ATUALIDADES
CONFERÊNCIA MUNDIAL CONTRA O RACISMO, A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, A XENOFOBIA E INTOLERÂNCIAS CORRELATAS
Discurso de Hanan Ashrawi, em Durban, África do Sul, em 28/08/2001
Irmãos e irmãs,
De Jerusalém, do coração da Palestina, uma terra sitiada e constantemente violada pela mais brutal ocupação militar israelense, junto-me a todos vocês hoje. Do meio do povo da Palestina, uma nação torturada, culpada unicamente do compromisso inabalável com a liberdade, dignidade e independência, junto-me a todos vocês hoje. Das profundezas da história não resgatada, junto-me a todos vocês hoje. Represento uma narrativa de exclusão, negação, racismo e intimidação nacional, mas, também com uma mensagem de esperança, redenção e justificação histórica, incorporada no espírito e na vontade de um povo que se recusou a ceder diante de todas as forças de opressão, violência, crueldade e injustiça.
Ao convocar esta conferência, vocês são a personificação verdadeira da coragem de resistir às forças de dominação, subjugação e escravização. Hoje, estamos juntos para iniciar uma missão realmente global de autorização e solidariedade, para dar voz aos silenciados, realidade ao invisível, reconhecimento aos renegados e crédito aos vitimados.
Em tempos de adversidade, e durante as noites mais negras da alma, procuramos em vocês afirmação e ação, como antídoto contra o fracasso dos sistemas de poder estabelecidos, inclusive o fracasso caracterizado pelos interesses particulares, poder político, ausência de vontade e impotência. Aproveito esta oportunidade para reconhecer perante vocês, os valentes homens e mulheres que deixaram o conforto de seus lares na Europa e Estados Unidos e se juntaram a nós na Palestina, para fornecer uma proteção popular, um escudo humano, diante dos abusos, violência e violações israelenses contra o povo palestino.
Venho aqui hoje com o coração pesado, deixando atrás de
mim uma nação refém de uma continuada Nakba (catástrofe), porque a mais complexa e
pervasiva expressão de colonialismo, apartheid, racismo e intimidação persistentes.
Mais de meio século atrás (53 anos), os palestinos, como povo, foram derrotados por um
apagamento nacional, excluídos da história, com sua identidade negada e sua realidade
cultural, humana e histórica suprimida. Transformamo-nos em vítimas do mito "uma
terra sem povo para um povo sem terra", onde o ocidente buscou aliviar a culpa de
seus terríveis anti-semitas, através da intimidação de uma nação inteira. O sionismo
procurou implementar sua agenda de exclusividade, usurpando não só as terras e direitos
dos palestinos como, também, confiscando sua expressão e distorcendo sua narrativa
histórica.
Em 1948, fomos os sujeitos de uma grave injustiça histórica, manifestada numa dupla intimidação: de um lado, a injustiça da expoliação, dispersão e exílio, decretados obrigatoriamente sobre a população, e que viria a ser conhecida como a questão dos refugiados, e que atualmente compreende mais de 5 milhões de palestinos; de outro, os que permaneceram, que foram submetidos à opressão e brutalidade sistemáticas de uma ocupação desumana, que lhes roubou todos os direitos e liberdades, inclusive a identidade nacional em sua própria pátria.
A criação do estado de Israel não foi uma realização heróica e fabulosa, confome a versão da história propagada pelos conquistadores. É tempo de se levantar o véu, examinar os fatos em si, e defrontar o terrível preço pago por uma nação inocente, culpada pelo simples fato de existir, assim como a ganância e a cegueira moral dos outros. Os dias de repúdio precisam acabar. O povo palestino merece seu dia de sol como qualquer outra nação, e como um tributo à vontade humana que não pôde ser quebrada. Como palestina, como mulher e em nome de meu povo, estou aqui, hoje, para reclamar a minha/nossa humanidade. De palestinos que não existem [não existe essa coisa de palestinos); eles nunca existiram (Golda Meir, 1969) nós sofremos uma metamorfose infligida a nós premeditadamente pelas políticas impostas pelos israelenses, que nos apresentam como vermes de duas pernas, baratas, bestas bípedes, um povo que tem que ser exterminado, a menos que aceitem viver como escravos, gafanhotos a serem esmagados, crocodilos, víboras. (Um lista abrangente está disponível com exemplos ilustrativos).
Esta desumanização racista e sistemática também se faz acompanhar de políticas de expulsão violenta. Não há outro jeito senão transferir os árabes para os países vizinhos, nenhuma aldeia, uma tribo sequer, deve ser deixada em pé (Joseph Weitz, 1940).
Não há escolha: os árabes devem abrir espaço para os judeus em Eretz Yisrael. Se foi possível transferir os povos balcânicos, também é possível tirar os palestinos árabes de lá (Vladimir Jabotinsky, 1939).
