O Reino de Deus
Está em Vós













































Leon Tolstoi

O Reino de Deus
Está em Vós

Tradução de CEUNA PORTOCARRERO

Apresentação de FR. CLODOVIS BOFF

2ª EDIÇÃO











































































Sumário




Apresentação: Fr. Clodovis Boff

05

Cronologia da vida de Tolstoi

12

Prefácio

15

I — A doutrina da nào-resistência ao mal com a violên­cia tem sido ensinada pela minoria dos homens des­de a origem do cristianismo.

16

II — Opiniões dos fiéis e dos livres-pensadores sobre a não-resistência ao mal com a violência.

28

III — O cristianismo malcompreendido pelos fiéis.

36

IV — O cristianismo malcompreendido pelos cientistas.

50

V — Contradições entre nossa vida e a consciência cristã.

60

VI — Os homens de nossa sociedade e a guerra.

70

VII — Significado do serviço militar obrigatório.

84

VIII — Aceitação inevitável pelos homens de nossa socieda­de da doutrina da não-resistência ao mal.

92

IX — A aceitação do conceito cristão da vida preserva os homens dos males de nossa vida pagã.


X — Inutilidade da violência governamental para suprimir o mal — O progresso moral da humanidade realiza-se não apenas com o conhecimento da verdade, mas também com a formação da opinião pública.


XI — O conceito cristão da vida nasce em nossa sociedade e infalivelmente destrói a ordem de nossa vida calca­da na violência.


XII — Conclusão. Fazei penitência, porque o reino de Deus está próximo, está a nossa porta.


Apêndice — Sobre digitalização de livros





















Apresentação

Fr. Clodovis Boff

Esta obra importante e praticamente desconhecida entre nós pede uma apresentação. Pelo fato de fugir a toda siste-maticidade, pareceu-nos oportuno evidenciar aqui sintetica­mente suas linhas de força. E porque suas posições são abso­lutamente originais e radicais, achamos conveniente oferecer também alguns elementos de apreciação. E ainda, para atua-lizar sua leitura, destacamos alguns pontos de contacto que ela oferece com nossa própria realidade religiosa e social.


O livro na vida e obra do autor

O livro que temos em mãos é, entre os ensaios, a obra-prima de Tolstoi. Pertence ao segundo período da vida do es­critor, depois que ele passou por uma violenta crise espiritual quando completara os cinquenta anos (1878). Em seu livro, Minha Confissão (1882), conta que, cansado de seus munda­nos êxitos literários (já havia publicado Guerra e Paz em 1868, e Ana Karenina em 1875 — romances que o fizeram, já em vida, mundialmente famoso), parte em busca da fé viva. Pri­meiro, entabula debates com os filósofos do tempo, e nada. Depois frequenta os teólogos. Estes também não lhe deram a luz desejada. Finalmente mete-se no meio do povo pobre.

Aí dá-se conta do que é na verdade a fé para aquela gen­te. Percebe que para os pobres a fé não é assunto de con­versas inconsequentes, mas uma questão vital. "Só a fé lhes dava possibilidade de viver." É isso que provoca sua con­versão.

Depois disso, Tolstoi passa a se dedicar menos à literatu­ra e mais ao género ensaístico. Entende sua tarefa de escritor como uma verdadeira missão religiosa. Já que não pode fazer mais, quer pelo menos pôr a pena a serviço de Deus. Escrever torna-se para ele, como afirma em seu Diário, uma "necessi­dade diante de Deus" (28/10/1895). Quando escreve, sente-se inspirado por Deus: 'Teço a todos os meus amigos, vizi­nhos e distantes... que prestem atenção àquela parte de mi­nha obra na qual, eu sei, falava através de mim a força de Deus — e a utilizem para a sua vida..." (Diário, 27/3/1895). Até o fim de sua longa vida (viveu 92 anos) só de ensaios pro­duziu mais de duzentos títulos. Sua obra completa chega a no­venta volumes nas "Edições de Jubileu" (Moscou, 1928-1958).

Pois bem, O Reino de Deus Está em Vós representa a obra máxima de Tolstoi. Em comparação dela, ao autor seus já fa­mosos romances parecem-lhe obras menores. Em seu Diário, chega a declará-los "tolices" (6/12/1908), algo próximo a ser­viços de alcova; mais propriamente, conversa fiada de feiran­te para atrair fregueses com o objetivo de lhes vender depois outra coisa, bem diferente (Diário, 28/10/1895).

Foi a obra que lhe custou mais trabalho, como confes­sou ao fiel secretário Chertkov. Levou três anos para terminá-la (1890-1893), justamente no momento em que o escritor che­gava ao cume de sua maturidade intelectual — 65 anos de ida­de. A dificuldade não era só a relevância e a originalidade do tema, mas também o fato de ter que andar por toda a parte organizando refeitórios populares para ajudar os pobres a ven­cer a terrível crise de 1891. Como se vê, Tolstoi era um escri­tor verdadeiramente comprometido com os humildes.

O destino desta obra foi singular. Imediatamente tradu­zida nas principais línguas europeias, suscitou logo de início reações contraditórias: aplausos de um lado e espanto do outro.

Mas o leitor "que melhor aproveitou de suas lições foi Gandhi”. Este leu o trabalho em inglês em 1894, um ano de­pois de sua publicação em russo. Caiu-lhe nas mãos de um modo absolutamente providencial. De fato, aquele que iria tornar-se o Mahatma encontrava-se então "numa grave crise de ceticismo e dúvida", como ele mesmo conta. Acreditava ainda no caminho da violência. Pois bem, "a leitura do livro — em suas palavras — me curou do ceticismo e fez de mim um firme seguidor da ahimsa". Passa então a usar o livro co­mo seu vademecum. Levou-o consigo para a prisão em 1908 e deu-o de presente a vários parentes e amigos. Gandhi decla­rou que Tolstoi era o "maior apóstolo da não-violência" e o homem "mais autêntico de seu tempo".

Na Rússia o livro recebe uma dupla condenação: é vetado pelo regime czarista e seu autor é excomungado pela igreja or­todoxa. É que no livro, como se verá, Tolstoi recusa radical­mente as ideias mesmas de Estado e de Igreja, considerando estas duas instituições como essencialmente opressoras do povo.

Quanto à opinião pública internacional, depois das pri­meiras reações contrastantes, relegou aquela obra profética ao esquecimento. Isso durou até há pouco, quando Tolstoi co­meça a ser redescoberto e difundido pelos diversos movimen­tos pacifistas. A edição que serviu de texto para a presente tradução brasileira é uma reprodução anastática da primeira edição (de 1894). Sai, portanto, quase cem anos depois. Uma reaparição tardia da obra traduzida do francês por Sofia Behr, esposa de Tolstoi, e "autorizada pelo autor", feita na Itália, em 1988 foi, pela contessa Tânia Tolstoi, acompanhada em sua reimpressão pela seguinte mensagem:

"Sou muito grata aos Editores e à organizadora, que se empenharam na reimpressão desta obra fundamental do pen­samento de meu avô. Após tantos anos de esquecimento, poder-se-á de novo perceber a luz que emana deste livro. Es­pero que muitos o leiam e que esta leitura os ajude a viver nessa nossa época tão atormentada."

Entre nós, mais que de esquecimento, deveríamos falar mesmo de falta de conhecimento. O Tolstoi que conhecemos é exclusivamente* o romancista, contista ou novelista, o primeiro Tolstoi, que o Tolstoi maduro, como vimos, menospre­zava. O Tolstoi ensaista-profeta, que nos é mais necessário, é uma novidade nos trópicos.

Mas por que essa parte decisiva da obra de Tolstoi foi posta de lado? É que o segundo Tolstoi, por sua mensagem altamente profética, e em particular no livro em questão, mostrava-se incómodo para a mentalidade chamada "moder­na", tanto de direita como de esquerda, tanto religiosa como laica. Seus questionamentos eram por demais fortes para o de­licado e ao mesmo tempo autoconfiante espírito do tempo.


