"S.Paulo, 1-XI-37.
Rodrigo,
na quinta-feira de noite, me aconteceu esse mal terrível que é botar um chapéu em cima da cama, vai daí, tudo me tem corrido tão mal estes dias, que estou positivamente desesperado, com medo até de mover o braço. Você não reparou? Até principiei esta carta com o lado encarnado da fita, ora pinhões! Estou chegandinho da Bertioga, e estou envolvido em talco pra ver se me seco de três dias e meio da maior umidade, vivi n'água.
Mas vamos por partes pra demonstrar bem a caguira. Na quinta já o Paulo Duarte me fez escrever aquela carta que lhe mandei expressa na sexta. Não repare, o Paulo é meio estouvado mas é ótimo sujeito, amigo às direitas. Eu já tinha dado para ele, dado, todas as referências que você me mandou sobre decretos e outras coisas já do passado a respeito da defesa de monumentos históricos. Mas desconfio que perdeu e vai me obrigou a lhe escrever aquela carta, o que não fiz sem uma certa vergonhinha, apesar de sermos bons camaradas. Em qualquer caso desculpe.
Na sexta de manhã partimos já atrasados em busca da Bertioga, o automóvel cedido gentilmente pra estas pesquisas do Paulo pela Ford demorou, o meu, cedido pela Prefeitura estava na hora certa, mas partimos só depois do almoço. Em Santos, o companheiro de lá que ia conosco demorou, mas isso não era nada: a lancha que devia ficar à nossa disposição até amanhã, tinha de voltar no mesmo dia, por obrigações imprescindíveis surgidas de repente. Mas o Paulo deu o estrilo e depois de várias démarches conseguimos que a lancha ficasse até domingo de tarde.
Principiou chovendo. Chegamos na Bertioga quase tempestade e isso às 19 horas. Não pretendíamos absolutamente ficar lá, mas no Indaiá, 14 quilômetros de praia, mas com o mau tempo, e mesmo sem ele, era impossível ir. O transporte único do local são dois caminhões. Um estava escangalhado e o outro estava no Indaiá, 14 quilômetros, e lá pernoitaria esperando os lances de rede da manhã seguinte. As duas pensões não tinham mais quartos, com veranistas. Afinal fomos dormir numa casa de taipa dum tabaréu que nem iluminação de vela tinha, mordemos um presunto e uma pescada amarela de escabeche que levávamos, e passamos uma noite com sede, porque na Bertioga não havia água mineral, só perfumarias, guaranás e coisas que embebedam. Noite de água, manhã de água, inda fomos assim mesmo ver o forte da Bertioga que está com uma das paredes rachadas ameaçando ruir a vigia que dá pro mar alto. Meu maior interesse era ver, do outro lado do canal, a tal de construção de pedra formidável que o Luiz Saia pretendia ter descoberto. Mas era impossível. Preferimos partir pro Indaiá, com o caminhão posto às nossas ordens o dia inteiro, e voltar a qualquer estiada. Estiada nenhuma. E na casa que foi do grande poeta Vicente de Carvalho, umas dezoito camas, casa ótima de madeira, até instalações sanitárias, quando fomos ver, 18 camas, os colchões mexiam com rumorzinho sinistro, percevejo, nunca vi tanto percevejo na minha vida, isto é, só uma vez vi cinco, e isso foi em 1917 em Mariana e por causa deles dormi em pé; e outra vez, num carro da Central vi um, e por causa dele dei tal escândalo que o trem quase parou. Agora, não eram dezenas, eram centenas de percevejos, de dia, de dia claro, ou escurecido pela chuvarada, por cima, por baixo dos colchões, e eram 18 colchões. E a Bertioga estava a 14 quilômetros. E os únicos quartos sobrantes, os em que tínhamos dormido a noite anterior, já estavam cedidos pra outros que chegavam pra descansar estes dias na Bertioga. A infinita paciência de Juanita, a mulher do Paulo Duarte, conseguiu roer a cerberice do caseiro, que resolveu abrir o quarto do atual proprietário do Indaiá. Descobriu-se nesse quarto, uma cama pra casados, e um colchão e cama novos pra solteiro. Este colchão e cama foram conduzidos pra um quarto de frente, depois deste limpo a dez litros de flit com mentira e tudo. O resto da companheirada dormiu nos outros quartos, isto é, nos percevejos. Chovia. Não se pôde voltar à Bertioga ver nada. Passei a noite acordado, sem um só percevejo que eu saiba, mas pensando neles. Na manhã seguinte chovia, ontem.
