ATUALIDADES
O artigo a seguir, é uma transcrição de um documentário chamado "Pássaros da Morte", que foi exibido no canal 4 da Inglaterra, há muitos anos atrás, sobre a história obscura da RAF no Iraque. Ele é mais importante agora, em vista da recente agressão àquele país.
Como o Terror e o Assassinato sustentaram um Império - Canal 4
Existe um lado mais obscuro da história da Real Força Aérea (RAF). Durante os anos 20 e 30, a RAF foi muito ativa não em uma guerra abertamente declarada, mas na supressão de uma revolta contra o governo colonial inglês. Os esquadrões da RAF bombardearam aldeias tribais, sufocou revoltas e ocupou os mais distantes cantos do Império. O primeiro ataque foi no norte do Iraque, contra os curdos. Depois da I Guerra Mundial, os curdos se insurgiram contra o governo imperial, mas, tendo em vista que a região era inacessível por terra às tropas, os ingleses decidiram-se pelo bombardeio aéreo para esmagar a revolta. Os sobreviventes destes ataques foram entrevistados.
Um deles descreveu como 15 aviões lançaram bombas, seguidos de mais 15, provocando uma desolação indescritível à população, principalmente aos mais velhos, às mulheres e crianças. Algumas aldeias e vilarejos sofriam três incursões diárias, quando muitas bombas eram lançadas. Um ex-piloto descreveu como a RAF estava baseada nas pistas de decolagem e aterrissagem provisórias. Começavam o dia às 7 horas da manhã, atacando. Os pilotos tinham que bombardear certas aldeias curdas e metralhar qualquer curdo que "parecesse" hostil. Um piloto mais experiente, comandante da esquadrilha, admitiu ter atirado em curdos, mas que estava "obedecendo ordens". "Se os curdos não aprendessem a se comportar, de uma forma civilizada, então teríamos que dar palmadas em seus traseiros, e é o que foi feito com bombas e metralhadoras", disse ele.
Um jovem oficial envolvido, foi o comandante de esquadrilha, Arthur Harris, mais tarde famoso como o controvertido chefe do Comando dos Bombardeiros em Tempo de Guerra, responsável pelos ataques a alvos civis, isto é, cidades alemães, durante a II Guerra Mundial. Em 1924, Harris escreveu: Os árabes e os curdos agora sabem o que os bombardeios representam em perdas e danos. Em 45 minutos, uma aldeia inteira pode ser praticamente varrida do mapa e 1/3 de seus habitantes mortos ou feridos por 4 ou 5 aviões.
Embora os curdos respondessem atirando nos aviões, muitos se abrigavam/ocultavam em cavernas nas montanhas, mas o dano foi real. Ao final da I Guerra Mundial, a RAF foi enviada para o Iraque, em razão do colapso do Califado Otomano. Inglaterra e França receberam mandatos para governar os antigos territórios do império otomano. A França recebeu o controle da Síria e Líbano, e a Inglaterra ficou com o Iraque, Jordânnia e Palestina.
Nem todos ficaram satisfeitos em deixar um império. Os curdos, com sua própria língua e cultura, insistiram na independência (e mais profunda e fortemente ligados ao Islam do que os atuais turcos secularizados, que sob Attaturk aboliram o califado otomano). O petróleo, então, havia sido descoberto em grandes quantidades nos territórios curdos, como Kirkuk, por exemplo. Os ingleses queriam manter essas reservas sob seu controle - temiam que um Curdistão independente pudesse usar a riqueza do petróleo para ameaçar o poder inglês no Oriente Médio (ex-Califado). Portanto, a Inglaterra juntou o Curdistão a duas outras províncias para criar um novo país, o Iraque. Muitos curdos foram contra este plano.
Um certo curdo, Hodja, era uma figura conhecida no movimento curdo de independência. Os ingleses traíram os curdos, ao lhes negarem direitos e quebrarem compromissos e promessas. Liderados pelo sheikh Mahmud, os curdos se rebelaram ao final da I Guerra Mundial. A Inglaterra teve de enfrentar, com um grande custo, a manutenção do novo país, o frágil Iraque. A revolta curda foi a maior crise para o governo britânico.
