O QUE ISRAEL TEM FEITO



Por  Edward W. Said

Apesar dos esforços de Israel em limitar a cobertura de sua destruidora invasão às cidades e campos de refugiados palestinos da Cisjordânia, as informações e imagens acabaram sendo veiculadas. A Internet forneceu centenas de relatos de testemunhas e fotos que fizeram parte da cobertura das TV's árabes e européias, a maior parte deles indisponíveis ou bloqueados ou expurgados da mídia americana. Esta evidência é a prova cabal do que a campanha de Israel faz - e sempre fez - sobre a irreversivel conquista da terra e sociedade palestinas.

A linha oficial (que Washington apoiou, juntamente com quase todo comentarista da mídia dos Estados Unidos) é a de que Israel, ao reataliar,  nada mais faz do que defender-se dos ataques suicidas que abalaram sua segurança e até mesmo ameaçaram sua existência. Esta alegação conquistou a condição de verdade absoluta, que sequer é suavizada  pelo que Israel tem feito e nem pelo que de fato tem sido feito.

Frases como "depenar a rede terrorista", "destruir a infraestrutura terrorista" e "atacar os ninhos terroristas" (note-se a total desumanização envolvida) são repetidas tantas vezes e de forma tão descuidada que deram a Israel o direito de destruir a vida civil palestina, com um grau chocante de absoluta e injusificável destruição, morte, humilhação e vandalismo.

Contudo, estes são sinais de que a espantosa, para não dizer grotesca, afirmação de Israel de estar lutando por sua existência está sendo vagarosamente minada pela devastação forjada pelo estado judeu e seu primeiro ministro homicida, Ariel Sharon.Vejamos a reportagem de capa do New York Times, "Ataques transformam os planos palestinos em Metal Torto e Pilhas de Poeira", por Serge Schmemann (não é um propagandista palestino) de 11 de abril: "Não há meios de se avaliar a total extensão dos danos às cidades e vilas - Ramalah, Belém, Tulkarem, Qalqilya, Nablus e Jenin - uma vez que permanecem sob cerco apertado, com patrulhas e atiradores disparando suas armas pelas ruas. Mas, pode-se dizer com toda certeza que a infraestrutura das cidades e de qualquer futuro estado palestino - estradas, escolas, postes elétricos, canos d'água, linhas de telefone - foi devastada."

Qual foi o cálculo desumano que o exército de Israel fez, usando dezenas de tanques e cargueiros blindados, juntamente com centenas de ataques de mísseis lançados de helicópteros Apache fornecidos pelos Estados Unidos, para cercar o campo de refugiados de Jenin por mais de uma semana, um remendo de um quilômetro quadrado, que abriga 15.000 refugiados e algumas dezenas de homens armados com rifles automáticos, sem tanques ou mísseis, e chamar a isto de resposta à violência terrorista e ameaça à sobrevivência de Israel?

Foi relatado que há centenas de soterrados nos escombros que as escavadeiras israelenses começaram a amontoar sobre as ruínas do campo depois do término da luta. Serão os palestinos civis, homens, mulheres e crianças, nada mais do que ratos e baratas que podem ser atacados ou mortos aos milhares sem uma única palavra de compaixão ou defesa? E, o que dizer da captura de milhares de homens que foram levados pelos soldados israelenses, a destruição das casas de tantas pessoas comuns, tentando sobreviver sobre as ruínas criadas pelas escavadeiras israelenses por toda a Cisjordânia, do cerco que durou meses e meses, do corte de energia e água nas cidades palestinas, dos longos dias de toques-de-recolher, do racionamento de alimentos e remédios, dos feridos que sangraram até a morte, dos ataques sistemáticos a ambulâncias e agentes da saúde que até o suave Kofi Annan declarou como ultrajantes? Esses atos não serão enterrados tão facilmente nos escaninhos da memória. Seus amigos devem perguntar a Israel como esta política suicida pode alcançar a paz, aceitação e segurança.