A tese central do livro

O que Tolstoi sustenta em todo o livro é a validade social do preceito de Cristo no Sermão da Montanha: "Não resis­tais ao mal" (Mt 5,39). A frase se presta a ambiguidades. O sentido que Tolstoi defende é: não resistais ao mal cogyLifialJ ou seja, não respondais à violência com a violência.\Este é o sentido exato. Tolstoi não aceita a máxima jurídica comumente aceita: vim vi repellere (repelir violência com violência). Esta jamais pode ser legitimada apelando para o direito de "legíti­ma defesa". Porque a violência é sempre um mal, e não se pode responder ao mal com o mal. E isso, para ele, vale tanto para o cristão como para um cidadão qualquer.

Por outro lado, para Tolstoi, não se trata de permane­cer passivo frente ao mal ou à violência, mas de responder a ela pela não-violência: a bondade, a mansidão e a caridade. Esta é a verdadeira resistência ao mal, segundo Tolstoi. Efe-tivamente, o sentido de "não resistir" no Evangelho e no No­vo Testamento em geral não é "não fazer nada", mas não revidar, não contra-atacar, não retaliar, enfim, não se vingar. Assim, o que se rechaça sem meias medidas é a lei do talião, o pagar com a mesma moeda, "olho por olho, dente por dente".

Tolstoi leva extremamente a sério o preceito evangélico da não-violência. Levanta-se contra os que acreditam que a ordem de Cristo de "não-resistência ao mal" é algo de inexeqúível, especialmente do ponto de vista social; ou que é um piedoso exagero, carregado apenas de um valor simbólico. Não, para Tolstoi, os preceitos do Sermão da Montanha, no caso a não-violência, são realmente imperativos. Mas aten­ção: não se trata de leis morais ou regras jurídicas fixas que de­vam ser aplicadas mecanicamente. Não, são antes indicações de um ideal, apelos éticos, "via de perfeição infinita", como ele se exprime. São exigências morais absolutas, que têm a força de. pôr em movimento a relatividade do agir humano concreto./É verdade, tais preceitos têm um catáter assintótico: aproximam da perfeição divina ("sede perfeitos como o Pai do Céu é per­feito"), sem nunca chegar a atingi-la. Mas movem poderosamen­te a vontade naquela direção. Põem-na no caminho do divino. Para o profeta russo, tais preceitos não pertencem à es­fera exclusiva da religião ou da fé cristã. Eles traduzem o di­namismo mais profundo do espírito humano. Manifestam a essência da alma humana, cuja lei básica é a "lei do amor". Mexem com o divino que está dentro de cada pessoa huma­na. Donde, como título do livro, a frase de Jesus: "O Reino de Deus está em vós" (Lc 17,21). Por isso essa doutrina vale para cada um e para toda sociedade. A não-violência não diz respeito apenas ao cristão, mas sim a toda a pessoa em geral. É, portanto, uma lei que deve animar e governar toda socie­dade humana, digna deste nome.

Para representar o caráter singular dos radicais preceitos evangélicos, Tolstoi usa a bela comparação do barqueiro, que, para chegar à outra margem de um rio rápido, não pode se dirigir em linha reta, mas deve remar contra a corrente.

A não-violência tolstoiana se exprime na não-cooperação, na desobediência civil e particularmente no repúdio ativo a toda a servilidade. Tolstoi sabe que o poder se alimenta da aceita­ção e do consenso. Pior: da obediência cega e da submissão. Contrapondo-se a isso, quer tirar ao poder o tapete debaixo dos pés, para que assim venha ao chão. A ética de Tolstoi é radicalmente libertária. Para ele, a liberdade é um atributo ina­lienável e definitório do ser humano. Por isso, entre as frases que pôs no frontispício do livro, lemos esta de São Paulo: "Não vos torneis servos dos homens" (ICor 7,23).

Tolstoi não acredita nos efeitos libertadores de uma revolu­ção violenta, mesmo de tipo popular. Considera-a, em primei­ro lugar, politicamente inviável, levando-se em conta a complexi­dade e a potência do Estado moderno. Em segundo lugar, tem-na por ineficaz, pois instauraria necessariamente uma opressão mais cruel que a anterior. Por isso, se levanta conta os socialis­tas, comunistas e anarquistas de seu tempo por pretenderem mu­dar a sociedade sem se mudarem a si próprios. Ataca também sua concepção totalitária do Estado, segundo a qual a própria vida familiar e privada ficaria sob a viligância da polícia esta­tal, vida essa que o sistema liberal vigente tinha pelo menos res­peitado. Foi, na verdade, o que se verificou no regime de Goulag. Como se vê, Tolstoi não era apenas certeiro em suas percepções analíticas, mas também em suas intuições proféticas.

Seja como for, a história está dando razão a Tolstoi: o prin­cípio ético da não-violência está se impondo cada vez mais em nosso dias. Nesse sentido pode-se afirmar, com o profeta rus­so, um amadurecimento da consciência moral da humanidade. A Também porque a violência se mostra cada vez mais ineficaz pa­ra resolver os conflitos sociais, tanto no interno das nações co­lmo nas relações internacionais. Retomando uma distinção de TCant, é possível constatar certo progresso em termos de legali­dade (no nível dos princípios), embora não necessariamente em termos da moralidade (no nível das práticas). Parece inegável que na consciência mundial emerge com força crescente uma sensibilidade ética em favor da não-violência. Também por ra­zões práticas: frente à complexidade dos Estados e das socie­dades modernas, a violência não funciona mais. Aquela que foi outrora definida como a "parteira da história" talvez não te­nha outro destino, na consciência ética das sociedades moder­nas, que o de tantas parteiras tradicionais: a aposentadoria.


O antiestatismo radical de Tolstoi

A defesa intransigente da não-violência, em Tolstoi, vai junto com a deslegitimação absoluta do Estado, por ser uma instituição de violência.

No capítulo VII o escritor faz um processo em regra do sistema governamental. Volta sobre essa tese também em ou­tros capítulos, como no VIII, no X e no XII, o último. Çfíri-a violência encarnada. E não só o Estado autocrático, como o czarista, mas todo Estado, inclusive o de­mocrático. Nesse, a violência apenas deixaria de ser concen­trada para ser mais difusa, mas não desapareceria por isso.

O rosto violento do Estado aparece claramente na insti­tuição do exército. Para Tolstoi, o exército, mais que para a defesa externa, existe para subjugar o povo em benefício de uma minoria. É o sustentáculo da tirania./Sua função extre­ma é matar. Ora, isso é sempre um crime — coisa proscrita terminantemente no V mandamento. Para nosso profeta, a vida é um valor absoluto. Não existem mortes legítimas. Por isso, mandando matar, o exercito transiormao soldado num carrasco. Tal é o que pensa o grande escritor.

A consequência é que para Tolstoi o serviço militar deve ser condenado sem remissão. Trata-se para Tolstoi nada me­nos do que uma preparação ou exercício para o assassinato. Mais: a seu ver, o serviço militar obrigatório é o modo pérfi­do que temo Estado de armar o irmão contra o irja|o, de pôr o povo contra o povo, ou seja: é uma forma especiosa de autotirania.

Tolstoi foi um antimilitarista absoluto. Junto com o ser­viço militar, recusa qualquer legitimação à guerra. Se a cultu­ra moderna a legitima por vários títulos (cap. VI) é porque é fútil e destituída de vigor ético. Pressentiu para onde pode­ria levar a mentalidade belicista das potências europeias no fim do século passado. Chegou a prever profeticamente (pelo fim dos cap. X e XII) o horror de um conflito mundial, que efetivamente irrompeu com a primeira Grande Guerra.

Por tudo isso, Tolstoi propõe que se recuse decididamente a fazer qualquer coisa que contribua de alguma forma para a perpetuação do sistema governativo e seus tentáculos: o exer­cício da política, o serviço militar, o pagamento dos impos­tos, o uso dos serviços da justiça e assim por diantre. O homem livre e justo há de viver ignorando o governo./Não combatê-lo de frente, mas no princípio interno que o sustenta: o reconhecimento, a obediência. Nisso Tolstoi se aproxima clara­mente de H. Thoreau (11862) e sua "desobediência civil".