A colonização sionista deve ser completada e cumprida, mesmo que contra a vontade da população nativa. É importante falar hebreu, mas, mais importante, é ser capaz de fuzilar (Vladimir Jabotinsky, 1939).
Devemos fazer de tudo para assegurar que nunca retornem. O velho morrerá e o jovem esquecerá. No entanto, para aqueles que permaneceram, apesar de toda coerção militar isralense e tentativas de expulsão forçada, outros planos (e igualmente sinistros) foram idealizados: reduziremos a população árabe a uma comunidade de lenhadores e garçons. (Davi Ben Gurion)
Para o resto do mundo, fomos reduzidos à dicotomia aristotélica da piedade e medo, os lamentáveis refugiados, e os terríveis terroristas. Mas, nunca fomos vistos ou tratados na inteireza de nossa humanidade.
Os palestinos, hoje, continuam a ser submetidos às múltiplas formas e expressões de racismo, exclusão, opressão, colonialismo, apartheid e repúdio nacional. Nosso direito à autodeterminação, e conseqüente soberania e estado nacional, nos foi negado pela força e nos transformou em súditos de nosso opressor. As populações de refugiados, principalmente as pessoas sem pátria, são despojadas dos mais rudimentares direitos civis, humanos, políticos e nacionais, deixados à mercê de países anfitriões, que os vêem como uma ameaça demográfica ou como convidados inoportunos. Israel fez uma lei de retorno para trazer judeus de todo o mundo para a Palestina histórica, mas persiste rejeitando o direito de retorno dos refugiados palestinos e se recusando a cumprir a resolução 194, da ONU, um compromisso que se espera que a comunidade internacional garanta e implemente.
Os palestinos que permaneceram no que se transformou em Israel, estão vivendo em sua pátria histórica o pior sistema de apartheid, exclusão e discriminação racial - suas cidades e aldeias ou foram tomadas inteiramente, ou se transformaram em guetos e enclaves da população não judia de Israel. Muitos continuam a ser deslocados em sua própria terra, testemunhas da destruição de suas aldeias. Mais de 500 foram arrazadas na campanha de limpeza étnica original, que se seguiu à criação do estado de Israel. Aqueles de nós que chegamos sob a ocupação de 1967, esmorecemos na Cisjordânia, em Jerusalém e na Faixa de Gaza, sob o jugo de uma combinação singular de ocupação militar, assentamentos de colonos e opressão sistemática.
Dificilmente a mente humana imaginou uma tal brutalização e perseguição tão variada, diversificada e abrangente. Desde 1967, a terra palestina foi expropriada a uma velocidade crescente, enquanto toda uma população judaica foi trazida, num esquema calculado de colonização. Por toda a terra, uma rede artificial e colonial de infraestrutura foi imposta sobre nossa realidade autêntica, para criar uma superestrutura espúria de assentamentos, como um meio de incursões demográficas, geográficas e extraterritorial israelenses na Palestina. As chamadas estradas de uso exclusivo da população judaica ilegal, rasgam o coração da terra palestina e criam uma forma singular de racismo. Enquanto isto, vigias dos colonos soltam toda a força de seu extremismo e violência, realizando campanhas de terror contra famílias e aldeias palestinas indefesas. O terrorismo de estado é implementado pelo exército e pelo colono com duplicidade política e impunidade legal.
Uma outra manifestação singular do racismo israelense é a flagrante e sinistra política de engenharia demográfica. Para manter o caráter judeu, ou a pureza do estado de Israel, os paletisnos foram mostrados e tratados como uma ameaça demográfica. As alternativas propostas incluíam campanhas de controle de natalidade e condução da população, transferência e expulsão de comunidades inteiras, esquema racista e punitivo de separação unilateral que é defendido atualmente.
Em Jerusalém, a expropriação de terra, o confisco de carteiras de identidade, demolições de casas, a importação de colonos de dentro e de fora da cidade, transformaram-se em elementos constantes da engenharia demográfica israelense, por intermédio da limpeza étnica.
Jerusalém também se encontra sob cerco, numa tentativa de isolá-la de seu contexto e ambiente palestinos, e extirpá-la do coração da Palestina, como o centro da atividade política, cultural, econômica, social e educacional e como a futura capital de nosso estado. Estas medidas israelenses unilaterais buscam consolidar a anexação ilegal da Jerusalém ocupada a Israel e impor a exclusividade judaica sobre uma cidade palestina que sempre foi pluralista e tolerante. Os ataques aos locais sagrados de cristãos e muçulmanos e a proibição de fiéis palestinos de alcançarem seus templos de adoração, traem uma política deliberada de intolerância e uma violação do direito e liberdade de rezar.
