ATUALIDADES
UM ESTADO DELINQUENTE
Fábio Konder Comparato(*)
Que não se engane o leitor: não estou me referindo aqui ao Afeganistão do Taleban, mas sim aos EUA.
A característica tipificadora da delinquência internacional consiste no repúdio sistemático do direito e da moral nas relações entre os povos. É exatamente o que o faz o Estado norte-americano.
Comecemos pela moral. Os seus grandes princípios estão, hoje, consubstanciados nas solenes declarações e nos tratados internacionais de direitos humanos. Ora, desde 1966, os EUA têm se recusado a aceitar todas as convenções internacionais nessa matéria, com a declaração explícita de que elas contrariam a sua soberania.
Assim foi, para citar poucos exemplos, com o pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais de 1966; com os protocolos de 1977 às convenções de Genebra, sobre a proteção às vítimas de conflitos bélicos; com a convenção de 1979, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres; com o protocolo adicional de 1988 à convenção americana de direitos humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais; com a convenção sobre a proteção do menor, de 1989; com a convenção de Ottawa, de 1997, sobre a proibição de uso, armazenagem,produção e transferência de minas antipessoais; e com a conveção criadora do Tribunal Penal Internacional, de 1998. A rejeição dos dois últimos tratados revela, em toda a sua nudez, a imoralidade internacional do EUA.
Segundo informações veiculadas pela ONU, há mais de 110 milhões de minas ativas espalhadas por 68 países e uma quantidade equivalente armazenada em todo o mundo. Todos os meses, mais de 2.000 pessoas, sobretudo mulheres e crianças, são mortas ou mutiladas por explosões de minas desse tipo. Ora, o maior produtor e distribuidor desses artefatos de morte são os EUA.
Quanto ao Tribunal Penal Internacional, ele foi criado para julgar os responsáveis pelos crimes de genocídio, os contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Apenas 6 países se recusaram a assinar a convenção, além dos EUA: China, Iraque,Israel, Líbia, Qatar e Iêmen. Mas os EUA foram mais longe: o Pentágono instruiu todos os adidos militares no exterior a tentar formar um lobby internacional contra a ratificação do tratado.
Em matéria de operações bélicas, então, o comportamento dos EUA, nos últimos 20 anos, frisa com o banditismo internacional. A potência norte-americana atacou militarmente Granada, a Líbia, o Panamá, o Iraque (bombardeado incessamente há dez anos), a Somália, o Haiti, o Afeganistão, o Sudão e a ex-Iugoslávia. No caso do Iraque, o bloqueio econômico, acrescido aos bombardeios, tem vitimado, todos os anos, dezenas de milhares de pessoas.
Abre-se agora uma nova guerra: os EUA contra o Afeganistão. Como das vezes anteriores, a ONU é mantida desdenhosamente à margem.
Ora, a Carta de San Francisco só admite a guerra em situação de legítima defesa (art. 51), sabendo-se que esta consiste no imediato revide a uma agressão atual ou iminente de um Estado contra outro. Fora disso, o revide não passa de represália, ou seja, uma forma coletiva de vingança. Mesmo em situação de legítima defesa, o Estado-vítima deve comunicar o fato imediatamente ao Conselho de Segurança da ONU, para que este decida se o revide pode prosseguir ou não.
Os mais céticos dirão que a moral e o direito internacional não passam de piedosas ilusões, num mundo em que só o poder econômico e a força militar suscitam algum respeito. Seja. Mas, então tenham um pouco mais de compostura e não venham, com unção eclesiástica ou pompa ministerial, afetar indignação diante do terrorismo. Se não existe moral nem direito, somos todos bandidos. Salve-se quem puder!
(*) Fábio Konder Comparato,jurista, é doutor pela Universidade de Paris, professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor "honoris causa" da Faculdade de Direito de Coimbra.