Uma outra instituição estatal que recebe o rechaço reso­luto de Tolstoi é o sistema judiciário. Este também é o supor­te — agora legitimador — da violência do Estado (cap. X). Ademais, os tribunais exigem o juramento. Ora, Cristo proí­be o juramento do modo mais formal: "Não jureis de modo algum" (Mt 5,34). Também nesse campo é impossível moral­mente colaborar com o sistema judiciário existente para não favorecer a ordem violenta de que é o garante legal.

Mas seria Tolstoi por tudo isso um anarquista? Ele con­fessa: "Não sou anarquista, mas cristão." Contra os anarquistas e suas bombas e dinamites, defende intransigentemente a não-violência. Acrescenta que os profetas da não-violência são muito mais perigosos para o Estado do que quaisquer preten­sos revolucionários, sejam socialistas, comunistas ou anarquis­tas. Pois o Estado sabe muito bem tratar com estes, que jogam pelas mesmas regras, mas já não sabe como se haver com os adeptos da não-violência, que se situam num campo onde o ^ o) â Estado já está de antemão derrotado (cap. IX).

A esta visão política, ou melhor, antipolítica do profeta pode-se perguntar antes de tudo se é realista, se não é meramente utópica. Certo, Tolstoi sabe que existem conflitos na sociedade e que é preciso manter certa ordem social. Mas acha que para isso não se precisa de um Estado, mas de uma socie­dade civil madura. Acredita na força da consciência moral coletiva, que chama de "opinião pública".

Mesmo assim, pode-se perguntar se é possível algum dia na sociedade prescindir de um órgão central de coordenação e direção. Para as nossas sociedades complexas de hoje isso parece muito difícil, senão impossível. Como podem funcio­nar corretamente sem um governo qualquer?

Todavia, da provocação profética de Tolstoi pode-se ex­trair seu núcleo positivo. Não nos indica a direção em que se há de levar a constituição de um Estado diferente, cada vez mais aliviado das funções de força e cada vez mais reduzido a funções simplesmente administrativas? Não se trata efeti-vamente de o Estado se ocupar cada vez mais da "administração das coisas" e cada vez menos do "governo dos ho­mens"? E mesmo que a função "política" do Estado seja fi­nalmente irredutível (e nisso talvez Tolstoi se equivoque), não deve ela idealmente se reduzir aos limites mínimos possíveis? Nessa linha, não é perfeitamente pensável e desejável a supe­ração gradual do sistema repressivo-defensivo (exército, polí­cia etc.)?


Desqualificação total da igreja

Para Tolstoi, a igreja é outro sustentáculo da violência, , na medida em que a mistifica, através de sua prédica pseudo-| evangélica, e a sacraliza, com seus rituais "supersticiosos" e '"idolátricos".

Por isso, a crítica tolstoiana à igreja é igualmente arrasa­dora (cap. III). Concerne não apenas a esta ou àquela igreja concreta, mas à ideia mesma de igreja (cap. III). Em suas pala­vras, "cada igreja, como igreja, sempre foi e não pode deixar de ser uma instituição não só alheia, mas até diretamente oposta à doutrina de Cristo”. As igrejas não seriam apenas infiéis a Cristo, mas até hostis ao cristianismo. Seriam fundamen­talmente anticristãs. E se nelas se encontram pessoas santas e boas, isso se deveria à própria virtude dessas pessoas e não à sua pertença à igreja. São João Crisóstomo, São Francisco seriam bons apesar da igreja e não por causa dela.

Para Tolstoi, as igrejas são instituições intrinsecamente mentirosas. Sua função não é de revelar a doutrina de Cristo, mas antes de escondê-la, enganando as pessoas, mentindo ao povo. Todo o rico sistema simbólico da igreja: velas, cantos, bandeiras, sinos, paramentos, procissões, pinturas etc. é vi­rulentamente atacado como um meio para "hipnotizar", im­pressionar e adormecer a consciência do povo. E lança às igrejas um repto final: têm que escolher entre o Sermão da Montanha e o Símbolo de Nicéia, entre o Evangelho e o Dogma.

Em outro passo (no cap. VIII), Tolstoi levanta a hipóte­se de se a corrupção do cristianismo não foi necessária para sua difusão num mundo ainda pouco desenvolvido, do ponto de vista moral. Está por outro lado convencido de que hoje chegou a hora de entender e assimilar o cristianismo em sua forma pura, porque até hoje os cristãos não teriam compreen­dido sua verdadeira essência.

À parte sua presunção inegável, Tolstoi nos parece aqui, mais ainda que para o Estado, excessivamente enfático e pouco convincente. Produz mais denúncias proféticas que análises argumentadas. Ademais, sua tese nem sempre é coerente. Pois se a igreja como tal é anticristã, não há por que escolher entre o Evangelho e Nicéia; o certo seria desaparecer. Igualmente, liquidar, em nome do povo, com todo o sistema cristão de re­presentação, que o mesmo povo tanto preza e donde tira tan­ta força, não é contraditório? Que esse sistema tenha servido para alienar o povo, não lhe altera por isso a natureza.

Seja como for, a radical profecia antieclesiástica de Tols­toi pode e deve ser ouvida. Seu extremismo tem uma função singularmente catártica para as igrejas. É um apelo à conver­são e à fidelidade às mais altas exigências do Evangelho. Na verdade, a nenhuma instituição se aplica melhor o adágio: corruptio optimipessima (a corrupção do ótimo é péssima). Mas é preciso reconhecer que nas últimas décadas as igrejas em geral retomaram o papel dos profetas bíblicos face aos reis. E no que toca particularmente ao militarismo, estão redescobrin-do sua primitiva opção pela não-violência radical, vigente nos primeiros séculos, pleiteando pela proscrição total da guerra e de toda solução de força na resolução dos conflitos.


Atualidade de Tolstoi

A força deste livro consiste precisamente em articular pro­fecia e transformação social. Toca justamente no fulcro da questão que agita hoje a Teologia da Libertação e os cristãos em geral: a relação fé e política. Mas Tolstoi o faz de um mo­do todo original.

Em primeiro lugar, com relação à fé, postula uma volta decidida às fontes do cristianismo, para aquém de todas as tradições eclesiais. Nisso ele é literalmente radical: quer ir à raiz da proposta cristã. Sua relação é diretamente com o Evangelho.

Para Tolstoi, a religião cristã se entende essencialmente como profecia (cap. V). Não no sentido de prever o futuro, mas de antecipá-lo. O profeta é o que antevê em que direção vai o curso das coisas. Nisso se antecipa às maiorias. Essas, em virtude mesmo da profecia, acabam vendo o que ele já via. É sempre um precursor, um ser inaugural. Por isso mesmo só pode ser compreendido depois. Seu êxito só pode ser pós­tumo. Por isso, para Tolstoi, a religião, porque profecia, é sempre exigência infinita, chamado para frente, busca do sem­pre mais, antecipação do que virá.

Em termos de evolução histórica, o cristianismo não está atrás, mas à frente. Contudo, a história não está aí para pro­var que o cristianismo faliu? Ao contrário, responde o profe­ta, o cristianismo não só não faliu, como ainda não foi inteiramente experimentado. Na verdade, ainda não amadu­receu em todas as suas virtualidades (cap. VIII)./Por isso mes­mo Tolstoi ataca a intelectualidade moderna por pretender julgar o cristianismo a partir de um "conceito pagão de vi­da". Ora, isso é julgar o superior a partir do inferior; é "jul­gar o campanário, olhando para o alicerce", segundo suas próprias palavras.

Para Tolstoi, o cristianismo não é uma doutrina abstrata (para se saber), mas uma proposta prática (para se viver). Pa­rafraseando uma célebre tese de Marx, a fé não pode se con­tentar em interpretar o mundo, mas deve, isto sim, mudá-lo (cap. V). Daí o subtítulo original ao livro em estudo: "O cris­tianismo apresentado não como uma doutrina mística, mas como uma moral nova."