Nós todos pensando por dentro que o milhor era voltar, mas como cada qual aparentava bem-estar por causa dos outros, ninguém não sentia coragem de propor a volta. Mas isso eram dez horas da manhã, chovia, a frase como que arrebentou da boca de todos, 'Vamos embora pra S.Paulo'! Chovia. Mas o caminhão estava do outro lado, 14 quilômetros, na Bertioga, onde fora levar o resultado dos últimos lances de rede. Aliás mesmo que estivesse ali, a lancha pra Santos só partia às 15 horas. Presunto, pescada amarela de escabeche, caminhão que vinha chegando, e lá voltamos com malária, raiva e chuva pra Bertioga. Mas quando chegou neste momento eu estava completamente bêbado. Bêbado de raiva, embebedado de propósito por causa do tempo e dos contratempos. Mas havia de atravessar o canal. Tratamos um tabaréu mais suas canoas, e lá fomos ver a tal ruína, de mapa do Luiz Saia em Punho. De repente o tabaréu deu uma deixa e dei um murro na testa bêbada, era por força o convento de S.João, não podia ser outra coisa, de que o relatório diz apenas fronteiro a Bertioga e séc. XVII. É uma construção verdadeiramente espantosa, seu Rodrigo, tudo ruína é verdade, ruína quase informe, mas são cem metros quadrados de morro trabalhado em pedra, tudo construções de pedra, e provavelmente mesmo, as aparelhadas, vindas de Portugal. Só consegui fazer a identificação depois de muitas e das mais disparatadas versões e imaginações, você bem pode imaginar. Parece, por informações que recebi, que ainda se conseguirá descobrir o orago da igreja, todinha de pedra e ruída, apenas com o arco da capela-mor íntegro. A cruz de pedra, da frontaria dessa igreja, sete pedras, está no museu do Ipiranga. E se trata, ao que parece, duma das construções mais ingentes que tivemos. E tudo é ruína disforme... Fui beber pinga. Não sei mais, os sentimentos estavam muito nublados e úmidos, não sei bem se bebi por causa do tempo ou por causa da ruína. Eram 15 horas, lancha partia. Mas então já todos estavam mais ou menos contagiados por mim, e numa das paradas da lancha quisemos comprar uma garrafa de cachaça boa, o homem deu ela! Deu dado!
Chegamos em Santos, com os olhos de ontem, bêbados. Partir pra S.Paulo quem que tivesse a coragem pra! O seu Arantes nos deu pousada, e, pra abreviar, depois duma série de mais dezoito contratempos, apesar de todas as providências, telefonemas, automóvel garantido pra volta, eram onze e trinta da manhã de hoje, nós esperando automóvel desde oito e trinta, recebemos telefonema de S.Paulo, que daí a alguns dez minutos partiria de S.Paulo o automóvel que nos iria buscar! Eu tinha tomado banho anteontem de-noite e estava com barba por fazer, guardando a felicidade pra esta minha casa da rua Lopes Chaves, não pude mais, estourei, disse inconveniências, passei a mão no telefone, tratei um V-8, seis minutos depois o automóvel estava na porta, eu partia sem agradecer nada, com cara de zangado, gritava pro chofer, 'Mais depressa". Ele foi multado pouco antes de sair de Santos, ficou puto da vida, o que foi bom porque tocou inda mais depressa eu sem almoçar nem nada, mas hora e dez depois da multa estava na rua Lopes Chaves, deixando mala, roupa, tudo em baixo, não fosse algum percevejo estar escondido por ali, me lavei, barbeei, pus um quilo de talco pra acabar com a umidade do ser, comi um bife a cavalo e chá perfeito. E lhe escrevo dando conta da excursão mais gorada que nunca fiz na minha vida.
Recebi os jornais, os mapas, tudo. Mil vezes obrigado. De certo é o fim da urucubaca. Em todo caso vou botar umas folhinhas de arruda pelos bolsos e invocar Mestre Carlos que foi quem me fechou o corpo lá em Natal, diante do forte dos Reis Magos.
Ciao com abraço.
Mário.
não reli."
Fonte: ANDRADE, Mário de. Mário de Andrade - cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Fundação Nacional Pró-Memória, 1981. (Publicações da SPHAN, 33). p.107-109.