Opinião: artigo do dia - Ano IV - nº 798 - Quinta-feira, 9 de agosto de 2001

Economia de comunhão

    Não podemos negar que a base da economia dominante está no individualismo, uma das qualidades fundamentais do homo oeconomicus. A economia globalizada abre novas perspectivas de um lado, mas de outro apresenta um modelo de desenvolvimento não-sustentável para toda a humanidade e uma crescente distância entre os ricos e os pobres em várias partes do mundo. Diante desse fenômeno, percebe-se cada vez mais a exigência de uma profunda modificação cultural, que possibilite um desenvolvimento distinto, também do ponto de vista econômico.

    Na EdC - Economia de Comunhão, pelo contrário, o modelo do homem econômico é a pessoa em relação de reciprocidade com os outros. A modificação profunda iniciada pelo projeto de Economia de Comunhão é uma verdadeira reviravolta antropológica de caráter não só econômico, mas também cultural.

    A EdC nasceu em maio de 1991, por iniciativa de Chiara Lubich, durante uma viagem ao Brasil. O projeto começou em Vargem Grande Paulista (SP). Alberto Ferrucci (1997), um dos principais articuladores dos empresários da EdC, enfatiza que "o seu objetivo é oferecer, mesmo se em forma embrionária, uma resposta ao drama de extrema pobreza das populações que estão privadas dos direitos humanos mais fundamentais. O projeto imediatamente encontrou uma resposta no Leste europeu, suscitando esperança diante dos temores causados pelo ameaçador capitalismo selvagem, após a falência do socialismo real. Logo a EdC se espalhou em todos os continentes".

    Segundo Motta (2001), com a nova proposta deveriam surgir empresas que rendessem lucros e dividendos para colocá-los em comum. Estes lucros seriam repartidos em três partes: uma para o incremento da empresa, pois o reinvestimento é necessário para qualquer empreendimento, seja para não se deteriorar, seja para se modernizar. O grande diferencial no processo de gestão é que o empresário tem a explícita intenção de criar novos postos de trabalho, para ajudar as pessoas que estão desempregadas ou subempregadas; outra parte dos lucros é para ajudar os que sofrem necessidades, pois na EdC os pobres não são apenas destinatários da ajuda, mas parte integrante do projeto. Em geral, tão logo ocorra melhora na situação das pessoas beneficiadas pela EdC, são elas mesmas que fazem questão de retribuir pela ajuda recebida, dando a própria contribuição para o fundo de assistência aos necessitados; e a última parte dos lucros são para desenvolver estruturas de formação de homens e mulheres motivados pela "cultura de partilha", pois só é possível a realização da EdC se o modo de agir e de pensar dos indivíduos estiver fundamentado em valores como a unidade, a partilha, a comunhão, e no desejo de viver um mundo unido. Sem a nova mentalidade da cultura da partilha não ocorre a comunhão de bens nem materiais nem espirituais. Esses objetivos, animados por uma aspiração de justiça, constituem um incentivo à produtividade dos trabalhadores conscientes de trabalharem não só para o bem-estar próprio ou da empresa, mas também por uma finalidade social de dimensões mundiais.

    O Brasil, berço da EdC, em sua experiência-piloto, tornou-se conhecido em todos os outros países onde o movimento atua. De fato, onde quer que seja apresentada a EdC, o Brasil torna-se conhecido, como ponto de partida e atuação desse projeto reconhecidamente atual e necessário. A EdC propõe uma expansão econômica baseada no "empenho em crescer juntos" e não na luta para prevalecer. Ela opera para estimular a passagem da economia e da sociedade inteira de uma cultura consumista do "ter" à cultura evangélica do "dar", que junto aos lucros, produz a liberdade do homem e a sua plena realização.