Por isso mesmo, para nosso autor, a mensagem evangé­lica não é coisa de igreja, mas coisa comum de todos. É patri­mónio da humanidade, que, na verdade e em seu prejuízo, dele faz pouco caso. Não se trata, pois, de uma moral meramente corporativa, mas realmente universal, pois que foi anunciada no mundo e para o mundo. Por isso também ela não se dirige somente ao indivíduo, mas a toda a sociedade. Isso vale inclusive no que tange às supremas exigências do Sermão da Montanha, à condição, porém, de não transformá-las numa nova jurisprudência, mas também de não reduzi-las a simples figuras de linguagem (cap. II)./Nesse sentido, o pensamento tolstoiano contribui para destruir o monopólio eclesiástico ou clerical do Evangelho, a fim de colocar este livro de vida nas mãos de todos e assim universalizá-lo.

Do ponto de vista teológico, pode-se levantar a pergun­ta: Será que a concepção tolstoiana da fé não sofreu aí um processo de desescatologização radical, ficando assim reduzi­da à ética? Certamente o Reino está "em nós", mas não está também para além de nós? E não é nessa última dimensão que está o segredo da força ético-profética do cristianismo, im­pedindo-o de cair no simples moralismo?

Agora, do ponto de vista especificamente político, a pa­lavra de Tolstoi não é menos instrutiva. É preciso dizer que frente à sociedade ele se situa numa perspectiva assumidamente socialista. Em seu ensaio "Ao povo trabalhador" (1902) de­fendeu a propriedade comum da terra. E escreveu um traba­lho, infelizmente inacabado, precisamente "Sobre o socia­lismo" (1910).

Contudo sua concepção de socialismo era muito mais re­volucionária que a de tantos autoproclamados revolucioná­rios de ontem e de hoje. Em primeiro lugar, Tolstoi acha decisivas as questões ético-religiosas, de que é prova o pró­prio livro em análise. Acusa os revolucionários de só se preo­cuparem com as condições externas ("objetivas"), esquecendo que são eles mesmo que devem começar a mudar de vida. De­vem começar por vencer a contradição em que vivem, a qual lhe permite gozar dos benefícios do sistema, ao mesmo tem­po em que nutrem o desejo de derrubá-lo. E isso vale natural­mente também e sobretudo para os liberais. É dizer que Tolstoi se preocupava sobretudo com as "condições subjetivas" da revolução. Por falta dessas condições, previu aquilo que se tor­nou fenómeno no socialismo comunista: um grau de repres­são muito maior que a anterior. Também nesse sentido ele foi profeta.

Em seguida, deu muita importância às questões culturais.


Para Tolstoi, a revolução começava nas consciências. Ela cons­tituía antes de tudo um imperativo ético de justiça e, mais ra­dicalmente ainda, de verdade. Sabemos de sua imensa atividade no campo da promoção da educação popular. Para difusão de edições populares, chegou a fundar uma casa editora "O Mediador" (1884). Sua orientação educativa era claramente antiautoritária. Consiste para ele em desenvolver a liberdade das pessoas, despertá-las da "hipnotização" governamental e social. Trata-se, enfim, na linguagem de hoje, de dar-lhes condições de se desalienarem e, em positivo, de se conscientizarem. Nesse campo sua atividade literária foi vastíssima. Es­creveu desde catecismos, comentários ao Evangelho, até tra­tados pedagógicos, como Sobre a instrução popular, Os jo­vens do campo devem aprender de nós a escrever ou nós de­les? (título já de per si extremamente significativo), A escola de Iasnaia Po liana... e outros mais. Vê-se de imediato como em tudo isso Tolstoi mostrou-se um precursor de P. Freire e sua "pedagogia do oprimido", e também de I. Illich, na me­dida em que questionou a validade do sistema oficial de ensi­no, reputando-o um meio de submetimento das consciências ao sistema vigente.

Por fim, Tolstoi apresenta um lado surpreendentemente "ecologista". Pronunciou-se contra o progresso técnico indis­criminado, fez o elogio do amor à terra e da vida ligada à na­tureza, propôs o vegetarianismo, fez oposição à caça de animais, enfim, considerava que todo ser vivo tem direito a viver.


Tolstoi profeta: convertei-vos!

O que propõe finalmente o autor de O Reino de Deus Está em Vós? Nenhum sistema social muito definido. Como pro­feta que é, ele simplesmente grita: *'Convertei-vos, senão to­dos perecereis!" (Lc 13,3 e 5). Tolstoi pede a mudança de vida de cada um. A revolução não é para depois, é para já. Arran­ca da vida de cada um. A "saída" que indica o profeta é, pois, a entrada no Reino que vem chegando. Ora, no portão de acesso ao Reino está escrito com letras de fogo: "Convertei-vos, pois o Reino está próximo!''(Mc 1,15).Nisso Leon Tols-toi só tem de par outro profeta, este também de juba: Leão Bloy.

Mas cuidado: este individualismo ético-profético não é em absoluto um fechamento sobre si, mas antes um compro­misso pessoal com o outro, com a sociedade. É um individua­lismo aberto, solidário com os outros, que alguns poderiam chamar de personalismo. Nesse sentido, Tolstoi se comporta como todo profeta: devolve cada um a sua responsabilidade. A liberdade pessoal não se delega. Ela se exerce em primeira pessoa. Ora, só os livres podem construir a sociedade dos li­vres.

Como para Cristo, o que dá urgência ao apelo da con­versão é o agudo sentido do "kairós": "Completaram-se os tempos. O Reino de Deus está às portas!" (Mc 1,15). Os tem­pos estão maduros e está na hora de acordar. Nisso Tolstoi emerge como um profeta verdadeiramente apocalíptico. Ele anuncia a iminência do mundo novo. "Os campos já estão brancos para a ceifa" (Jo 4,35). E "quando o fruto está ma­duro, mete-se-lhe a foice, pois é tempo da colheita" (Mc 4,29).

Portanto, chegou a hora! Tolstoi assume aqui um tom apocalíptico: a casa está pegando fogo e não há mais tempo de se perguntar se é preciso sair ou não; o navio afunda e ur­ge lançar mão dos salva-vidas antes de afundar com ele; os pintinhos já não podem mais ficar no ovo e para sair já rom­pem a casca com o bico. São as comparações que Tolstoi usa para mostrar que os tempos estão maduros para uma socie­dade não-violenta, livre e igualitária.

Efetivamente, está convencido de que a consciência hu­mana amadureceu. Pois admite um progresso na compreen­são das exigências do cristianismo. Inicialmente, só o profeta e uma minoria de discípulos, por via da intuição, compreen­dem certas verdades. Mas estas vão ganhando as maiorias me­diante a experiência e acabam, pouco a pouco, se impondo. Ora, as mais altas exigências do Sermão da Montanha, como o preceito da "não-resistência ao mal com o mal", se impõem cada vez mais, a partir das próprias experiências históricas, como o caminho certo para uma sociedade mais elevada que a anterior.

Tolstoi percebe um crescimento de consciência nessa di-reção, embora as práticas ainda marquem passo. Vê um sinal disso no fato de que a sociedade atual, que vive ainda segun­do o *'conceito pagão de vida", sente agudamente a contra­dição entre sua vida pagã de opressão e sua consciência cristã de fraternidade. Acha mesmo que os próprios ricos e podero­sos já têm vergonha de gozar de seus privilégios e procuram escondê-los o quanto podem. Da parte da sociedade em geral cresce o desprestígio dos grandes. Não estaríamos aqui diante de sinais indicadores de que o processo histórico de dissolu­ção da violência estatal e do militarismo já se iniciou do pon­to de vista cultural, ou seja, no campo da sensibilidade ética? — É verdade — e ele o sabe —, essa consciência ainda é coisa de uma minoria profética. Mas pode despertar os outros. E este seu livro já não representa um despertador eficaz dessa nova fase da história?

Mas, em que consiste precisamente a conversão a que con­voca Tolstoi? Essencialmente nisso: Dizer a verdade, não men­tir. Pois só assim — acredita — se rompe o círculo da "me­tafísica da hipocrisia" em que está enredado o mundo mo­derno. O apelo de Tolstoi é este: Viver à luz da verdade, sem máscaras. Ele acredita que assim, à força da verdade, as rela­ções na sociedade se transformarão. Por isso, pôs no frontis­pício do livro esta outra máxima: "E conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres" (Jo 8,32).

