Contemporânea

Página da disciplina de História Contemporânea da UDESC
Criada em maio de 2001
Responsável pela criação e manutenção:
Profa: Janice Gonçalves


OBRAS LITERÁRIAS:
"É isto um homem?"

 

 

"Há um fato que nos parece notável. Resulta claro que entre os homens existem duas categorias, particularmente bem definidas: a dos que se salvam e a dos que afundam. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sábios e os tolos, os covardes e os valentes, os azarados e os afortunados) são bem menos definidos, parecem menos congênitos e, principalmente, admitem gradações intermediárias mais numerosas e complexas.

Essa divisão é menos evidente na vida comum, onde é raro que um homem se perca, porque em geral ele não está sozinho e seu subir ou descer é ligado ao destino de quem está perto dele; é raro que alguém cresça em poder além de todo limite, ou desça, numa derrota continuada, até a extrema ruína. E, ainda, cada qual possui, em geral, reservas tais - espirituais, físicas e também econômicas - que a eventualidade de um naufrágio, de uma incapacidade perante a vida, resulta ainda mais improvável. Acrescente-se ainda certa ação apaziguadora exercida pela lei e pelo sentido moral (que é lei interior); realmente, considera-se tanto mais civilizado um país, quanto mais sábias e eficientes são suas leis que impedem ao miserável ser miserável demais, e ao poderoso ser poderoso demais.

No Campo [de concentração], porém, acontece o contrário. Aqui a luta pela sobrevivência é sem remissão, porque cada qual está só, desesperadamente, cruelmente só. Se um Null Achtzehn vacila, não encontrará quem lhe dê uma ajuda, e sim quem o derrube de uma vez, porque ninguém tem interesse em que um 'muçulmano' [designação dada pelos veteranos do Campo aos fracos e ineptos destinados à "seleção"] a mais se arraste a cada dia até o trabalho; e se alguém, por um milagre de sobre-humana paciência e astúcia, encontrar um novo jeito para escapar ao trabalho mais pesado, um nova arte que lhe propicie uns gramas de pão a mais, procurará guardar seu segredo, e por isso será apreciado e respeitado, e disso tirará uma própria, exclusiva, pessoal vantagem; ficará mais forte, e portanto será temido, e quem é temido é, só por isso, candidato à sobrevivência.

Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: 'a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado'. No Campo, onde o homem está sozinho e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos. Com os mais aptos, os mais fortes e astuciosos, até os chefes mantêm contatos, às vezes quase amistosos, porque esperam poder tirar deles, talvez mais tarde, alguma vantagem. Quanto aos 'muçulmanos', porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-lhes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em casa. Para que travar amizade com eles? Não têm, no campo, conhecidos poderosos, não têm rações extras para comer, não trabalham em Kommandos favoráveis, desconhecem qualquer maneira secreta para obter vantagem. E, por fim, sabe-se que eles estão aqui de passagem; que, dentro de algumas semanas, deles sobrará apenas um punhado de cinzas em outro Campo próximo e, no Registro, um número de matrícula riscado. Embora englobados e arrastados sem descanso pela multidão inumerável de seus semelhantes, eles sofrem e se arrastam numa opaca solidão íntima, e nessa solidão morrem ou desaparecem sem deixar lembrança alguma na memória de ninguém".

(LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p.88-90).