Alguns Aspectos da Teoria da Gravitação
Roberto de Andrade Martins
UNICAMP
Gostaria de fazer algumas observações sobre a questão dos limites em que é possível a utilização do conhecimento dos trabalhos empreendidos por Newton, principalmente aqueles ligados à Gravitação, tendo-se em vista um maior esclarecimento da situação atual, e, também, as perspectivas de desenvolvimento nessa área, na Física.
Primeiramente, introduzirei uma analogia newtoniana em relação ao desenvolvimento da ciência. Do ponto de vista da Mecânica de Newton, para se descrever o desenvolvimento de um sistema físico, é preciso saber as condições iniciais, as quais se traduzem pelo conhecimento da posição, das velocidades e das características das partículas envolvidas - características no sentido da massa e, pposteriormente, de carga elétrica, propriedades nucleares, etc. Tendo-se tais características e o conhecimento das leis da Física (as leis da Mecânica) e também as leis sobre o tipo de interação relevante no caso, pode ser interação gravitacional ou interação elétrica ou de qualquer outro tipo - pode-se prever a evolução do sistema.
De maneira análoga, em se tratando da História da Ciência - no caso de se pensar sua evolução - deve ser importante conhecer a configuração de um sistema científico num determinado instante, levando-se em conta também as leis que regulam a interação entre as partes de tal sistema e alguma coisa equivalente à velocidade dessas partes. Em outras palavras, não basta conhecer a posição de cada parte no sistema em um dado instante, mas é necessário conhecer também sua velocidade. É aí que entra a grande importância da História da Ciência.
De um modo geral, um cientista - um físico, em particular - que não tenha conhecimento histórico, pode saber muita coisa a respeito do estado dos conhecimentos de sua época, mas não sabe sobre as tendências futuras da Ciência, principalmente em grande escala. Como será a física daqui a 100, 200 ou 300 anos ? Como será a Física no período de comemoração do terceiro centenário da Teoria da Relatividade de Einstein? Pode-se tentar fazer alguma projeção a longo prazo (tais projeções são as mais seguras, pois eu não vou estar vivo para ser criticado... ) analisando-se como era a Física há 300 anos, como ela se encontra hoje e buscando as relações relevantes. Podemos também refletir sobre o tipo de dificuldades com as quais Newton se debatia em sua época, o método que ele utilizou para tentar superá-las, aproveitando sua "lição" para coisas mais imediatas. Não existiam atualmente dificuldades muito parecidas com aquelas enfrentadas por Newton há 300 anos atrás? Não haverá alguma inspiração que possamos retirar de sua obra, em particular dos Principia, para o trabalho científico atual? Tratarei então de algumas questões referentes ao trabalho de Newton, principalmente aos temas relacionados à Gravitação, à Teoria da Relatividade Geral e aos problemas atuais nessa área, tentando também apontar possíveis caminhos para o futuro.
O trabalho de Newton sobre a Gravitação surgiu e se desenvolveu relacionado ao problema da compreensão daquilo que ocorre no Sistema Solar, ou seja, relacionado à problemática astronômica. Desde o surgimento de suas primeiras idéias sobre o assunto, com aquela célebre lenda da queda da maçã, sabe-se que sua motivação principal era compreender o movimento da Lua (por que ela não se afastava da Terra?) e depois entender os detalhes do movimento de vários astros. A lenda da queda da maçã é descrita de forma muito grosseira, dizendo-se que Newton estava em algum lugar onde havia macieiras, caiu uma maçã ao chão e então ele descobriu que existia gravidade. Isso é tolice completa, pois a existência da gravidade já era sabida por todo mundo, nem o nome "gravidade" era novo - já se utilizava tal termo, em latim, muito antes de Newton; havia o correlato grego, com a mesma raiz (baros), e pode-se até afirmar que em tempos pré-históricos a gravidade era conhecida.
Vou explicar porque posso falar sobre a pré-história. Estudos lingüísticos feitos no século passado mostraram que uma série de idiomas históricos têm uma origem comum - os idiomas indo-europeus têm uma raiz comum que é o idioma indo-europeu primitivo, de onde saíram o grego, o latim, o sânscrito, o armênio e uma série de outros idiomas. procurando os radicais comuns a todos estes, pôde-se reconstruir tal idioma primitivo indo-europeu, o que foi feito no século XIX e início do século XX. Sabe-se o vocábulo básico, a gramática, a conjugação verbal, a declinação dos substantivos, a quantidade de gêneros, como eram construídos os números - singular, plural e dual e também a pronúncia do indo-europeu. Sabe-se que há nesse idioma uma palavra que representa gravidade -*gwer.