Certamente que isso só é insuficiente para mudar uma so­ciedade. Parece pouco, mas é o ato inaugural de toda mudan­ça autêntica. Pois irrompe do núcleo ético da verdaderia prática política. E não é sem efeitos concretos, como se pode ver nos dissidentes russos, como Solzhenitsin, que na ética da verda­de tiveram em Tolstoi o modelo de profeta. Porque "a luz resplandece nas trevas e as trevas não podem ofuscá-la" (Jo 1,5).

Oxalá o profético livro de Tolstoi possa lançar sobre nossa triste e degradada realidade sua provocante luz ético-libertadora!




Cronologia da vida de Tolstoi

1828 — 28 de agosto: Leon Tolstoi nasce em Jasnaia Poliana, em Tuia, cerca de 180km de Moscou. Quarto filho do Conde Nicolau Tolstoi. 1830 Morte da mãe.

1837 — Mudança para Moscou. Morte do pai. 1841 Mudança para Kazan, onde se prepara para a inscrição na universidade da cidade. 1847 Deixa depois de dois anos a universidade de Kazan e volta para Jasnaia Poliana.

1851 — Parte para o Cáucaso com o irmão, oficial do exército russo.

1852 — Publica com sucesso a sua primeira obra, Infância.

1854 — Em Sebastopol, como oficial do exército.

1855 — Assiste à queda de Sebastopol, que descreverá em con­tos famosos.

1857 — Primeira viagem à Europa.

1860 — Segunda viagem à Europa, onde, na França, morre o amado irmão Nicolau.

1861 — Fixa residência em Jasnaia Poliana, onde cria uma escola para camponeses.

1863 — Casa-se com Sofia Bers, de 18 anos, filha de um médico da corte. Viverá com ela pelo resto de sua vida, unido por intensa paixão amorosa e muitas vezes dividido por fortes incompreensões. Terá com ela 13 filhos, dos quais só nove chegarão à idade adulta.

1868 — Publica Guerra e oaz com grande sucesso.

1875 — Publica Anna Karenina. Outro grande sucesso. 1878 Profunda crise espiritual e sucessiva conversão. i881 Escreve A confissão, onde narra sua crise. 1884 Com Certkóv, seu fiel discípulo e secretário, funda a edi­tora O Mediador, para difundir edições populares. 1889 Publica Sonata a Kreuzer.

1891 — Organiza refeitórios para os camponeses famintos, du­rante uma grave carestia.

1892 — Doação à mulher e aos filhos de suas propriedades.

1893 — Publica (no exterior) O Reino de Deus está em vós. 1895 O fiel Certkov é exilado.

1899 — Publica Ressurreição.

1901 — É excomungado pelo Santo Sínodo da igreja Ortodoxa Viagem à Criméia por razões de saúde.

1906 — Morre a amantíssima filha Masha.

1908 — Escreve Não posso calar, contra as condenações à mor­te impostas pelo regime czarista. Escreve Carta a um hindu.

1910 — Devido à exacerbação das discórdias familiares, deixa sua casa no dia 28 de outubro. Adoece durante a via­gem e, na manhã de 7 de novembro, morre na casa do chefe da estação, em Astapovo.











































































E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (Jo 8,32).


E não temais os que matam o corpo, mas não podem ma­tar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo (Mt 10,28).


Alguém pagou alto pelo nosso resgate; não vos torneis escravos dos homens (1Cor 7,23)















O Reino de Deus Está em Vós

- ou -

O CRISTIANISMO APRESENTADO

NÃO COMO UMA DOUTRINA MÍSTICA

MAS COMO UMA MORAL NOVA
























Prefácio

Em 1844 escrevi um livro, intitulado Em que consiste a minha fé1, no qual, de fato, expus todas minhas crenças.

1Esta obra foi traduzida e publicada em francês com o título A minha religião.


Manifestando minha maneira de compreender a doutri­na do Cristo, não disse por que considero como heresia aque­la religião oficial chamada cristianismo.

Esta difere, em minha opinião, daquela de Cristo em mui­tos pontos, entre os quais constatei, antes de tudo, a supres­são do mandamento que nos proíbe opormo-nos ao mal com a força. Mais do que qualquer outro, este desvio de doutrina é uma prova evidente do quanto a igreja oficial havia desna­turado os princípios de Cristo.

Eu, aliás, como tantas outras pessoas, era bem pouco informado sobre o que, nos tempos antigos, fora feito, dito ou escrito a respeito desta tão importante questão: a da não-resistência ao mal.

Sabia, porém, o que disto pensavam os padres da igreja, como Orígenes, Tertuliano e tantos outros. Não ignorava se­quer que existiam e existem ainda certas seitas chamadas me-nonitas, hernutos, quakers, que rejeitam o serviço militar e não admitem que os cristãos portem armas. Mas eu sabia tu­do isto de forma por demais imperfeita para poder aprofun­dar e esclarecer por completo este assunto.

Como esperava, meu livro não foi autorizado pela cen­sura russa. Mas, graças talvez a minha fama, graças também, sem dúvida, ao interesse que despertavam estas questões, meu trabalho fez um grande sucesso na Rússia e inúmeras tradu­ções foram feitas no exterior. Isto provocou, assim, interes­santes comunicados em apoio a minha tese, além de uma longa série de críticas.

Esse choque de ideias, somado aos últimos acontecimen­tos históricos, esclareceu-me muitos pontos que haviam per­manecido obscuros e me conduziu a novas conclusões, sobre as quais me estenderei dentro em pouco.

Antes de mais nada, direi poucas palavras sobre os co­municados que me foram feitos a respeito da não-resistência ao mal, alongar-me-ei então sobre os comentários que esta questão provocou por parte dos críticos eclesiásticos ou lei­gos e terminarei com as conclusões que me parecem derivar deste estudo e dos últimos acontecimentos históricos.




























Capítulo I

A doutrina da não-resistência ao mal com a violência tem sido ensinada pela minoria dos homens desde a origem do cristianismo


Os primeiros comentários provocados por meu livro foram-me endereçados por quakers americanos. Dando-me ciência de sua absoluta concordância de pontos de vista quanto à ilegitimidade, para o cristão, de qualquer guerra e de qual­quer violência, os quakers me comunicaram detalhes interes­santes sobre sua seita que, há mais de duzentos anos, pratica a doutrina de Cristo em relação à não-resistência ao mal com a violência. Simultaneamente, enviavam-me seus jornais, fo­lhetos e livros que tratavam desta questão, para eles indiscu­tível desde há muito, e demonstravam o erro da doutrina da igreja que admite as penas capitais e a guerra.

Após provarem, com uma longa série de argumentos, fun­damentados em experiências, que a religião, edificada sobre a concórdia e o amor ao próximo, não poderia admitir a guer­ra, isto é, a mutilação e o homicídio, os quakers afirmam que nada contribui tanto para obscurecer a verdade do Cristo e impedi-la de se difundir no mundo quanto o não reconheci­mento deste princípio por parte dos homens que se dizem cris­tãos. E mais:

A doutrina de Cristo que penetrou na consciência dos ho­mens não por meio dos ferros nem da violência, mas pela não-resistência ao mal, pela resignação, pela humildade e pelo amor, só pode ser difundida no mundo através do exemplo da concór­dia e da paz entre seus seguidores.

O cristão, conforme os ensinamentos do próprio Deus, não pode ser guiado, em suas relações com o próximo, senão pelo amor. Assim, não pode existir autoridade alguma capaz de constrangê-lo a agir contrariamente aos ensinamentos de Deus e ao próprio espírito do cristianismo.

A regra da necessidade do Estado não pode obrigar à trai­ção da lei de Deus, exceto para aqueles que, por interesse da vida material, procuram conciliar o inconciliável. Mas para o cristão que crê firmemente que a salvação reside na prática da doutrina de Cristo, esta necessidade não pode ter qualquer importância.


