ATUALIDADES
QUEM É A VÍTIMA, QUEM É O CARRASCO
Por Emmanuel Dror Farjoun
Ari Shavit, um homem orgulhosamente leal à sua nação, admira-se de a esquerda em Israel ter ficado calada sobre a morte de colonos israelenses na Cisjordânia (Ha'aretz, 26/06/01). Responderei em meu próprio nome, sabendo muito bem que dentro da esquerda minha voz representa a minoria, ainda que não de todo insignificante.
Eu me calei sobre as contínuas mortes de colonos na Cisjordânia e Gaza, porque, em minha opinião, todo o projeto de colonização na Cisjordânia e Gaza é um crime de guerra que faz meu sangue ferver. Para mim, cada colono adulto é um cúmplice neste crime de guerra, no roubo de terras, na exploração vergonhosa, na repressão aos mais elementares direitos humanos dos palestinos e nas mortes e tortura que vêm acontecendo há mais de 34 anos.
Cada colono é um participante ativo da discriminação em todos os setores da vida. O regime de apartheid que Israel criou depois da guerra de 1967 nos territórios ocupados, usando o exército e os colonos, é, certamente, o equivalente moral e prático da escravidão que foi imposta a vários povos africanos. A escravização também aconteceu com a participação ativa de seus próprios líderes. Também é semelhante ao regime de apartheid da África do Sul, cujo imposição contou com o apoio de muitos policiais negros.
Sabemos que algumas vezes os escravos reagem com extrema violência contra seus senhores. Alguns exemplos podem ser obtidos da leitura de "A Confissão de Nat Turner", de W. Styron. Estrupros e massacres arbitrários foram parte integrante das revoltas de escravos, que curiosamente eram bastante raras. Na África do Sul, durante o regime de apartheid, podia-se testemunhar torturas terríveis e ateamento de fogo em negros e policiais suspeitos de colaborarem. No entanto, as organizações e os movimentos de massa que pediam a libertação dos escravos, não perdiam muito tempo em protestar contra estes atos violentos e brutais. Essas terríveis atrocidades de escravos contra seus senhores servem para mostrar que o regime de escravidão corrompe e destrói não só os senhores como, também, o espírito e a moralidade dos próprios escravos, vítimas diretas da escravidão.
Chamar, como faz Ari Shavit, a luta violenta de 3 milhões de pessoas que estão privadas dos direitos mínimos, sem pátria, muitas vezes privadas de água, comida e certamente privados de uma liberdade mínima de movimento, chamar esta luta de "limpeza étnica", como Shavit chama, equivale a desprezar os prejudicados.
Como prova do que digo, os índios americanos praticaram "limpeza étnica" contra os brancos e na África do Sul os negros que lutaram para retomar territórios e terras perdidas em séculos de expoliação também praticaram limpeza étnica.
Ari Shavit poderia dar um outro exemplo de uma limpeza étnica perpetrada por vítimas sem pátria que estiveram sob ocupação por décadas contra um dos mais fortes e ricos países do globo?
Não é só a esquerda israelense que acha que o estado israelense sob domínio de diversos governos está transgredindo o direito internacional e violando os acordos internacionais com os quais Israel se comprometeu; não é só a esquerda que considera o chefe de nosso governo um possível criminoso de guerra que se envolveu em matanças sistemáticas nos últimos 50 anos. Já vimos no programa da BBC os crimes de Sharon no Líbano, e até uma comissão governamental israelense o considerou parcialmente responsável pela matança de civis inocentes no campo de refugiados de Shatila.
Em sua idade avançada, talvez Sharon comece a sentir o fardo pesado da força assassina que ele empregou nos últimos 50 anos - desde Qibyeh, passando por Sabra e Shatila, até o recente bombardeio com caças F-16 no coração da densamente povoada cidade de Nablus. Mas seus crimes não são específicos dele. Ele se sente perfeitamente confortável com seus aliados, muitos dos quais participaram em crimes iguais ou até piores.
Talvez uma pequena metáfora ajude Shavit a compreender minha posição em relação à morte dos colonos. Se virmos uma mulher sendo violentamente estuprada se defendendo, usando suas mãos ou uma tesoura nos olhos do estuprador, posso me surpreender ou me espantar por um momento com sua reação violenta, mas, ao mesmo tempo, sei muito bem quem é o estuprador e quem está sendo estuprado e como é grave este crime. Se além do mais, durante o ato, o estuprador forçar sua vítima a uma negociação em lugar de deixá-la sozinha, não lhe dou crédito pelo fato de deixar apenas 10% de seu corpo dentro dela, mesmo que isso fizesse com que ela se comportasse gentilmente e não se queixasse à polícia no dia seguinte. Não, não lhe dou crédito por este tipo de reconsideração parcial da situação.
A ocupação continuada do terrível regime de apartheid que submete 3 milhões de pessoas, das quais 1.5 milhão são crianças, ao poder poder arbitrário da ocupação, a supressão de direitos e incontáveis restrições serão pagas a cada ano com taxas de juros cada vez mais elevadas pelas duas sociedades: na corrupção continuada de ambos os lados, no enorme fortalecimento das ideologias religiosas e dos grupos extremistas, na fuga dos melhores quadros e de pessoal treinado e na obstrução à educação e profissionalismo em todos os níveis, na fuga de muitas pessoas sensíveis que não podem tolerar a violência continuada e a discriminação desumana e na degradação bárbara de muitos aspectos da vida.
