Temas de interesse:

Mitos e heróis

 

TEORIA DA HISTÓRIA

 

 

 

A perspectiva de Peter Burke:

“Os historiadores por vezes utilizam esse termo [mito] para referir-se a histórias (ou relatos) não verídicas em contraste explícito com suas próprias histórias, ou ‘História’. Provavelmente será esclarecedor comparar esse uso com o emprego do termo por antropólogos, teóricos literários e psicólogos.

Malinowski, por exemplo, afirmou que os mitos eram - sobretudo, se não exclusivamente - histórias com funções sociais. Um mito, aventou ele, é uma história sobre o passado que, em suas palavras, faz as vezes de um ‘alvará’ para o presente. Ou seja, a história fictícia desempenha a função de justificar alguma instituição no presente e, desse modo, manter sua existência. Provavelmente Malinowski estava pensando não só nas histórias contadas pelos ilhéus trobriandeses, como também na Carta Magna, um documento utilizado para justificar várias instituições e práticas ao longo dos séculos. Como continuadamente era mal interpretado - ou reinterpretado - , o documento sempre estava atualizado. As ‘liberdades’ ou privilégios dos aristocratas responsáveis pela tomada de decisões transformaram-se na liberdade da matéria abordada. O que tinha importância na história inglesa não era tanto o texto, mas o ‘mito’ da Carta Magna. Do mesmo modo, a chamada ‘interpretação whig da história’ vigente na Grã-Bretanha no século XIX e no início do século XX, em outras palavras, ‘a tendência de escrever a favor dos protestantes e whigs, de enaltecer as revoluções desde que tivessem sido vitoriosas, de ressaltar certos princípios de progresso no passado’, funcionava como uma justificativa do sistema político contemporâneo.

Uma definição alternativa de mito poderia ser uma história com uma moral - por exemplo, o triunfo do bem sobre o mal - e personagens estereotipadas que - sejam heróis, sejam vilões - são maiores (ou mais simples) que a vida. Nesse sentido, poder-se-ia mencionar o ‘mito de Luís XIV’ ou o ‘mito de Hitler’, por exemplo, com o argumento de que esses governantes estavam presentes na mídia oficial de sua época como figuras heróicas praticamente oniscientes ou onipotentes. Também circulava um mito alternativo de Hitler como figura diabólica. Da mesma forma, durante a caça às bruxas na Europa nos primórdios da Idade Moderna, a crença comum de que as bruxas eram servidoras de Satanás pode ser descrita como 'mito'. Esses exemplos podem ser incluídos na definição de Malinowski, claro. O mito de Hitler justificava (ou, como diria Max Weber, ‘legitimava’) seu governo, e o mito das bruxas legitimava a perseguição a mulheres velhas que a posteridade acredita terem sido inofensivas. Ainda assim, é esclarecedor definir mito em termos não só de funções como também de formas ou ‘enredos’ recorrentes (o significado do termo grego mythos). Jung os teria chamada de ‘arquétipos’ e explicado como produtos imutáveis do inconsciente coletivo. É mais provável que um historiador os considere produtos da cultura, que vão mudando lentamente no longo prazo.

De qualquer maneira, é importante saber que as narrativas orais e escritas, inclusive aquelas que os narradores consideram pura verdade, encerram elementos arquetípicos, estereotípicos ou míticos. Assim, os participantes da Segunda Guerra Mundial descreveram suas experiências por meio de imagens extraídas (de forma consciente ou inconsciente) de relatos da Primeira. Um evento real é lembrado freqüentemente - e pode ter sido vivenciado em primeiro lugar - em termos de outro evento. Heróis são algumas vezes incorporados uns nos outros em um processo semelhante ao que Freud, ao analisar os sonhos, chamou de ‘condensação’. Há ocasiões em que podemos observar como funciona o processo de ‘mitificação’ em uma série de relatos do passado que cada vez mais se aproxima de um arquétipo.”

Fonte: BURKE, Peter. História e teoria social. S.Paulo: Editora da UNESP, 2002. p.141-143.

 

 

A perspectiva de José Murilo de Carvalho, na introdução do livro "A formação das almas":

(...) A tarefa que me proponho agora é discutir mais a fundo o conteúdo de alguns dos principais símbolos utilizados pelos republicanos brasileiros e, na medida do possível, avaliar sua aceitação ou não pelo público a que se destinava, isto é, sua eficácia em promover a legitimação do novo regime. A discussão dos símbolos e de seu conteúdo poderá fornecer elementos preciosos para entender a visão de república que lhes estava por trás, ou mesmo a visão de sociedade, de história e do próprio ser humano. Ela pode ser particularmente importante para revelar as divergências e os conflitos entre as distintas concepções de república então presentes. A aceitação ou rejeição dos símbolos propostos poderá revelar as raízes republicanas existentes no imaginário popular e a capacidade dos manipuladores de símbolos de refazer esse imaginário de acordo com os novos valores. Um símbolo estabelece uma relação de significado entre dois objetos, duas idéias, ou entre objetos e idéias, ou entre duas imagens. Embora o estabelecimento dessa relação possa partir de um ato de vontade, sua aceitação, sua eficácia política, vai depender da existência daquilo que Baczko chamou de comunidade de imaginação, ou comunidade de sentido. Inexistindo esse terreno comum, que terá suas raízes seja no imaginário preexistente, seja em aspirações coletivas em busca de um novo imaginário, a relação de significado não se estabelece e o símbolo cai no vazio, se não no ridículo.

Entre os vários símbolos, alegorias e mitos utilizados, foram selecionados alguns que pareceram mais evidentes e mais capazes de jogar luz sobre o fenômeno da República e de sua implantação. Cada um será objeto de um capítulo à parte. O capítulo 2 discutirá o mito de origem da República. A criação de um mito de origem é fenômeno universal que se verifica não só em regimes políticos mas também em nações, povos, tribos, cidades. Com freqüência disfarçado de historiografia, ou talvez indissoluvelmente nela enredado, o mito de origem procura estabelecer uma versão dos fatos, real ou imaginada, que dará sentido e legitimidade à situação vencedora. No caso da criação de novos regimes, o mito estabelecerá a verdade da solução vencedora contra as forças do passado ou da oposição. Se não são abertamente distorcidos, os fatos adquirirão, na versão mitificada, dimensões apropriadas à transmissão da idéia de desejabilidade e de superioridade da nova situação. A mesma distorção sofrerão as personagens envolvidas.

Isso nos leva ao capítulo 3, que trata do mito do herói, também de longa tradição na história. Todo regime político busca criar seu panteão cívico e salientar figuras que sirvam de imagem e modelo para os membros da comunidade. Embora heróis possam ser figuras totalmente mitológicas, nos tempos modernos são pessoas reais. Mas o processo de ‘heroificação’ inclui necessariamente a transmutação da figura real, a fim de torná-la arquétipo de valores ou aspirações coletivas. Há tentativas de construção de heróis que falham pela incapacidade da figura real de permitir tal transformação. Há situações em que a mesma figura pode apresentar diferentes imagens de herói para diferentes setores da população, como é o caso de Abraham Lincoln nos Estados Unidos. Para a população negra e da costa leste em geral, Lincoln é o herói-salvador do povo, o mártir. Para o meio-oeste e o oeste, ele é o herói-conquistador, o desbravador, o homem da fronteira. Por ser parte real, parte construído, por ser fruto de um processo de elaboração coletiva, o herói nos diz menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz.”

Fonte: CARVALHO, José Murilo. Introdução. In: A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 11 reimpres. S.Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.13-15.