Contemporânea Página da disciplina de História Contemporânea da UDESC |
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"Em Buna não sabíamos muito a respeito do 'Campo Maior", de Auschwitz propriamente dito: os Häftlinge transferidos de um campo para outro eram poucos, nada loquazes (nenhum Häftlinge o era), nem facilmente levados em conta. Quando a carroça de Yankel ultrapassou a famosa soleira, ficamos atônitos, Buna-Monowitz [o campo de concentração onde Primo Levi ficara], com seus doze mil habitantes, era, em comparação, uma aldeia. Nada de 'Blocks' de madeira de uma andar, mas inumeráveis edifícios tétricos e quadrados, de tijolo, de três andares, todos iguais; entre eles passavam estradas pavimentadas, retilíneas e perpendiculares, a perder de vista. Tudo o mais era deserto silencioso, esmagado sob o céu baixo, repleto de lama, chuva e abandono. Também aqui, como a cada mudança de nosso longo itinerário, fomos surpreendidos com um banho quente, enquanto precisávamos de muitas outras coisas. mas aquele banho não foi um banho de humilhação, um banho grotesco-demoníaco-sacral, um banho de missa negra, como o que havia marcado a nossa descida ao universo do campo de concentração, e tampouco foi um banho funcional, anti-séptico, altamente técnico, como aquele quando passamos, muitos meses depois, à esfera dos americanos. Um banho à maneira russa, em escala humana, extemporâneo e aproximador. Não pretendo pôr em dúvida que o banho para nós, e naquelas condições fosse oportuno: era necessário e bem-vindo. Mas era fácil reconhecer no banho, e em cada um daqueles memoráveis lavacros, por detrás do aspecto concreto e literal, uma grande sombra simbólica, o desejo inconsciente, por parte da nova autoridade, que aos poucos nos absorvia em sua esfera, de nos despojar dos vestígios de nossa vida anterior, de fazer de nós homens novos, segundo seus modelos, impondo sua marca. Os braços robustos de duas enfermeiras soviéticas depuseram-nos da carroça: 'Po málu, po málu!' ("Devagar, devagar!'); foram as primeiras palavras russas que ouvi. Eram duas moças enérgicas e experientes. Levaram-nos para uma das construções do Lager, que foram sumariamente reordenadas, embora de maneira eficaz; tiraram as nossas roupas, fizeram um sinal para que nos deitássemos nas treliças de madeira que cobriam o chão e, com mãos piedosas, mas sem cerimônia, nos ensaboaram, esfregaram, massagearam e nos enxugaram da cabeça aos pés." (LEVI, Primo. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.22-24). |