Então, pode-se concluir que desde os tempos pré-históricos as pessoas estão levando tombos e vendo objetos cair e que essas pessoas já sabiam da existência da gravidade e falavam sobre ela. O que aconteceu, portanto, no episódio da maçã? Há uma descrição do próprio Newton, bem tardia, e também outra do marido de uma sobrinha sua, a respeito do que ocorrera. O fato deu-se durante o período da grande praga, por cuja causa Newton havia saído de Cambridge e voltado para a fazenda de sua mãe. Estava ele, então, passeando no jardim (a palavra jardim é do relato) e ao observar uma maçã caindo, casualmente ocorreu-lhe a idéia de que O mesmo poder que fazia com que a maçã caísse talvez fosse responsável por reter a Lua presa à Terra, impedindo-a de se afastar. Essa idéia básica foi o seu ponto de partida. Aquilo que fazia com que os corpos caíssem nas proximidades da Terra talvez não estivesse limitado a essa faixa de proximidade, já que era sabido - e isso faz parte do relato de Newton - que mesmo no alto das montanhas existia a gravidade. Talvez, então, ela se estendesse a distâncias ainda maiores, quem sabe até a Lua. E, se isso ocorresse, era possível que este fosse o motivo que impedisse a Lua de se afastar da Terra, como seria sua tendência natural, a de caminhar em linha reta- a Lei da Inércia já estava bem estabelecida na época de Newton. O que Newton tenta fazer imediatamente é calcular qual seria essa tendência da Lua em "cair".
Segundo o seu relato e manuscritos conservados desse período de sua estada na fazenda, Newton havia utilizado a Terceira Lei de Kepler fazendo a aproximação de que as órbitas fossem circulares. Obteve, então, resultados segundo os quais, em vários planetas do Sistema solar, a aceleração é inversamente proporcional ao quadrado da distância e então testou se isso se aplicaria ao caso da Lua. A aplicação de tal esquema à Lua tem características numéricas bem interessantes. A distância da Lua à Terra é cerca de 60 raios terrestres (esse era o número aproximado, pois Newton não o sabia exatamente de cor e não contava com os livros na fazenda). E 1 minuto de tempo tem 60 segundos. Se a aceleração é inversamente proporcional ao quadrado da distância, então a aceleração da Lua seria 1/3600 ou 1/602 da aceleração na superfície da Terra. Newton sabia qual o espaço percorrido por uma pedra em queda perto da superfície da Terra em 1 segundo - sabia a aceleração da gravidade. Logo, a distância que uma pedra cairia em 1 segundo assumiria dimensões muito menores (proporção de 1/3600) se estivesse na posição em que a Lua está em relação à Terra. Por causa dessa coincidência numérica Newton fez a seguinte conta: aquilo que uma pedra cai aqui em 1 segundo, ela deve cair em 1 minuto se estiver à mesma distância da Lua, já que o espaço percorrido é proporcional ao quadrado do tempo no movimento uniformemente acelerado (sendo o quadrado do tempo 3600, do segundo para o minuto, isso compensaria a variação da distância). E, a partir dessa conclusão (o que uma pedra percorre próxima da Terra em 1 segundo, ela o percorreria em 1 minuto se estivesse à distância da Lua ), estando a Lua sujeita exatamente a essa mesma influência, ela deveria então estar caindo em direção à Terra nessa mesma distância em 1 minuto. Por que, então, ela não chega à Terra? Porque ao mesmo tempo em que cai, ela possui o movimento tangencial. Newton passa pois a estudar o movimento circular da Lua e calcular, em 1 minuto, o quanto esta teria se afastado da Terra se caminhasse em linha reta. Newton percebeu, então, a quase exata concordância entre tal distância e aquilo que a Lua deveria cair em 1 minuto em direção à Terra devido à ação da gravidade.
