![]() FALLUJAH E NAJAF Um editorial do "The New York Times" já qualifica a invasão do Iraque como "um sonho ruim". As forças americanas, pela primeira vez, se viram forçadas a negociar com os insurgentes, relaxaram o cerco a Fallujah e, de modo bizarro, instalaram um ex-general de Saddam Hussein no comando dessa cidade. O general e os insurgentes comemoraram hasteando a bandeira iraquiana dos tempos do ditador. O duplo impasse que se desenrola na sunita Fallujah e na
xiita Najaf sinaliza uma nova etapa no conflito. O filósofo Ernest Renan, um dos pais do
nacionalismo francês, definiu nação como "um plebiscito cotidiano". Ele
queria dizer que a identidade nacional dos indivíduos não deriva da sua etnia, língua
ou cultura, mas da vontade. Em Fallujah e Najaf, os árabes sunitas e xiitas que combatem
as forças de ocupação estão tomando parte num "plebiscito nacional" -e
estão dizendo que são iraquianos. A construção improvável de 1920 desmoronou algumas vezes, mas foi recomposta pela ditadura do Partido Baath. O Estado iraquiano, uma estranha mistura de modernidade pan-arabista e tradição tribal, estruturou-se em torno do partido único nacionalista e totalitário, cujo núcleo de poder era o clã sunita de Tikrit, a cidade natal de Saddam. A repressão, às vezes extremamente sangrenta, contra a maioria xiita e a minoria curda funcionou como instrumento essencial de manutenção da unidade. Os EUA ocuparam o Iraque usando o pretexto das armas de destruição em massa e desfraldando a bandeira da construção de um Estado-nação democrático. Mas, assim como o pretexto, a bandeira desfez-se em frangalhos. Hoje, a imagem que sintetiza a ocupação é a do centro de tortura instalado em Abu Ghraib, a antiga prisão do regime de Saddam Hussein, em Bagdá. Entretanto, desafiando algumas profecias pessimistas, os componentes sunita e xiita do Iraque não parecem caminhar no rumo da guerra civil: pelo menos por hora, eles descobriram um inimigo comum nas forças de ocupação. Na sua linguagem habitual, George W. Bush atribui as revoltas de Fallujah e Najaf a "terroristas estrangeiros" e "fanáticos radicais". Certamente uns e outros existem na terra sem lei em que se transformou o Iraque, mas é cada vez mais evidente que se está configurando uma resistência nacional à ocupação. Diversas nações na África e na Ásia forjaram um
sentimento de identidade e unidade combatendo o domínio estrangeiro. O Iraque começa a
trilhar esse caminho. Por uma ironia da história, do modo mais doloroso e inesperado para
Washington, a ocupação americana poderá de fato gerar um Estado-nação no Iraque. Publicado na Folha de São Paulo, em 09/05/2004
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