A história dos quakers e o estudo de suas obras, dos tra­balhos de Fox e Penn e, sobretudo, dos livros de Dymond (1827) demonstraram-me que a impossibilidade de conciliar o cristianismo com a guerra e a violência foi não apenas reco­nhecida desde há muito, mas também tão nítida e indiscuti­velmente provada, que não se pode compreender esta união impossível da doutrina de Cristo com a violência, que foi e continua a ser pregada pelas igrejas.

Além das informações recebidas dos quakers, obtive na mesma época, e também vindos da América, pormenores de uma fonte, para mim absolutamente desconhecida, a respeito do mesmo assunto. O filho de William Lloyd Harrison, o fa­moso defensor da liberdade dos negros, escreveu-me afirmando que encontrara, em meu livro, as ideias expressas por seu pai em 1848 e, supondo que me interessaria constatá-lo, enviou-me o texto de um manifesto ou declaração intitulada "Não-Resistência", escrita por seu pai há mais de cinquenta anos.

Esta declaração originou-se das seguintes circunstâncias: William Lloyd Harrison, em 1838, ao examinar, numa asso­ciação americana para o restabelecimento da paz entre os ho­mens, os meios adequados para fazer cessar a guerra, chega à conclusão que a paz universal não se pode erigir senão so­bre o reconhecimento público do mandamento da não-resistência ao mal com a violência (Mt 5,39) em toda sua amplitu­de, como o praticam os quakers com os quais Harrison man­tinha relações de amizade. Chegando a esta conclusão, ele redige e propõe a esta associação a declaração abaixo, que foi subscrita, em 1838, por vários de seus membros:

Declaração de princípios, aceita pelos membros da Sociedade criada para o res­tabelecimento da paz universal entre os homens.

Boston, 1838.

Nós, abaixo assinados, acreditamos ter o dever, para cono^-co e para com a causa tão cara a nossos corações, para com país em que vivemos e para com o mundo inteiro, de proclamar a nossa fé, expressando os princípios que professamos, a finali­dade por nós buscada e os meios que temos intenção de usar para chegar a uma revolução benéfica, pacífica e geral.

Eis os nossos princípios:

Não reconhecemos qualquer autoridade humana. Não reco­nhecemos senão um só rei e legislador, um juiz e líder da huma­nidade. Nossa pátria é o mundo inteiro; nossos compatriotas são todos os homens. Amamos todos os países como nosso próprio país, e os direitos de nossos compatriotas não nos são mais caros do que os de toda a humanidade. Por isto, não admitimos que o sentimento de patriotismo possa justificar a vingança de uma ofensa ou de um mal feito ao nosso país.

Reconhecemos que o povo não tem o direito de se defender dos inimigos externos, nem de atacá-los. Reconhecemos ainda que os indivíduos isolados não podem ter este direito em suas rela­ções recíprocas, não podendo a unidade ter direitos maiores do que os da coletividade. Se o governo não deve se opor aos con­quistadores estrangeiros que visam à ruína de nossa pátria e à des­truição de nossos concidadãos, da mesma forma não pode opor a violência aos indivíduos que ameaçam a tranquilidade e a segu­rança públicas. Â" doutrina, ensinada pelas igrejas, de que todos os países da terra são criados e aprovados por Deus, e de que as autoridades, que existem nos Estados Unidos, na Rússia, na Tur­quia etc. emanam de Sua vontade, não é apenas estúpida.», como. também blasfematória. Esta doutrina representa nosso Criador como um ser parcial, que estabelece e encoraja o mal. Ninguém pode afirmar que as autoridades existentes, em qualquer país que seja, ajam com seus inimigos segundo a doutrina e o exemplo de Cristo. Nem mesmo seus atos podem ser agradáveis a Deus. Não podem, portanto, ter sido estabelecidos por Ele, e devem ser der­rubados, não pela força, mas pela regeneração moral dos homens.

Não reconhecemos como cristãs e legais não apenas as guer­ras — ofensivas ou defensivas — mas também as organizações militares, quaisquer que sejam: arsenais, fortalezas, navios de guerra, exercícios permanentes, monumentos comemorativos de vitórias, trofeus, solenidades de guerra, conquistas através da for­ça, enfim, reprovamos igualmente como anticristã qualquer lei que nos obrigue ao serviço militar.

Em consequência, consideramos impossível para nós não ape­nas qualquer serviço ativo no Exército, mas também qualquer fun­ção que nos dê a missão de manter os homens no bem pela ameaça de prisão ou de condenação à morte. Excluímo-nos, então, de to­das as instituições governamentais, repelimos qualquer política e recusamos todas as honrarias e todos os cargos humanos.

Não nos reconhecendo o direito de exercer funções nas insti­tuições governamentais, recusamos também o direito de eleger pa­ra estes cargos outras pessoas. Consideramos que não temos o direito de recorrer à justiça para nos fazer ser restituído o que nos foi tirado e acreditamos que, ao invés de fazer uso da violên­cia, estamos obrigados a "deixar também o manto àquele que nos roubou a veste" (Mt 5,40).

Preconizamos que a lei criminal do Antigo Testamento — olho por olho, dente por dente — foi anulada por Jesus Cristo e que, se­gundo o Novo Testamento, todos os fiéis devem perdoar seus ini­migos em todos os casos, sem exceção, e não se vingar. Extorquir dinheiro à força, prender, mandar para a cadeia ou condenar à mor­te não se constitui, evidentemente, em perdão, e sim em vingança.

A história da humanidade está cheia de provas de que a vio­lência física não contribui para o reerguimento moral e de que as más inclinações do homem somente podem ser corrigidas atra­vés do amor; de que o mal não pode desaparecer senão por meio do bem; de que não se deve contar com a força do próprio braço para se defender do mal; de que a verdadeira força do homem está na bondade, na paciência e na caridade; de que só os pacífi­cos herdarão a terra e de que aqueles que com a espada ferirem pela espada perecerão.

Por isso, tanto para garantir com mais segurança a vida, a propriedade, a liberdade e a felicidade dos homens, quanto para seguir a vontade d'Aquele que é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores, aceitamos de todo o coração o princípio fundamental da não-resistência ao mal por meio do mal, porque acreditamos firmemente que este princípio, que atende a todas as circunstân­cias possíveis da nossa existência e ao mesmo tempo exprime a vontade de Deus, deve finalmente triunfar. Não pregamos uma doutrina revolucionária. O espírito da doutrina revolucionária é um espírito de vingança, de violência e de morte, sem temor a Deus e sem respeito pela personalidade humana, e não queremos nos deixar penetrar senão pelo espírito do Cristo. Nosso princípio fun-z damental de não-resistência ao mal por meio do mal não nos per­mite insurreições, nem rebeliões, nem violências. Submetemo-nos a todas as regras e a todas as exigências do governo, exceto àquelas que sejam contrárias aos mandamentos do Evangelho. Não resistiremos de outra forma a não ser submetendo-nos passiva­mente às punições que poderão ser infligidas devido à nossa dou­trina. Suportaremos todas as agressões sem deixar de, pelo nosso lado, combater o mal onde quer que o encontremos, no alto ou embaixo, no terreno político, administrativo ou religioso, e pro­curaremos atingir, servindo-nos de todos os meios possíveis, a fu­são de todos os reinos terrestres num só reino de Nosso Senhor Jesus Cristo. Consideramos como verdade indiscutível que tudo aquilo que seja contrário ao Evangelho deve ser definitivamente destruído. Acreditamos, como o profeta, que virá um tempo em que as espadas serão transformadas em relhas e as lanças em foi­ces, e que devemos trabalhar sem demora, na medida de nossas forças, para a concretização dessa profecia. Em consequência, aqueles que fabricam, vendem ou se servem de armas contribuem para os preparativos da guerra e se opõem pela mesma razão ao poder pacífico do Filho de Deus na Terra.

Após a exposição de nossos princípios, dizemos agora de que modo esperamos alcançar nosso objetivo. Esperamos vencer "por meio da loucura da pregação".

Procuraremos difundir nossas ideias entre todos os homens, pertençam eles a qualquer nação, religião ou classe social. Para tanto, organizaremos palestras públicas, difundiremos programas e opúsculos, constituiremos sociedades e enviaremos petições a todas as autoridades públicas.