Posteriormente, utilizando os dados astronômicos e medidas do raio da Terra, notou que essa concordância não era totalmente exata e concluiu que haveria algum erro em sua teoria, em seus cálculos, em vez de pensar sobre a hipótese dos dados estarem errados. Isso retardou o seu trabalho.
Foi esse, enfim, o ponto de partida de Newton, e todo o seu trabalho está relacionado ao estudo do movimento dos astros. Os resultados de Newton são apresentados de forma mais ou menos definitiva na primeira edição dos Principia, em 1687. Mais ou menos definitivo no sentido em que foi um trabalho apressado, uma vez que ele queria publicá-lo rapidamente e com isso evitar controvérsias a respeito da prioridade. Praticamente todas as páginas dessa edição contêm erros. Para a segunda edição foram necessárias centenas de correções de detalhes (e tais erros não eram tipográficos, e sim erros de cálculo). Porém, tudo isso é compreensível. É importante percebermos quanto essa teoria de Newton traz de novo.
Para nós, que fomos educados dentro da tradição newtoniana, é muito difícil compreender o salto imenso que existe entre a época anterior à Newton e a que se seguiu a ele. É preciso, claro, entender que ele não estava isolado, que outras pessoas estavam trabalhando na mesma direção e que algumas dessas pessoas chegaram, ao mesmo tempo, ou pouco depois, ao mesmo resultado geral, à mesma idéia básica (a existência de uma atração inversamente proporcional ao quadrado da distância). Porém, Newton avançou muito além dessa idéia geral de que havia uma força gravitacional entre todos os corpos do universo, aplicando-a e levando-a às últimas conseqüências e testando-a em casos limites. Ele utilizou essa teoria da gravitação não só para dar conta das leis de Kepler, mas mostrou que estas leis, que haviam sido seu ponto de partida, não estavam corretas, mas eram apenas um caso limite, desde que se considere o Sol como não podendo estar parado no centro do Sistema Solar, já que ele está sujeito à força dos outros planetas. Existem correções às leis de Kepler porque se vai considerar não mais o Sol como estacionário, e sim o centro da massa do sistema solar.
Kepler achava que o Sol estava num dos focos da elipse, e que a área varrida pelo raio vetor que liga o Sol aos planetas era igual em tempos iguais. Newton diz que isso não é correto, pois não é o Sol que está no foco. Num sistema de dois corpos, o centro de massa dos dois corpos é que estaria no foco da elipse. Além dessas correções devidas à consideração do movimento do Sol, há perturbações, pois todos os corpos se atraem uns aos outros, sendo o movimento dos planetas regido não apenas pela atração do Sol, mas também pelas atrações mútuas dos outros planetas. Newton calcula essas perturbações introduzidas nos movimentos dos planetas.
Newton observa os movimentos dos satélites, e, a partir daí, calcula as massas dos diversos planetas e faz comparações entre elas. Kepler já havia tentado determinar essas massas por regras numerológicas, mas a tentativa de Newton é a primeira feita com fundamentação.
Até Newton, o movimento dos cometas era considerado como uma coisa totalmente irregular e que nada tinha a ver com o movimento dos planetas (isso aparece muito bem, por exemplo, na teoria de Descartes). Newton mostra então que até o movimento dos cometas pode ser explicado pela Lei do Inverso do Quadrado da Distância.
Ele é também o primeiro a estudar teoricamente qual é a atração gravitacional de um corpo extenso não esférico (de um elipsóide de revolução ); depois, levando em conta a rotação da Terra em torno de seu eixo, estabelece que a Terra deve ser achatada, calcula esse achatamento, calcula a atração gravitacional provocada por esse elipsóide achatado e prevê, então, uma variação da atração gravitacional com a latitude. Propõe também o modo de se determinar experimentalmente, através de pêndulos, esse efeito. Ele dá uma explicação teórica para a precessão dos equinócios, levando em conta justamente esse achatamento (achatamento polar, dilatação equatorial da Terra).
Newton oferece também uma explicação quantitativa para as marés, levando em conta a interação gravitacional e o movimento da Terra. Galileu, ao tentar estudar o fenômeno das marés, cita "superstições" segundo as quais a Lua teria sobre elas alguma influência. Newton mostra que não são superstições, e calcula tal efeito.