A monstruosa transformação de toda uma população em pouco mais do que militantes e terroristas pela formidável e temida máquina de propaganda, permitiu que, não só o exército de Israel mas também toda uma frota de escritores e defensores, apagassem uma história terrível de injustiça, sofrimento e abuso, com o objetivo de destruir impunemente a existência civil do povo palestino. Apagados da memória estão a destruição da sociedade palestina, em 1948, e a criação de um povo destituído; a conquista da Cisjordânia e Gaza e consequente ocupação militar, desde 1967; a invasão do Líbano em 1982, com seus 17.500 libaneses e palestinos mortos e os massacres de Sabra e Shatila; os ataques contínuos de escolas, campos de refugiados, hospitais, instalações civis de todo o tipo palestinos. Que objetivo antiterrorista é este que leva  à destruição de prédios e ao confisco de todos os registros do ministério da educação; a municipalidade de Ramalah, o Escritório Central de Estatística; os vários institutos especializados em direitos civis, saúde, cultura e desenvolvimento econômico; hospitais,  estações de rádio e TV? Não parece claro que Sharon está determinado não só a quebrar os palestinos mas, também, tentado a eliminá-los como um povo com instituições nacionais?

Neste contexto de disparidade e poder assimétrico, parece loucura continuar pedindo aos palestinos, que não possuem exército, força aérea, tanques ou liderança funcionando, que renunciem à violência e não exigir limitação igual aos atos de Israel. Certamente que isto acaba por ocultar o uso sistemático da força letal por Israel contra civis desarmados, conforme fartamente documentado pelas principais organizações de direitos humanos. Mesmo a questão dos suicidas, a quem sempre me opus, não pode ser examinada do ponto de vista que permita um padrão racista sub-reptício para valorizar vidas israelenses sobre as muitas vidas palestinas que foram perdidas, mutiladas, distorcidas e abrevidas pela longa ocupação militar e as barbaridades abertamente praticadas por Sharon contra os palestinos desde o início de sua carreira.

Não se pode conceber uma paz que não ataque de frente a verdadeira questão que é a recusa total de Israel em aceitar a existência soberana do povo palestino em território que Sharon e a maior parte de seus defensores consideram como a Grande Israel, isto é, a Cisjordânia e Gaza. Um perfil de Sharon no Financial Times de abril concluiu com esta transcrição extraída de sua autobiografia, que o FT prefaciou com um: "Ele escreveu com orgulho sobre a crença de seus pais de que judeus e árabes poderiam ser cidadãos lado a lado." Em seguida, a importante passagem do livro de Sharon: "Mas eles acreditavam, sem qualquer sombra de dúvida, em que somente eles tinham direito à terra. E ninguém iria forçá-los a sair, qualquer que fosse o método utilizado. Quando a terra pertence a você fisicamente ... quer dizer que você detém o poder, não só o poder físico mas o poder espiritual também."

Em 1988, a OLP fez a concessão de aceitar a divisão da Palestina em dois estados. Isto foi reafirmado em várias ocasiões e, certamente, consta dos documentos de Oslo. No entanto, somente os palestinos reconheceram explicitamente a noção de partilha. Israel jamais. É por isto que agora existem mais de 170 assentamentos em território palestino, é por isto que foi construída uma rede de estradas que faz a ligação entre eles e que impede os palestinos de se movimentarem (segundo Jeff Halper, do The Israeli Committee Against House Demolitions, isto custa bilhões de dólares e foi financiado pelos Estados Unidos), é por isto que nenhum primeiro ministro jamais concedeu uma soberania verdadeira aos palestinos, é por isto  que os assentamentos cresceram a cada ano. Um simples olhar no mapa revela o que Israel vem fazendo no processo de paz e o que a descontinuidade e enconhimento geográficos produziram na vida dos palestinos. Com efeito, Israel se considera, e o povo judeu, os legítimos possuidores de toda a Palestina. Existem leis de propriedade da terra em Israel que garantem isto mas na Cisjordânia e Gaza, os assentamentos, estradas e a recusa na concessão do direito soberano à terra aos palestinos têm o mesmo significado.