Em suma, empenhar-nos-emos, com todos os meios de que dispusermos, para produzir uma revolução radical nas opiniões, nos sentimentos e nos costumes da nossa sociedade, em tudo o que concerne à ilegitimidade da violência contra os inimigos in­ternos ou externos. Empreendendo esta grande obra, compreen­demos perfeitamente que nossa sinceridade talvez nos prepare cruéis provações.

Nossa missão pode nos expor a muitos ultrajes e a muitos sofrimentos, e também à morte. Seremos incompreendidos, ridi­cularizados e caluniados. Uma tempestade se erguerá contra nós. O orgulho e a hipocrisia, a ambição e a crueldade, os chefes de Estado e os poderosos, tudo pode se voltar contra nós. Não foi de outro modo tratado o Messias que procuramos imitar na me­dida de nossas forças. Mas tudo isto não nos amedronta. Não co­locamos nossa esperança nos homens, mas no Nosso Senhor Onipotente. Se recusamos qualquer proteção humana, é porque temos para nos sustentar apenas a nossa fé, mais poderosa do que tudo. Não nos maravilharemos com as provações e ficaremos fe­lizes por haver merecido poder compartilhar dos sofrimentos de Cristo.

Assim, então, entregamos nossas armas a Deus, confiantes em Sua palavra de que aquele que abandonar campos e casas, ir­mão e irmã, pai e mãe, mulher e filhos, para seguir Cristo, rece­berá cem vezes mais e herdará a vida eterna.

Acreditando firmemente, apesar de tudo o que poderia cair sobre nós, no indubitável triunfo, em todo o mundo, dos princí­pios expostos nesta declaração, aqui pomos nossas assinaturas, confiando no bom senso e na consciência dos homens, mas ainda mais no poder divino, ao qual nos reportamos.

Posteriormente a esta declaração, Harrison fundou a So­ciedade da Não-Resistência e uma revista intitulada Não-Resistente, na qual expunha a própria doutrina em toda sua importância e com todas suas consequências, tal como for­mulada em sua declaração.

Informações quanto ao destino desta sociedade e desta revista me foram fornecidas pela excelente biografia de W. L. Harrison, em quatro volumes, escrita por seu filho. Nem a sociedade nem a revista tiveram grande duração. A maior parte dos colaboradores de Harrison no trabalho de libertação dos negros renunciou a prosseguir nessa campanha, receando indispor os adeptos da mesma com os princípios radicais da re­vista; assim, sociedade e revista não tardaram a desaparecer.

Poder-se-ia crer que a profissão de fé de Harrison, de tão grande eloquência, tivesse forçosamente impressionado for­temente o público e, tornando-se conhecida no mundo intei­ro, fosse objeto de um profundo exame. Nada de parecido aconteceu. Ela não só é desconhecida na Europa, mas tam­bém quase que ignorada pelos americanos que, entretanto, pro­fessam um culto profundo à memória de Harrison.

A mesma indiferença estaria reservada a um outro defen­sor do princípio da não-resistência ao mal com a violência, o americano Adin Bailou, morto recentemente e que, durante cinquenta anos, lutou por esta doutrina.

Para demonstrar o quanto tudo o que se refere a esta ques­tão é ignorado, citarei o filho de Harrison. À minha pergunta relativa aos adeptos sobreviventes da Sociedade "Não-Resistente", respondeu-me que esta sociedade se havia dissolvido e que não mais existia partidário algum desta doutrina, quan­to lhe constava. Ora, no momento em que me escrevia, vivia ainda em Hopedale, Massachusetts, Adin Bailou, que havia colaborado com a obra de Harrison e dedicado cinquenta anos de sua vida à propaganda falada e escrita da doutrina da não-resistência.

Mais tarde, recebi uma carta de Wilson, discípulo e cola­borador de Bailou, e entrei em contato com o próprio Bailou. Escrevi; respondeu-me e enviou-me suas obras. Eis um trecho:

Jesus Cristo é meu senhor e meu patrão (disse Bailou em um de seus estudos que demonstra a inconsequência dos cristãos que admitem o direito de defesa e da guerra).

Prometi abandonar tudo e a Ele seguir até à morte, na ale­gria ou na dor. Mas sou cidadão da República Democrática dos Estados Unidos, à qual prometi ser fiel e sacrificar minha vida, se for o caso, pela defesa de sua constituição. O Cristo me orde­na que faça aos outros aquilo que desejo que seja feito a mim mesmo. A constituição dos Estados Unidos exige de mim que faça a dois milhões de escravos (na época havia escravos, hoje pode-se francamente colocar em seu lugar os operários) exatamente o rnntrárin Ho nne eu costaria aue fosse feito comigo mesmo, isto é, ajudar a mantê-los na escravidão. E isto não me perturba! Con­tinuo a eleger ou a me fazer eleger, ajudo a gerir os negócios do Estado, estou também inteiramente pronto para aceitar qualquer cargo governamental. E isto não me impede de ser cristão! Con­tinuo a praticar a minha religião, não encontro a menor dificul­dade de cumprir ao mesmo tempo com meus deveres para com Cristo e o Estado!

Jesus Cristo me proíbe resistir àqueles que cometem o mal e arrancar-lhes olho por olho, dente por dente, sangue por san­gue, vida por vida.

O Estado exige de mim exatamente o contrário e constrói sua defesa contra os inimigos internos e externos sobre o patíbulo, sobre o fuzil e sobre a espada, e o país é amplamente provido de forças, arsenais, navios de guerra e soldados.

Não existe meio de destruição que pareça caro demais! E achamos muito fácil praticar o perdão das ofensas» amar nossos inimigos, abençoar aqueles que nos amaldiçoam e fazer o bem àqueles que nos odeiam!

Temos para isto um clero permanente que reza por nós e invoca as bênçãos de Deus sobre nossas santas carnificinas.

Vejo perfeitamente tudo isto (a contradição entre a doutrina e os atos) e continuo a praticar a minha religião e servir o país, e me glorifico por ser ao mesmo tempo um cristão e um servo devoto e fiel do governo. Não quero admitir esse louco conceito de não-resistência ao mal, não posso renunciar à minha parcela de influência e abandonar o poder apenas aos homens imorais. A constituição diz: "O governo tem o direito de declarar a guer­ra", e disto estou convencido, e aprovo, e juro ajudá-lo, e nem por isto deixo de ser cristão!

Também a guerra é um dever cristão! Não será talvez prati­car um ato cristão matar centenas de milhares dos próprios se­melhantes, violentar mulheres, destruir e incendiar cidades e cometer toda espécie de crueldade?

É tempo de abandonar todo este sentimentalismo pueril! Eis o verdadeiro meio de perdoar as ofensas e amar os nossos inimi­gos. Porque, sendo feitos em nome do amor, nada é mais cristão do que estes massacres.


Em outro opúsculo, intitulado Quantos homens sâo necessários para transformar um crime num ato justo, diz:

Um homem sozinho não deve matar: se ele matou, é um réu, um homicida. Dois, dez, cem homens, se matarem, serão também homicidas. Mas o Estado ou o povo podem matar, quanto queiram, e seu ato não será um homicídio, e sim uma ação gloriosa. Trata-se somente de reunir o maior número possível de pessoas e a matan­ça de dezenas de homens se transforma numa ocupação inocente. E quantos homens são necessários para isto? Eis a questão. Um in­divíduo não pode roubar e saquear, mas um povo inteiro pode.

Por que um, dez, cem homens não devem infringir as leis de Deus, enquanto uma grande quantidade pode?

Eis, agora, o catecismo de Bailou, composto para seus fiéis:


CATECISMO DA NÃO-RESISTÊNCIA1

1A tradução [para o russo] foi livre, com algumas omissões.


Pergunta De onde foi tirada a expressão "Não-Resistência"?

Resposta Da frase: Não resistais ao homem mal. (Mt 5,39)

P O que exprime esta expressão?

R Exprime uma alta virtude cristã ensinada por Cristo.

P Devemos aceitar a expressão da não-resistência em seu sentido mais amplo, ou seja, que ela significa que não de­vemos opor qualquer resistência ao mal?