Foi imposto um estado de sítio não só na Cisjordânia e em Gaza, mas também dentro desses territórios, para transformar cada aldeia, vila e cidade em uma prisão isolada, destruindo, assim, todo aspecto de vida humana, inclusive a coesão econômica, educacional, social e de saúde, numa tentativa de romper cada fibra do tecido social. As tropas de ocupação israelenses, usando tanques, helicópteros, caças F-16, barcaças militares e postos de fiscalização, não só tornam toda a população palestina cativa em 64 bantustões isolados, como também usam toda a força de seu poder militar contra o povo vulnerável e indefeso. Diariamente eles bombardeiam as casas palestinas, assassinam ativistas e líderes palestinos, destróem colheitas e campos, entregam-se à matança a sangue-frio de crianças e outros inocentes, enquanto implementam uma política de humilhação e sufocação deliberada em cada posto de fiscalização.
A ocupação israelense também sequestrou o conceito de segurança, tornando-o aplicável só para os israelenses, enquanto priva os palestinos de qualquer aspecto de segurança pessoal, política, legal, territorial, histórica, cultural, econômica e até humana. Como um cobertor para seus abusos sistemáticos, Israel também insultou a essência do conceito, explorando-o por conta de erradicar qualquer menção à ocupação e reivindicando o direito ilógico de ter uma ocupação militar secura ou até agradável, o que, em si, é a verdadeira antítese de paz, segurança e direitos humanos
Como o mundo observa, Israel teve êxito na evolução e imposição de uma outra grande decepção, na forma de uma volta oficial que não só desumaniza e sataniza os palestinos, mas também como uma tentiva de acusar a vítima e ressuscitar rótulos que nos apresentam como espécies subhumanas e geneticamente terroristas violentos, por isso não merecedores de qualquer tratamento humano. Quando muito, elaborou-se uma falsa simetria entre ocupante e ocupado, opressor e oprimido (como na convocação a ambos os lados para acabar com a violência), servindo para erradicar o completo horror da ocupação, enquanto priva as vítimas de seu direito de resistir. Dado o desequilíbrio de poder, a insistência americana na solução bilateral só serve para permitir que Israel explore a assimetria de poder e persiga sua política de subjugar toda uma nação e impor uma solução unilateral e injusta.
A solução israelense está firmemente entranhada na
mentalidade manchada da ocupação como permissão para decretar, pela força,
poderes ilegais e realidades punitivas que logo exacerbam o conflito e o sofrimento do
povo palestino. A recusa dos Estados Unidos e da comunidade internacional como um todo, de
intervir, autorizou Israel a continuar a agir com impunidade e imunidade, acima da lei e
da responsabilidade, enquanto os palestinos continuam a ser privados da proteção legal e
dos imperativos mínimos de decência moral e humana. Continuamos a implorar por um norma
global de lei que impeça a agressão do poderoso e elimine a continuada desumanização
do povo da Palestina. Tal ausência de vontade e abstenção de responsabilidade por parte
da comunidade internacional não só perpetuou Nakba e prolongou o sofrimento e
intimidação do povo da Palestina, como também serviu para solapar as
oportunidades de paz em toda a região.
Quando nos juntamos ao processo de paz, iniciado em Madri em 1991, assim o fizemos como um
gesto de boa vontade, como um comprometimento com uma solução pacífica do conflito, com
o objetivo de acabar com a ocupação de 22% da Palestina história e estabelecer nosso
estado independente no território ocupado por Israel desde 1967. Como vítimas,
sobrepujamos a dor do momento e estendemos a mão para nossos agressores, para mudar o
curso da história, do inevitável conflito para uma reconciliação baseada na justiça e
paridade.
Apoiados na confiança da vontade das pessoas em tolerar e resistir à opressão, conforme
demonstrado na Intifada de 1987, oferecemos a Israel e ao mundo, uma oportunidade única
de legitimar uma ousada busca pela paz e ganhar adeptos para uma solução equitativa.
Infelizmente, o processo de paz tornou-se um processo
punitivo, manipulado por Israel para conquistar sua política de expansão, limpeza
étnica, colonialismo e subjugação do lado mais fraco pela força. Isto só serviu como
disfarce para justificar a separação e fragmentação do povo e da terra,
transformando os territórios palestinos ocupados em uma série de reservas, ou
bantustões, isoladas, enquanto mantém a total hegemonia e controle direto. Israel
procurou conseguir a legalização retroativa dos assentamentos ilegais e da anexação de
Jerusalém , e também tentou negar aos refugiados palestinos o direito de retorno,
negando a verdadeira essência da paz e destruindo seus fundamentos.