    Conforme Ferruci (1997), este novo modo de ação na economia fez nascer um "sobressalto de consciência" psicológica e moral. De uma práxis que reduz o agir econômico a mero relacionamento material, apoiado sobre o egoísmo racional, passa-se a um crescimento em humanidade justamente por intermédio do âmbito econômico, liberando as energias mais profundas do homem. Os próprios destinatários de uma parte dos lucros das empresas assumem um papel "dinâmico". O ato de receber adquire um colorido que tem os tons do "dar". Assim, é dedicada uma contribuição, em plena dignidade e fraternidade, ao estímulo e ao funcionamento de um programa que une dois mundos que há muito se ignoravam: economia e solidariedade. Desse modo, surge a tentativa de descobrir a economia na sua sociabilidade radical, como caminho privilegiado para reacender o social que se apagou e, juntos, construir uma sociedade mais humana e solidária.

    Hoje são, aproximadamente, 760 as empresas, de várias dimensões que, no mundo, aderiram ao projeto. Na América Latina, aproximadamente 200, das quais 80 no Brasil; na Europa, 300. Um número discreto na América do Norte e na Ásia, especialmente nas Filipinas, e algumas outras na África e na Austrália. Muitas dessas empresas alcançaram uma elevação da eficiência que lhes garantiu o sucesso num mercado altamente competitivo.

    São 50 entre teses e monografias já concluídas sobre a Economia de Comunhão, em diferentes universidades dos cinco continentes. Outras 100 estão sendo preparadas. Faculdades na Europa, Austrália, América Latina estão organizando seminários e congressos para estudar o desenvolvimento deste novo paradigma para as Ciências Sociais, o paradigma da unidade.

    Em vários congressos internacionais de economia, o projeto foi apresentado e ilustrado com experiências concretas da EdC, em especial sobre a realidade brasileira. Em Lion, Lublin e Budapeste, o projeto foi apresentado pela socióloga brasileira, Vera Araújo, que atualmente integra o Centro de Estudos do Movimento, com sede em Roma.

    Na EdC os empresários formulam estratégias, objetivos e planos empresariais, levando em conta os critérios característicos de uma gestão correta, envolvendo nesta atividade os diferentes membros da empresa. No centro da empresa está a pessoa humana e não o capital. Portanto, utiliza-se o máximo dos talentos de todos os funcionários. A eles é favorecida a criatividade e a possibilidade de assumir responsabilidades e de participar.

    A empresa está empenhada em oferecer bens e serviços úteis, de qualidade, a preços justos. Os membros da empresa se relacionam de modo leal com os seus concorrentes. Desta forma, a empresa se enriquece de um capital "imaterial" constituído de relacionamentos de estima e de confiança com as empresas fornecedoras, com os clientes e com a administração pública. São relacionamentos que produzem um andamento econômico menos sujeito às variações da situação de mercado.

    Na EdC há uma grande preocupação com a ética empresarial, pois a empresa paga os impostos e não as propinas, presta atenção máxima para não poluir e mantém relacionamentos eticamente corretos também nas relações com os órgãos de controle, sindicatos e outras instituições.

    A qualidade de vida e da produção também é uma preocupação. Transformar a empresa numa verdadeira comunidade é um dos principais objetivos dos empresários da EdC. É dada uma atenção especial ao respeito pelas normas de segurança, pelas condições ambientais e pela guarda da saúde dos trabalhadores, considerada como medida base para o tipo de tarefa confiada a eles, e pelo horário de trabalho.

    As empresas que aderem à EdC, no intento de desenvolver também relacionamentos econômicos reciprocamente úteis e produtivos, utilizam os mais modernos meios de comunicação para interligarem-se entre si em nível local e internacional. Sempre mais vai se concretizando a participação internacional do capital, concessão de créditos, transferência de tecnologias entre as empresas de nações diferentes e até mesmo de diferentes continentes.

    Mas a maior contribuição da EdC está na sua capacidade de propor uma nova cultura econômica que vai muito além das dimensões materiais; ela se liberta das distorções da cultura dominante, que enfatiza o ter, e coloca no centro da sua atenção o "florescimento humano" que o neoliberalismo parece já ter esquecido. A EdC, portanto, restitui à economia o seu real objetivo, que não é apenas o crescimento da atividade produtiva mas a realização do ser humano em sua totalidade.

      

    Paulo Cézar Ribeiro da Silva

    Mestre em Gestão Pública e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas

    Professor da FABAVI e FACEV

    Economista do BANDES

     

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