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A historiografia em seus inícios: persas e hebreus

 

TEORIA DA HISTÓRIA

 

 

 

Excertos de uma das seis conferências proferidas por Arnaldo Momigliano em Berkeley, entre 1961 e 1962:

Sobre a historiografia persa

 “[...] O fato de termos a maior parte de nossa informação sobre os antigos persas a partir de fontes gregas, não significa que os persas confiassem aos estrangeiros o registro de suas próprias atividades. Eles tinham sua própria historiografia, seja em persa, seja em aramaico. Todos sabemos o que um rei persa fazia quando tinha insônia: ‘Naquela noite, o rei não podia dormir, ordenou que lhe trouxessem o livro dos registros das crônicas; e elas foram lidas diante dele’ (6, I). Se não podemos confiar no Livro de Ester com relação à insônia do rei, podemos confiar no tocante às crônicas. O Livro de Ester pode também indicar que as crônicas persas continham documentos: ‘E todos os atos de seu [de Assuero] poder e de seu domínio, e o relato completo da grandeza de Mordecai, e de como o rei chegou até ele, não estão agora escritos no livro das crônicas dos reis da Média e da Pérsia?’ (10,2). Esta indicação não é, no entanto, segura. Os livros de Esdras e Neemias, cujo conhecimento das instituições persas é certo, confirmam a existências das Crônicas reais persas. Em um dos documentos em aramaico relativo à oposição à construção dos muros de Jerusalém, é pedido ao rei Artaxerxes I que lesse as crônicas de seus antecessores, onde ele haveria de encontrar evidências a respeito das rebeliões passadas de Jerusalém (Esdras, 4,15). O escritor obviamente pressupõe que os reis persas tivessem acesso às crônicas relativas aos acontecimentos anteriores à época persa. Ele estava certamente correto. As crônicas babilônicas, e muitas outras, estavam disponíveis para consulta a respeito do passado mais remoto. Até o grego Ctesias afirmava ter empregado os registros reais ‘nos quais os persas, seguindo uma certa lei deles, mantinham o registro de seus antigos negócios’ (Diod.II, 33, 4).

As crônicas persas, no entanto, desapareceram muito cedo. Tanto quanto sabemos, as Crônicas dos reis sassânidas, mencionadas pelo bizantino Agatias no século 6º. d.C.,  não estavam de modo algum ligadas às Crônicas dos reis aquemênidas. Como já foi observado há algum tempo por Th. Nöldeke, um dos traços marcantes da renascença persa ao tempo dos sassânidas é que eles não sabiam quase nada a respeito dos aquemênidas. A tradição histórica e política dos aquemênidas tinha naufragado muito antes da revolução do século 3º. d.C. que pretendia restaurar os valores nacionais persas. O Avesta não menciona nem Dario e nem Xerxes. Quando Firdausi escreveu o Shanameh no século 10º., a ruptura com o passado aquemênida já estava completa por mais de mil anos.”

Fonte: MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru (SP): EDUSC, 2004. p.22-24.

 

Sobre a historiografia dos hebreus

“Em uma época anterior, os historiadores hebreus selecionavam períodos especiais para relatar em seus livros: conhecemos, por exemplo, a crônica do reino de Salomão (I Reis II, 41). Mas o que temos na Bíblia é uma história contínua das origens do mundo. Se aderirmos à teoria que o assim chamado Jeovista compilou o primeiro rascunho desta história contínua, chegaremos até o século 10º. ou 9º. a.C. Isto não significa que os homens que reuniram os livros históricos da Bíblia – assim como os temos – não tivessem um critério de seleção. A seleção fundamentava-se em uma linha privilegiada de eventos que mostrava a relação especial que Jeová mantinha com Israel. Assim, para o historiador hebreu, a historiografia logo se tornou uma narração de eventos a partir do início do mundo, de uma forma que nenhum historiador grego jamais concebeu. Os critérios de confiabilidade eram também completamente diferentes. Os judeus estiveram sempre demasiadamente preocupados com a verdade. O deus hebreu é um deus da verdade. Nenhum deus grego, até onde sei, é chamado de alethinós, verdadeiro. Se deus é verdade, seus seguidores têm a obrigação de preservar um registro verdadeiro dos acontecimentos em que deus manifestou sua presença. Cada geração é obrigada a transmitir um relato verdadeiro do que aconteceu para a geração seguinte. A lembrança do passado é uma obrigação religiosa do judeu que era desconhecida para o gregos. Conseqüentemente, a confiabilidade em termos judeus coincide com a veracidade dos transmissores e com a verdade última do deus em que se acreditam os transmissores. Supunha-se que tal confiabilidade era também sustentada por registros escritos de uma foram desconhecida das cidades gregas. Flávio Josefo orgulhava-se – não sem razão – que os judeus tinham organizado melhor os registros públicos do que os gregos (Contra Apionte I, 1 ss.)

O que Josefo não percebeu é que os gregos tinham critérios pelos quais julgavam os méritos relativos das várias versões, coisa que os judeus não tinham. A própria existência de várias versões de um mesmo evento era algo, tanto quanto eu me lembre, não percebido pelo historiador bíblico. A diferença entre várias versões da Bíblia é uma aplicação moderna dos métodos gregos aos estudos bíblicos. Na historiografia hebréia a memória coletiva sobre os acontecimentos passados não poderia jamais ser verificada por meio de critérios objetivos. Se sacerdotes forjassem registros – lembremos que os sacerdotes foram sempre inclinados a falsificações piedosas em todas as épocas - , o historiador hebreu não possuía instrumentos críticos para descobrir essa falsificação. Como a historiografia moderna é uma historiografia crítica, ela é naturalmente um produto grego e não judeu.”

Fonte: MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru (SP): EDUSC, 2004. p.39-40.

 

Sobre o declínio do interesse pela historiografia, entre os hebreus

“[...] Por que perderam os judeus o interesse pela pesquisa histórica? A realidade desta mudança não pode ser colocada em dúvida. A própria maneira em que a história é tratada nos Livros de Daniel, Ester, Judite e, poderíamos acrescentar, Tobias, mostra que em torno do século 2º. A.C. o interesse pela história encontrava-se em um nível muito baixo. O Livro Primeiro dos Macabeus, que foi escrito ao redor de 100 a.C., foi provavelmente uma produção excepcional. Alguns livros históricos foram certamente escritos em hebraico ou em aramaico bem mais tarde. [...]

O desaparecimento do estado judeu não é uma explicação suficiente para o fim da historiografia judia, ainda que tivesse contribuído para este acontecimento. A historiografia judia já estava em uma situação crítica mesmo antes do final do estado judeu, e não há qualquer lei da natureza que determine que a historiografia deva terminar quando acabe a independência política. Os gregos não perderam interesse pela História quando se tornaram súditos de Roma. A historiografia armênia sobreviveu à independência da Armênia; e a historiografia maronita desenvolveu-se em condições de submissão política.

A resposta que podemos dar à pergunta que colocamos talvez tenha dois aspectos. Por um lado, os judeus que vieram depois da Bíblia pensavam que este livro continha toda a história que realmente importava: a supervalorização de um certo tipo de história implicava em uma subvalorização de todos os demais eventos. Por outro lado, todo o desenvolvimento do judaísmo conduziu a algo que não era histórico, que era eterno, a Lei, a Tora. [...] A familiarização cotidiana com o Eterno não requer nem admite a explicação histórica.”

Fonte: MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru (SP): EDUSC, 2004. p.43-44.