O ministro responsável pelo Iraque era Winston Churchill. Em 1921, ele convocou uma conferência no Cairo, para discutir a situação. Ele também chamou T.E.Lawrence. A preocupação maior para a Inglaterra eram as perdas resultantes da carnificina da I Guerra Mundial. Churchill ficou extremamente relutante em arriscar vidas inglesas, em um país em que a maior parte dos ingleses se importava tão pouco.
Encontrou-se uma resposta para a crise - A RAF
Esquadrões de bombardeiros foram despachados para esmagar, por ar, a revolta curda, porque pensava-se que haveria poucas perdas. Se um país podia ser governado do ar, os destacamentos de 13 batalhões de infantaria e artilharia seriam preservados. Em outras palavras, a RAF governaria o Iraque do ar, havia muito pouco dinheiro e muitos pilotos aplicados. Mas, alguns mostravam certa reserva. O chefe de esquadrilha Kendall sentia que os ingleses deviam sair da região e os árabes ficarem com ela.
O Iraque transformou-se em um excelente campo de treinamento para a RAF em guerra aérea. Novas armas foram desenvolvidas para uso, como, por exemplo, foi o precursor do napalm e do mísseis terrestres, bombas de fósforo, foguetes, bombas de efeito retardado. Muitas dessas armas foram usadas no Curdistão.
Quando os ataques começavam, os curdos fugiam para as cavernas e montanhas e retornavam mais tarde, quando os ataques cessavam. Por isso, a RAF utilizou de bombas de efeito retardado para detonarem quando os curdos retornassem, geralmente com 24 horas de atraso. A RAF não fez muita distinção entre civis e combatentes. As bombas eram lançadas sobre um vilarejo e facilmente matavam inocentes e rebeldes.
Um sobrevivente disse que uma mulher grávida foi atingida e o feto lançado para fora. Os ataques aéreos trouxeram grande sofrimento e um grande contingente de refugiados. Os ingleses esperavam que isto pudesse levar os curdos rebeldes à paz. Oficiais da RAF disseram que "expulsos de suas aldeias, expostos à chuva e ao frio, os ataques do inverno/primavera enfraqueceriam os rebeldes." Um sobrevivente contou como uma porção de pessoas morreu de fome e frio, principalmente as mulheres mais velhas. Foi muito duro. A dieta consistia de uma pedaço de pão, mas, apesar do sofrimento, os rebeldes continuavam sua guerra contra o governo colonial.
Frustrados com o sucesso dos rebeldes, a Inglaterra planejou bombardear a maior cidade curda, Suleymanyeh, que era acusada de apoiar os rebeldes. A RAF lançou panfletos avisando aos moradores de um ataque iminente, mas a população da cidade ignorou o aviso. No ataque aéreo que se seguiu, uma mulher morreu enquanto jogava o lixo fora. Cada família sofreu uma perda. O rosto de uma outra mulher foi rasgado em pedaços e suas mãos queimadas, assim como suas pernas.
Como resultado dos bombardeios, os curdos só podiam comer e trabalhar à noite. Assim a RAF começou a atacar durante a madrugada. Um sobrevivente mais velho descreveu como sua casa foi destruída por um ataque aéreo e como ele ficou soterrado sob os escombros por uma hora. Na tentativa de tirá-lo dali, uma pá machucou sua pélvis, incapacitando-o definitivamente. Agora ele tem 69 anos de idade. Suleymanyeh foi, então, ocupada pelas tropas inglesas depois que os rebeldes curdos fugiram para as montanhas. A força aérea estava vingada.
Um relatório esclarecedor da desconfiança da campanha aérea foi publicado. Este relatório afirmava que os pilotos ingleses tinham metralhado mulheres e crianças. Quando o relatório chegou a Churchill, ele respondeu dizendo que "o fogo deliberado sobre mulheres e crianças é um ato vergonhoso. Os responsáveis devem ser julgados por uma Corte Marcial. Ao agir assim, estamos descendo ao mais baixo nível".
