( Quase um Conto... )
“Talvez, um dia, venham a me encontrar...
Somente assim, descobrirei a
minha verdadeira identidade...”
Que faço, então, aqui, neste silêncio eterno ?
A recorrência desse pensamento leva-me a crer que
o tempo, enfim, parou... ao menos para mim... e que, a vida em suspensão, que
penso acontecer, de fato, existe !
Estranhamente,
sinto-me incorporado a este universo, como se as idéias surgissem, espontâneas,
dessas paredes de calcáreo...
Se
assim não fosse, de onde viriam, então ?
Pois,
se percebo a realidade que me cerca, não é pelos olhos de um corpo que foi meu,
que este, com certeza, já não mais existe !
As
impressões que sinto manifestam-se em todos os detalhes dessa caverna, fria e
submersa...
E
se luz já não mais existe, pouco importa, que falta já não faz. A percepção é
algo permanente, imanente à própria escuridão, com quem me identifico...
No
entanto, a memória dos acontecimentos me é nítida, como se tudo ainda
acontecesse, ao mesmo tempo, passado e presente se fundindo, na consciência
plena do momento...
Lá
estou, à boca da caverna, admirando seus segredos e mistérios, ansiando pelo
meu destino, tantas vezes imaginado...
Às
costas, os instrumentos de mergulho, cuidadosamente conferidos, cada um, em
todos os seus detalhes, o pensamento se alternando entre o medo ( ou o pavor
absoluto ) e a ansiedade ( paixão completa pelo desconhecido dentro em mim ).
Cansado
da longa caminhada, repouso nas pedras o meu equipamento, enquanto observo a
natureza em meu redor: a mata densa e úmida, os insetos impertinentes, o canto
dos pássaros, que não os vejo, nem os reconheço... o cheiro do mato, ainda sob
o frescor do orvalho da manhã...
Por
sua negra boca, a caverna me observa.
Sei
que, ali dentro, o tempo não existe... e apenas eu não o compreendo... milhões
de anos, gota a gota esculpindo seus ponteagudos dentes, estalactites,
estalagmites, prestes a me deglutir...
Recuperado
o fôlego, reuno meus equipamentos e me aproximo do ponto de descida. Amarro
firmemente as cordas nas pedras da entrada, e lanço suas extremidades no
desconhecido... nenhum som. Experimento os nós. Observo o mapa da caverna e
constato, novamente, o amplo espaço para eu me preparar para o mergulho, bem
abaixo.
Amarro
os tanques de ar, e desço-os com cuidado, pela primeira corda, até sentir o
toque no fundo da caverna. O resto dos instrumentos seguirá comigo.
A
primeira impressão, logo à entrada, é de uma escuridão sem fim. Nada vejo, nem
mesmo silhuetas. Somente a luz atrás, na abertura, cada vez menor e mais
distante.
Mesmo
assim, não acendo, de imediato, as lanternas. Sigo descendo, cauteloso, resvalando
pelas pedras, até tocar o solo úmido e escorregadio, do limo que lá permanece
desde os tempos, sem memória, do passado.
Embora
meus olhos já se acostumassem à noite eterna, e pudesse até perceber alguns
contrastes em seu interior, acendo as luzes para observar melhor aquela
imensidão deserta, onde até minha respiração ofegante reverbera, como um eco
grave e profundo.
Que
maravilha !
Cenário
encantado e solene, reprodução dos céus sem as estrelas, que reverencio com
respeito e emoção incontida... Fico, por alguns instantes, admirando,
extasiado, a cena inesquecível...
Um
lago cristalino se espalha à minha frente, por todo o salão. Experimento a
água, não muito fria para essa época do ano, meados de outono. Mesmo assim,
coloco as luvas e o capuz, e completo a vestimenta, cuidando para conferir,
mais uma vez, todos os instrumentos.
Estou
pronto ! Meu coração bate mais rápido, pela ansiedade incontida. Confiro os
mapas: este primeiro salão termina na garganta escura, a uns 15 metros de
profundidade, ao final do lago. Depois, o salão principal, imenso, com inúmeras
colunas de calcáreo, formando galerias, qual um labirinto.
Precisarei
sinalizar o meu trajeto para facilitar o retorno à superfície. Atingirei uns 25
metros, até o fundo. E então, dois caminhos se apresentam: um, seguindo direto
à frente, conduzirá ao terceiro salão, cujo teto se encontra parcialmente fora
d’água, como uma bolha de ar irrespirável. Pequeno e desconfortável, repetição
do trajeto anterior – não me interessará, suponho.
Seguindo
à esquerda, contornando as formações calcáreas, encontrarei um estreitamento
perigoso, pequena abertura tortuosa que leva ao último e ambicionado salão dos
meus sonhos, cujas águas chegam a atingir quase 50 metros abaixo do nível da
lagoa, onde me encontro. Será este o meu destino !
Um
misto de ansiedade e angústia me dominam. Contenho-me e me recomponho.
