queiram evitar a instauração de um
governo religioso, optando por votar em candidatos seculares. Um sinal disso veio da
eleição recente para uma Câmara Municipal na região de Nassiriah (sul), na qual os
candidatos religiosos ficaram com a minoria dos votos.
Essas considerações constituem incentivos para incrementar a única dimensão positiva
de Moqtada al Sadr: a ação militante contra a ocupação e o processo político que ela
engendra.
Os americanos o ajudaram ao lhe entregar de bandeja um pretexto para isso, ao fecharem seu
jornal semanal "Al Hawza" no final de março -sob a acusação de incitação a
atos de sabotagem contra a coalizão-, prender seguidores importantes do clérigo e emitir
(por meio de um juiz iraquiano) um mandado de prisão contra o próprio Al Sadr, acusado
de homicídio.
O que os americanos fizeram, de fato, foi declarar guerra aos seguidores de Al Sadr,
proporcionando a estes incentivos ainda maiores para a intensificação da militância.
Tudo isso coincidiu com o levante em Fallujah, conferindo mais ímpeto e credibilidade a
Moqtada Al Sadr.
A insurgência sunita
Os sunitas iraquianos são diversificados. Nem todos, certamente, apóiam ou estão
envolvidos com a insurgência no chamado Triângulo Sunita.
Mas essa região abriga populações que já eram pobres e excluídas, tribais e
camponesas, radicalmente distintas da burguesia sunita urbana de Bagdá e Mossul (cidade
no norte do país de maioria sunita), das famílias mais importantes das tribos e das
velhas elites sunitas proprietárias de terras, que mantinham vínculos com os otomanos e
que dominaram a política iraquiana durante a monarquia.
Os habitantes do Triângulo Sunita chegaram à política passando pelo Exército, o
refúgio dos jovens de baixa renda na primeira metade do século 20. Os líderes dos
golpes de Estado baathistas e nacionalistas saíram desses grupos de baixa renda e,
através de Saddam e de sua política tribal, acabaram por controlar o partido e o Estado.
Muitos dos funcionários armados e treinados do Estado e das Forças Armadas de Saddam
vieram dessa região.
A insurreição deles é movida pelo ultraje provocado pela perda de seus enormes
privilégios e poder. Os sentimentos sunitas (não necessariamente a religiosidade) e o
antagonismo em relação aos americanos e aos xiitas transformaram essa região em lugar
aberto aos elementos islâmicos ou jihadistas, mesmo que nem sempre sejam ideologicamente
compatíveis.
A fúria é exacerbada pela tradição tribal da vendeta de sangue, que obriga muitos a
buscarem vingança pelos seus parentes mortos em ações americanas e pelas humilhações
causadas pelas forças de ocupação.
União xiita e sunita?
A morte e a destruição semeadas recentemente em Fallujah pelas forças americanas
-aparentemente num ato de vingança avassaladora contra a população da cidade inteira-
alimentaram o ultraje e a revolta em todo o Iraque, mesmo entre os xiitas sectários que,
normalmente, não nutririam simpatias por seus adversários sunitas.
Nas circunstâncias que se criaram, os rivais xiitas e adversários de Al Sadr foram
reduzidos à impotência. Eles não podem ser vistos como se estivessem tomando o partido
dos americanos contra Al Sadr.
O máximo que Al Sistani pôde fazer foi pedir calma a ambos os lados e buscar soluções
políticas negociadas. Al Sadr só poderá voltar a ser deixado à margem dos
acontecimentos se o processo político de transferência do governo, e, em seguida, da
realização de eleições, puder ser retomado. Qualquer cooperação entre as duas alas
da insurgência provavelmente será apenas temporária e tática.
Ambos os lados pedem um governo islâmico, mas o governo de quem? A lei islâmica e o
governo islâmico são conceitos indeterminados, e, na prática, constituem caminhos para
o exercício do poder e da coerção pelas autoridades religiosas.
Nessas circunstâncias, não é possível ter duas autoridades religiosas (e há muito
mais do que dois rivais potenciais). Assim, a busca por um governo religioso certamente
levará a uma luta em torno de quem irá governar.
Isso não significa que os iraquianos sejam fadados ao sectarismo: a história do Iraque
no século 20 inclui muitos episódios em que indivíduos e grupos de origem religiosa e
comunitária distintas empreenderam projetos comuns, políticos, sociais, literários e
artísticos, especialmente dentro dos movimentos nacionalista e comunista.
Mas esses elementos não participavam na condição de xiitas ou sunitas, cristãos ou
judeus, e sim como cidadãos e membros de uma sociedade comum, unidos por interesses e
ideologias.
Será que é demais esperar que esse espírito possa voltar a se manifestar?
Tradução de Clara Allain
Sami Zubaida nasceu no Iraque. É professor de sociologia no
Birkbeck College, na Universidade de Londres. Entre seus livros estão "Islam, the
people and the State" (islã, o povo e o Estado, 1993), "Culinary cultures of
the Middle East" (culturas culinárias do Oriente Médio, 1994) e "Law and power
in the islamic world" (Lei e poder no mundo islâmico, 2003).
Publicado na Folha de São Paulo, em
02/05/2004.


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