Nenhuma providência foi tomada. Na verdade, os relatórios posteriores foram censurados antes de chegarem aos líderes políticos. Os oficiais da Força Aérea foram instruídos a não relatar a quantidade de bombas lançadas ou as perdas provocadas, porque, segundo um censor, eles poderiam dar uma impressão errada da proporção dos eventos. Esses relatórios foram mantidos em sigilo pelo serviço secreto por 50 anos. Se este relatório, com o seu conteúdo, caísse em mãos de pessoas indesejáveis, poderia manchar não só à imagem da Força Aérea como à do governo de Sua Majestade.
Os pilotos expressaram inquietação com as missões de bombardeios, principalmente aqueles que tinham vivido com os curdos. Eles foram bem tratados pelos curdos, que mostraram grande hospitalidade. Na verdade, os curdos eram um povo de bons princípios e eram descritos em termos bastante elevados. Um deles contou como um pobre curdo com um jumento foi baleado.
Quando perguntado, um ex-oficial respondeu que tinha sido ordenado, mas que ele nào gostava de matar os curdos nem um pouco, e que tinha feito aquilo por conta de um expediente político.
Em seu livro "Deterring Democracy", Noam Chomsky descreve o governo britânico no norte do Iraque da seguinte forma (pags. 181-2, 254):
"Um ano após as tropas britânicas terem disparado contra uma reunião pacífica em Amritsar, na Índia Britânica, deixando aproximadamente 400 mortos (Massacre de Bagh Jallianwala - ver o filme Gandhi, de Richard Attenborough), a Inglaterra passou a usar sua força aérea para bombardear aldeias nativas ao norte do Iraque, tendo em vista que ela não era mais capaz de controlar suas colônias apenas com as forças terrestres. Winston Churchill, então Secretário Colonial, observou que uma "força suave" não bastaria para "ocupar a Mesopotâmia". O secretário de Estado avisou: "Se a população árabe perceber que o controle pacífico da Mesopotâmia depende de nossa intenção de bombardear mulheres e crianças, tenho dúvida se teremos aquele apoio que Churchill espera". A Inglaterra conseguiu criar um goveno fantoche, enquanto a RAF levou o terror das bombas para subjugar a "insubordinação tribal", conforme explicado pelo Coronel Secretário do gabinete trabalhista, Ramsay MacDonald, em 1924, e arrecadar impostos de uma população muito pobre para pagar.
Como secretário de estado em 1919, Churchill foi abordado pelo comando da RAF no Oriente Médio, que pediu permissão para o uso de armas químicas "como experimento contra árabes recalcitrantes". Churchill autorizou o experimento, rejeitando qualquer objeção:
"Não compreendo o escrúpulo quanto ao uso do gás. Sou fortemente favorável ao uso do gás asfixiante contra tribos bárbaras. Não é necessário usar apenas os gases mais mortais; os gases podem ser usados porque causam inconvenientes e espalham um terror ativo mas não deixam efeitos sérios permanentes na maioria dos afetados". Churchill acrescentou: "Não podemos, em hipótese alguma, concordar com a não utilização de qualquer arma que esteja disponível para obter um fim rápido à desordem que reina na fronteira." As armas químicas são apenas "a aplicação da ciência ocidental na guerra moderna."
Churchil foi a favor do uso da força aérea e do gás asfixiante contra as "tribos bárbaras" e os "árabes recalcitrantes", isto é, os curdos e afegãos. (pag. 62, 258). Não sem surpresa, nos anos 90, William Waldegrave, que era o encarregado da iniciativa "governo aberto" do Primeiro Ministro John Major, ordenou a remoção do Arquivo Público de arquivos que detalhavam como as tropas britânicas tinham usado gás asfixiante contra os dissidentes iraquianos, inclusive os curdos, em 1919 (pag. 62, 258).
Fontes:
A Wall to Wall Production for Channel 4
254. Chomsky, Noam. (1992). Deterring Democracy. New York : Hill and Wang, a division of Farrar, Strauss and Giroux, 19 Union Square West, NY 10003.
258. Chomsky, Noam. (1999). The New Military
Humanism - Lessons from Kosova. London : Pluto Press. ISBN: 0 7453 1634 4. 345 Archway
Road, N6
5A
Extraído de Political Islam