Decidido, verifico o computador, para me certificar dos tempos para cada etapa
do mergulho. Tudo bem planejado: haverá ar suficiente para todo o percurso, ainda
que me demore a apreciar todos os detalhes no caminho, suas esculturas naturais
e seus recantos...
São
dois reservatórios e o lastro, mais de 30 quilos que irão assegurar o
equilíbrio de meu corpo ao longo do trajeto. Faço minhas últimas anotações no
diário que deixarei à beira da lagoa.
Entro,
aos poucos, na água, para me acostumar à temperatura, apesar da roupa de
neoprene. Inicio a contagem do cronômetro e a descida. Percorro o lago em toda
sua profundidade, admirando as concavidades, suavemente incrustadas nas paredes
cinzentas.
O
mundo lá de fora já não mais existe. Sinto-me eterno em minha frágil carcaça
humana. O único som que ouço e percebo é das bolhas, que se desprendem
compassadas de meu regulador.
Lanterna
acesa, sou devorado pela garganta negra, e penetro, finalmente, na
eternidade...
Por
mais que tenha lido sobre esse mundo quase inexplorado, ainda que examinasse
centenas de fotografias de cavernas, mesmo experiente em mergulhos em outras
grutas, a emoção sentida é sempre única e indescritível ! Puro êxtase !
As
colunas pareciam vir do nada, penetrando na imensidão sem fim. Retorcidas em
filigranas, que nenhum escultor poderia sequer imaginar, gradualmente
matizadas, de um branco suave ao ocre carregado das ferrugens, assemelhavam-se
a cenários à espera de um espetáculo que jamais viria a acontecer.
Deslizei
suavemente ao redor de muitos desses blocos, com a sensação de paz das mais
profundas meditações, deixando que o acaso me mostrasse as sendas que haveria
de trilhar. Já não haveria mapas ou sinais que pudessem me indicar onde eu me
encontrava. Não sei por quanto tempo fiquei a me admirar desse universo. Porém,
por algum acaso, em dado instante me defrontei com a estreita abertura, a
passagem para o outro lado... da vida !
Esgueirando-me
com minha pesada e desajeitada vestimenta, cheguei, com grande esforço, ao
outro salão. A princípio, não me pareceu assim tão belo como imaginara, tão
majestoso e grandioso como aquele de onde acabara de chegar.
Era
vazio... poucas esculturas, raras galerias, com imensas colunas a sustentar sua
estrutura envelhecida. Como no outro, quase nenhuma vida perceptível. Apenas
pequenas formas primitivas, a navegar furtivas nas proximidades das paredes.
Percorria
seus espaços sem muito entusiasmo quando, pela primeira vez, despertado daquele
encantamento, senti necessidade de verificar meus instrumentos... Pânico !
Restavam-me
poucos minutos para que o ar se extinguisse nos cilindros ! Mas não poderia ser
! Eu tinha autonomia para muito tempo... muito além do que me pareceu ali
estar. Confiro as válvulas: tudo normal. Olho o cronômetro: Parado ! Travado
alguns segundos após minha descida ! Leio os indicadores de consumo de ar:
curiosamente, estive a respirar tão calmamente que poderia estar vagueando há
horas, submerso !
Em
desespero, nadei em busca da abertura que me conduziria de volta à vida...
passava rente às paredes, à procura de uma pequena cavidade, perdida nas
infinitas pregas das pedras da caverna. Em vão ! Jamais encontraria a saída...
Consumia
rapidamente o pouco ar que me restava.
Aos
poucos, constatei o quão inútil se tornara aquele desespero. Parei de lutar.
Deixei que a vida se esvaísse ao seu próprio tempo. Então, subitamente, uma
tranqüilidade incompreensível se apossou de mim... a paz de quem, enfim, compreendera
a vida !
Parei
de me mover em desatino. Deixei que as águas me levassem, sem destino, ao seu
desejo e capricho.
Repentinamente,
constatei que não mais respirava e, no entanto, não sentia qualquer sensação de
asfixia, ou de afogamento, sensação que me perseguira em todos os meus sonhos e
pesadelos, ao longo de meus dias, como uma obsessão inevitável !
E,
no entanto, estava vivo ! Assim me parecia, pois havia ali os pensamentos, a
consciência, a percepção de tudo que estava a me acontecer. Apenas não sentia
mais a presença de meu corpo.
Eu
parecia existir apenas em consciência !
Já
não via com os olhos a que me acostumara em vida.
Nem
sentia a pele a cobrir meu corpo...
Apenas
consciência... plena, absoluta, onisciente, como se percebesse tudo ao mesmo
tempo, como se passado e presente se fundissem em um só momento, em que a
precedência dos fatos não existia... e nem importava !
Quem
seria eu, agora, afinal ?
...
Aqui
estou... nas pedras... nas águas... na minha caverna...
Nem
sequer percebo o vazio incompreensível de meu Ser...
Quantas
vezes já terei rememorado essa história, sem nem mesmo saber se existiu, de
fato ? Se hoje existo, ou existi, um dia ?
Serei
apenas pensamentos, reverberando eternamente, incessantemente, pelas paredes
obscurecidas da caverna ?
Talvez, um dia, venham a me encontrar...