Ele chega a seu próprio limite intelectual e matemático da época ao tentar trabalhar com as modificações do movimento lunar devidas a todas as perturbações causadas pelo achatamento da Terra e pela atração gravitacional do Sol e dos planetas. Foi o período no qual, segundo os biógrafos, Newton teve pela primeira vez dores de cabeça permanentes e insônia, pois chegara a um problema que não conseguia resolver, ou seja, não conseguia encontrar os métodos matemáticos adequados que possibilitassem uma concordância suficientemente boa entre a teoria e a experiência.
Em resumo, como esses exemplos mostram, Newton não apenas estabeleceu sólidas bases teóricas, mas fez uma enorme quantidade de aplicações, bem sucedidas, da teoria (ele procurava sempre verificar a concordância das previsões com os dados experimentais). Era preciso que se tomassem cuidadosamente as medidas sobre o movimento da Lua para que se pudesse testar a teoria; tomar dados cuidadosos sobre os cometas; medir o período dos pêndulos ao longo de um meridiano para testar o achatamento da Terra, etc. Ele próprio fazia experiências que podiam ser realizadas em pequena escala: experiência sobre a proporcionalidade entre massa inicial e massa gravitacional e assim por diante. Desse trabalho monumental surgiu uma seqüência longa, de mais de dois séculos de pesquisas dentro da linha newtoniana. Apenas no final do século XIX e início do século XX surgiram tentativas sérias de ultrapassar a teoria da gravitação de Newton e substituí-la por outra.
Nós normalmente pensamos em Einstein como sendo uma pessoa isolada que se preocupou com a modificação da Teoria da Gravitação; na verdade, dezenas de pessoas no final do século estavam percebendo a necessidade de introduzir alterações na teoria da gravitação, seja supondo uma atenuação diferente da atração gravitacional com a distância, seja incluindo um termo de variação desta atração com a velocidade dos corpos, seja introduzindo a idéia de absorção da gravidade pela matéria. Ou ainda, como no caso de Lorentz, recorrendo a uma teoria eletromagnética da gravitação; no caso de Poincaré, a uma teoria relativista desta; ou, no caso de Abraham, a uma teoria sensorial. Cita-se que Einstein tomou a única anomalia da Teoria da Gravitação que existia na época, que era o efeito anômalo da precessão do periélio de Mercúrio, e conseguiu explicar esse efeito. Mas, em 1896, Newcomb havia detectado não uma, mas seis anomalias no movimento dos planetas no Sistema Solar, que não eram explicadas pela Teoria da Gravitação. Uma delas era a precessão do periélio de Mercúrio, outra era a precessão do periélio de Marte; essas duas cabem na gravitação einsteniana, mas as outras quatro não eram explicadas pela Teoria da Relatividade Geral. Uma delas era a anomalia do movimento da Lua -oscilações nesse movimento (às vezes ela estava um pouco atrasada ou adiantada em relação ao movimento previsto pela Teoria Newtoniana). Einstein tentou explicar isso e foi mal sucedido. A distância entre a Lua e a Terra é satisfatoriamente explicada, mas o movimento em longitude, não. Existem ainda outros problemas, como a aceleração secular dos satélites de Marte, que são discutidos até hoje.
A Teoria da Relatividade Geral não fechou o ciclo. Além de não ter resolvido todos os problemas astronômicos, existem problemas teóricos dentro dela que são muito importantes, como a possibilidade de ciclos causais. A tendência em cada instante é que os cientistas pensem que chegaram ao ponto final e, portanto, que não precisam fazer mais nada. A minha opinião é que, daqui a 300 anos, nós teremos uma diferença tão grande entre a Teoria da Gravitação do futuro e a Relatividade Geral quanto a diferença entre esta e a Mecânica e a Gravitação Newtonianas.
Bibliografia:
Martins, Roberto de Andrade; Pesquisas sobre Absorção da Gravidade; trabalho publicado nos Anais do I Seminário Nacional de Histórica da Ciência e da Tecnologia; Rio de Janeiro, 1987.
Martins, Roberto de Andrade; O Princípio de Antecedência das Causas na Teoria da Relatividade; publicado nos Anais da Anpof; vol.l; n° 1, 1986. .
Publicado originalmente em "Perspicillum", publicação periódica do Museu de Astronomia e Ciências Afins, do CNPq/SCT Volume 4 - número1 - novembro de 1990.
publicação: 06/12/2001