A chamada oferta generosa de Barak revelou-se uma farsa, que é a versão dos ocupantes,
de que o que é bom para os nativos baseia-se apenas no que é bom para Israel,
garantindo conflito e instabilidade no futuro, em lugar de solidificar uma solução
duradoura e justa. Tendo sido historicamente as vítimas da guerra e do conflito,
descobrimo-nos as vítimas de um processo de paz injusto e imperfeito.
A incursão de Sharon a Haram al-Sharif, em setembro de 2000,
foi apenas uma faísca calculada que pôs fogo no barril de pólvora que já existia, como
resultado das iniquidades do processo em si. O uso de balas verdadeiras e da força letal
contra manifestantes palestinos desarmados, desencadeou os terríveis sentimentos de
hostilidade, racismo e violência orquestrada contra o povo palestino cativo. A
intensificação destas medidas representa uma mensagem dura e sinistra de brutalidade e
é sintomático da regressão do sionismo fundamentalista testemunhado nos banhos de
sangue dos anos 40. Ao afirmar que se trata da continuação da Guerra de Independência,
Sharon está dizendo ao povo palestino e a todo o mundo que a erradicação nacional e a
limpeza étnica de Nabka de 1948 ainda prossegue.
O atual governo israelense apresenta a mais letal combinação de ideologia política de
extrema direita, fundamentalismo religioso e fanatismo, e as forças desenfreadas do
militarismo com a aparência enganosa da face civilizada do Partido Trabalhista. Sharon é
o mesmo general de exército que cometeu crimes contra a humanidade em atrocidades como o
massacre de Qibya, de 1953, a limpeza de Gaza, em 1973, a invasão do Líbano e os
massacres de Sabra e Chatila, de 1982. Ao buscar este caminho sangrento e repetindo os
erros da história, Sharon não aprendeu que não são a brutalidade, crueldade ou
violência que quebrarão a vontade de um povo determinado a conquistar sua liberdade,
dignidade e independência. Ele não mostra sinais de ter tirado as conclusões
históricas corretas de que o colonialismo é, por natureza, uma forma temporária de
escravização e que um povo colonizado não pode ser posto de joelhos, através de
sufocantes medidas colonizadores de subjugação e repressão.
Irmãos e irmãs, apelo a vocês hoje, para que os palestinos ausentes sejam devolvidos à
agenda de humanidade, para validar nossa realidade e direitos, para reconhecer e aliviar a
dor e o sofrimento desta nação torturada e dar reconhecimento à história palestina,
há tanto tempo negada. Vocês são a única fonte de autorização para um povo que se
sente abandonado e desautorizado, mas que nunca perdeu a fé na solidariedade humana e na
visão compartilhada de emancipação.
Apelo a vocês, como muitas vezes tenho feito a governos e em fóruns globais para que não adotem o exemplo de neutralidade covarde, porque na luta contra a opressão, injustiça, racismo, intolerância, colonialismo e exclusão, não pode haver neutralidade. Todos estamos sendo chamados para tomar partido em nome da vítima, do desprivilegiado e do oprimido, e impedir o avanço da maré do mal, impedindo que as forças da escuridão prevaleçam. Aqui, não existe veto dos Estados Unidos para nos privar de proteção e de nossos direitos, nem existe censura ou chantagem para intimidar os governos administrados por seus interesses particulares.
Que este encontro irradie a pura luz do espírito humano que não pode ser enfraquecida ou reprimida. Nosso caminho para o futuro deve ser baseado na redenção da história e do passado, livre das algemas das iniqüidades herdadas. Nosso legado para o futuro deve ser baseado na retificação dos legados dolorosos do passado.
Irmãos e irmãs, nunca antes um exército de ocupação
impôs um cerco tão completo e sufocante a uma população civil cativa, e depois
começou a bombardear suas casas, sua infraestrutura, assassinar seus ativistas e
líderes, destruir suas culturas e árvores, matar seus civis à vontade, roubar suas
terras e, em seguida, exigir que eles concordem, como ovelhas, em serem abatidos. Nunca
antes as vítimas tiveram recusado o direito de pronunciar as terríveis atrocidades que
vêm sendo cometidas contra elas como uma questão de política, mas, antes, são acusados
e punidos por causa de sua intimidação.
Em nome do povo da Palestina, apelo a vocês que tenham
coragem para intervir, para assegurar que o opressor seja responsabilizado e a vítima
protegida, para decretar aqueles princípios e valores que não só protegem a vida mas
também a dota de qualidades humanas que tornam o viver melhor. Apesar de nossa dor
sufocante, não nos rendemos às forças de ocupação, à colonização, ao racismo, à
desumanização e nem adotamos suas distorções morais. Peço a vocês que não cedam,
mas que mantenham e aumentem a luta pela dignidade, igualdade, liberdade e justiça, como
um ato de afirmação coletiva em nome da humanidade como um todo.
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