Todos pagaremos afetuosamente quando ambas as sociedades se partirem em grupos que levam a direções opostas ou alternativamente essas sociedades se unirem em torno de falsas visões de vingança, destruição do outro lado, libertação dos locais sagrados ou outro sonho de estado verdadeiro.
Enquanto a exploração cínica e vergonhosa de 3 milhões de palestinos faz-se possível pelas zonas de concentração A e B e C, nas quais eles estão confinados e por um controle total de alimentos e outros produtos, enquanto as belas montanhas e vales da Cisjordânia atraírem e aguçarem o apetite da maior parte da sociedade israelense, o caminho para o desenvolvimento moderno estará grandemente obstruído. Além do mais, a possibilidade de se cair na degradação religiosa, cultural e, finalmente, científico-tecnológica, estilo Afeganistão, é verdadeira e cresce a cada dia.
É possível afirmar-se, com alguma justificativa, que, em sua fase inicial, a ocupação trouxe alguns ganhos verdadeiros e substanciais, mesmo que conseguidos com métodos escusos, para a sociedade israelense e até para a palestina. Mas, este estágio já passou há muito tempo. Agora estamos todos atolados na lama, enquanto muitos de nossos líderes ainda esperam trazer de volta os primeiros dias de glória de uma ocupação lucrativa. A alegria inicial desta ocupação, como uma droga, transformou-se em doloroso vício com todas as consequências criminosas comuns e tentativas frustradas e desesperadas de libertação dos piores aspectos, sem realmente abandoná-la.
Agora estamos pagando pesadamente com a indiferença espantosa de grande parte de nossa sociedade para com o desenvolvimento moderno, por um retorno à mais estreita e degradante forma de "ensino" religioso, pela proliferação de escolas religiosas onde nada mais além do Talmud é ensinado, onde a ciência em geral, e a biologia em particular, é desprezada e evitada como uma terrível heresia. Está claro para mim que a negação da teoria biológica da evolução para a sociedade israelense é tão perigosa como a negação do holocausto pela cultura sócio-política européia.
Os movimentos religiosos israelenses, com um instinto esperto, compreendem muito bem que este encanto do estado verdadeiro da Cisjordânia, o messianismo da Grande Israel, e as esperanças de glória via controle total de toda a Terra e de sua população pelos judeus, são o maior obstáculo ao moderno desenvolvimento do povo de Israel - um desenvolvimento que para eles representa o pior perigo. Alegremente eles voltam sua atenção para a atração das "riquezas", o estado real e religioso-cultural, na posse material da terra e de seus trabalhadores, e longe da verdadeira fonte de riqueza: o moderno progresso científico-tecnológico e cultural, em direção ao qual muitos israelenses inclinaram-se e com resultados espetacularmente bons.
Assim, eles são levados em seu extremo nacionalismo e chauvinismo não só por toda a voracidade religiosa e materialista e dedicação à Terra de Israel, mas, também, pela compreensão de que o racismo e a afirmação legal e factual da inferioridade de tudo que não é judeu é o maior obstáculo para o moderno progresso tecnológico e cultural de Israel, seja no campo dos direitos sociais e humanos como no domínio político-econômico.
Não, nada justifica a matança indiscriminada. Nem mesmo esta ocupação vergonhosa. Mesmo o ideal de libertação não santifica os meios empregados. Afinal de contas, a lógica da santificação dos meios por objetivos santos transformam os instrumentos algumas vezes imorais em novos objetivos sagrados e muitas vezes levam os verdadeiros objetivos finais para um passado remoto.
Mas, o movimento contra a ocupação em Israel foi criado para lutar contra uma coisa específica, uma violência e discriminação específicas infligidas pelo estado, em lugar de uma luta contra qualquer transgressão dos códigos morais. Estamos aqui para defender as vítimas da política de estado e não para abusar de vizinhos e nem protestar contra a morte de ladrões de terra, como são os colonos, sejam eles a versão mais extremada de Goldstein, o assassino de 32 religiosos palestinos pacíficos em Hebron, ou os mais amáveis confiscadores de terra que cercam as terras palestinas ancestrais.
Sim, a ocupação israelense aumenta a corrupção dos
palestinos, assim como a escravidão sempre corrompeu e destruiu muitas de suas vítimas,
não só bloqueando os possíveis caminhos do desenvolvimento humano normal, compatível
com os tempos. Os resultados desta corrupção serão, e já estão sendo, criticados,
principalmente pelas bravas vozes palestinas, e eu ansiosamente espero. Mas, enquanto os
crimes do estupro coletivo continuado que Israel pratica na Cisjordânia e Gaza não
terminarem, minha voz de protesto contra os crimes dos escravos, os crimes dos
prisioneiros das zonas de concentração, dos novos guetos, bloqueados pelos tanques
israelenses para qualquer progresso e movimento livre, minha voz não será mais do que um
sussurro, comparado com o meu ódio implacável contra o executor coletivo: os governos de
Israel e seus colaboradores em todos os níveis das sociedades israelense e palestina.
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