O que confunde o espírito é que ninguém - americanos, palestinos, árabes, ONU, europeus, ninguém mesmo - desafiou Israel sobre este ponto, que foi introduzido em todos os acordos de Oslo. É por isto que, depois de quase dez anos de negociações de paz, Israel ainda controla a Cisjordânia e Gaza. Hoje, elas são controladas mais diretamente por mais de 1.000 tanques israelenses e milhares de soldados, mas o princípio subjacente é o mesmo. Nenhum líder israelense (e por certo nem Sharon ou seus adeptos da Terra de Israel, que são a maioria em seu governo) reconheceu oficialmente os territórios ocupados como ocupados ou que os palestinos poderiam ter teoricamente direitos soberanos - isto é, sem o controle israelense sobre as fronteiras, a água, o ar ou segurança - sobre o que a maior parte do mundo considera como terra palestina. Portanto, falar sobre a visão de um estado palestino, que virou moda, é apenas uma visão, a menos que a questão da propriedade da terra e a soberania sejam aberta e oficialmente admitida pelo governo israelense. Ninguém jamais admitiu e, se eu estiver certo, jamas reconhecerá em futuro próximo. Não se pode esquecer que Israel é o único estado no mundo atualmente que jamais teve fronteiras determinadas internacionalmente; o único estado que não pertence exclusivamente aos seus cidadãos mas, também, a todo o povo judeu. O fato de Israel desprezar, sistematicamente, a legislação internacional (conforme argumentado na semana passada nessas páginas por Richard Falk), dá uma idéia da profunda e estrutural dificuldade da total rejeição de que os palestinos tenham tido um rosto.

Por isto sou cético quanto a discussões e reuniões sobre a paz, que é uma palavra adorável mas que, no atual contexto, de um modo geral significa que os palestinos devem parar de resistir ao controle israelense sobre sua terra. Entre as várias deficiências da terrível liderança de Arafat (para não falar sobre os lamentáveis líderes árabes em geral), está a de que ele não fez dos dez anos de negociações em Oslo o foco sobre a propriedade da terra, e, por isso, jamais colocando sobre Israel  o ônus de se declarar como desejando abandonar o título à terra palestina, e muito menos exigiu que Israel fosse obrigado a negociar  sua responsabilidade pelos sofrimentos de seu povo. Agora, sinto-me apreensivo de que ele possa  estar simplesmente tentando se salvar de novo, ao passo que o de que precisamos realmente são monitores internacionais que nos protejam, bem como de novas eleições para garantir um futuro político verdadeiro ao povo palestino.

A grande questão que se apresenta a Israel e seu povo é esta: Israel deseja assumir os direitos e obrigações de ser um país como qualquer outro e renunciar à espécie de reivindicações coloniais impossíveis, pelas quais Sharon e seus pais e soldados vêm lutando desde o primeiro dia? Em 1948, os palestinos perderam 78% da Palestina. Em 1967, perderam os restantes 22%. Agora, a comunidade internacional precisa impor a Israel a obrigação de aceitar o princípio da partilha verdadeira, em oposição à ficção, e aceitar o princípio de limitar suas reivindicações extraterritoriais absurdas, baseadas em pretensões e leis bíblicas que até agora lhe permitiram dominar um outro povo. Por que esta espécie de fundamentalismo inquestionável é tolerado? Mas, até o momento, tudo o que sabemos é que os palestinos precisam desistir da violência e condenar o terror. Por que nada de mais substantivo foi exigido de Israel, que pode continuar fazendo o que faz sem qualquer preocupação com as possíveis consequências? Esta é a verdadeira questão de sua existência:  existir como um estado igual a todos os outros ou estar sempre acima das limitações e obrigações impostas aos outros estados. O registro não tranquilizador.

The Nation,   06/05/ 2002

Edward Said, morto em setembro de 2003, era palestino de nascimento, e vivia em Nova York, onde era professor de Inglês e Literatura Comparada da Universidade de Columbia. Ele ficou conhecido por sua luta a favor da criação do estado da Palestina. Sua morte aconteceu alguns dias antes do terceiro aniversário da Intifada palestina.

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