R Não. Ela deve ser compreendida no sentido exato do mandamento de Cristo, isto é, não pagar o mal com o mal. É preciso resistir ao mal com todos os meios justos, mas não por meio do mal.

P De onde se deduz que o Cristo tenha ordenado a não-resistência neste sentido?

R Das palavras que ele pronunciou a este respeito: "Ouvistes o que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. E eu vos digo: Não te oporás ao malvado; assim, se alguém te bate na face direita, oferece-lhe a esquerda. Ese alguém quer brigar con­tigo, e tirar-te o manto, deixa-lhe também a veste."

P De que fala o Cristo ao dizer: "Ouvistes o que foi dito?"

R Dos patriarcas e dos profetas e do que eles disse­ram e que está escrito no Antigo Testamento que os israelitas chamam geralmente de a Lei e os Profetas.

P A que mandamento o Cristo faz alusão com as pa­lavras "Vos foi dito"?

R Ao mandamento com o qual Noé, Moisés e outros profetas dão o direito de fazer um mal pessoal àqueles que vos fizeram mal para punir e para suprimir as más ações.

P Cite estes mandamentos.

R Quem versa o sangue do homem, pelo homem te­rá seu sangue versado (Gn 9,6).

Quem ferir a outro e causar sua morte será morto.

Mas se houver dano grave, então darás vida por vi­da, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Ex 21,12.23.24.25).

Se um homem golpear um ser humano, quem quer que seja, deverá morrer.

Se um homem ferir o próximo, desfigurando-o, co­mo ele fez assim se lhe fará.

Fratura por fratura, olho por olho, dente por dente (Lv 24,17.19.20).

Juizes investigarão cuidadosamente. Se a testemunha for uma testemunha falsa, e tiver caluniado seu irmão, então vós a tratareis conforme ela própria maquinava tratar seu próximo.

Que teu olho não tenha piedade; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé (Dt 19, 18.19 e 21).

Eis os mandamentos de que fala Jesus.

Noé, Moisés e os profetas ensinam que aquele que mata, mutila ou martiriza seu semelhante pratica o mal.

Para se opor a este mal e para suprimi-lo, querem que aquele que o praticou seja punido com a morte, com a muti­lação ou com qualquer outro castigo. Querem pagar ofensa com ofensa, homicídio com homicídio, sofrimento com so­frimento, o mal com o mal. Mas Cristo desaprova tudo isto. "Eu vos digo não vos oponhais ao mal, não pagueis ofensa com ofensa, nem mesmo se deveis suportá-la novamente" escreve ele no Evangelho. O que era lícito está proibido. Ten­do compreendido que género de resistência ensinavam Noé, Moisés e os profetas, sabemos igualmente o que significa não-resistência ensinada por Cristo.

P Admitiam os antigos a resistência à ofensa com a ofensa?

R Sim, mas Jesus a proibiu. O cristão não tem em caso algum o direito de tirar a vida ou de atingir com um cas­tigo aquele que lhe fez mal.

P Pode ele matar ou ferir para se defender?

R Não.

P Pode ele levar acusações diante dos tribunais para obter a punição do ofensor?

R Não, porque o que ele faz por intermédio dos ou­tros é o que realmente faz.

P Pode ele combater um exército contra os inimigos de fora ou contra os rebeldes internos?

R Não, é claro. Ele não pode tomar qualquer parte na guerra, nem mesmo na organização da guerra. Não pode usar armas mortais, não pode resistir à ofensa com a ofensa, seja sozinho ou unido a outros, aja por si ou por intermédio dos outros.

P Pode ele, voluntariamente, reunir e armar solda­dos para o serviço do Estado?

R Ele não pode fazer nada disto, se quiser ser fiel às leis do Cristo.

P Pode ele, com benevolência, dar dinheiro ao go­verno que ésustentado pelas forças armadas, pela pena de mor­te e pela violência?

R — Não, a menos que este dinheiro não se destine a um objetivo em especial, justo por si mesmo e cujos fins e meios sejam bons.

P Pode ele pagar impostos a tal governo?

R Não, ele não deve voluntariamente pagar impostos; mas não deve resistir ao recolhimento de impostos. O imposto decretado pelo governo é recolhido independentemente da von­tade de contribuintes. O homem não pode escapar dele sem recorrer à violência, e o cristão, não podendo usar de violência, deve abandonar a sua propriedade às arrecadações do poder.

P Pode um cristão ser eleitor, juiz ou agente do governo?

R — Não, a participação nas eleições, na justiça, na ad­ministração, nos faz participar da violência governamental.

P Qual a principal virtude da doutrina da não-resistência?

R A possibilidade de cortar o mal pela raiz em nosso próprio coração, assim como no de nossos semelhantes. Esta doutrina reprova o que perpetua e multiplica o mal no mun­do. Aquele que ataca seu próximo ou que o ofende provoca sentimentos de ódio, origem de todo o mal. Ofender o próxi­mo porque ele nos ofendeu, com o propósito de repelir o mal, é reprovar uma má ação, é despertar ou pelo menos liberar, encorajar o demónio que pretendemos repelir. Satanás não po­de ser expulso por Satanás, a mentira não pode ser purificada pela mentira, e o mal não pode ser vencido pelo mal.

A verdadeira não-resistência é a única resistência ao mal. Ela degola o dragão. Destrói efaz desaparecer por completo os maus sentimentos.

P Mas, se a ideia da doutrina é justa, ela é, afinal, exequível?

R — Tão exequível como todo bem ordenado pela Sagra­da Escritura. O bem, para ser feito em qualquer circunstância, exige renúncia, privações, sofrimentos e, em casos extremos, o sacrifício da própria vida. Mas aquele que preza mais sua vida do que o cumprimento da vontade de Deus já está morto para a única vida verdadeira. Tal homem, querendo salvar sua vida, perdê-la-á. Ademais, em geral, onde a não-resistência requer o sacrifício de uma só vida ou de alguma felicidade essencial à vida, a resistência requer milhares de sacrifícios semelhantes. A não-resistência conserva, a resistência destrói. ___

É muito menos perigoso agir com igualdade do que com injustiça, suportar a ofensa do que resistir a ela com violên-i cia. Em nossa vida atual, isto é também mais seguro. Se toJ dos os homens se abstivessem de resistir ao mal com o mah a felicidade reinaria sobre a terra.

P Mas, se somente alguns agissem deste modo, o que seria deles?

R Ainda que um só homem agisse assim e que todos os outros concordassem em crucificá-lo, não seria mais glo­rioso para ele morrer pelo triunfo do amor do que viver e car­regar a coroa dos Césares encharcada com o sangue dos imolados? Mas, fosse um só homem ou fossem mil homens a haver decidido não resistir ao mal com o mal, estivesse ele entre os bárbaros ou entre os selvagens, estaria muito mais livre da violência do que com aqueles que se apoiam na vio­lência. O bandido, o assassino, o ladino deixá-lo-iam em paz, dando preferência aos que resistem com armas.

Aquele que golpeia com a espada perecerá pela espada, enquanto aqueles que buscam a paz, que vivem irmãmente, que perdoam e esquecem as ofensas desfrutam habitualmente de paz durante a vida e são abençoados após a morte.

Se, então, todos os homens observassem o mandamento da não-resistência, não haveria mais ofensa, nem delito. Se, por pouco que fosse, eles fossem a maioria, estabeleceriam logo o poder do amor e da benevolência também sobre os ofenso-res, sem nunca usar de violência. Se fossem apenas uma mi­noria importante, sempre exercitariam uma tal ação mora-lizadora e regeneradora sobre a humanidade que todos os cas­tigos cruéis seriam anulados; a violência e o ódio cederiam lu­gar à paz e ao amor. E ainda que não fossem senão uma pequena minoria, raramente teriam que sofrer algo pior do que o desprezo do mundo, e entretanto o mundo, sem se aper­ceber e sem ser agradecido, tornar-se-ia progressivamente me­lhor e mais sábio, em consequência da influência dessa pequena minoria oculta. Mesmo admitindo que alguns membros dessa minoria fossem perseguidos até a morte, estas vítimas da ver­dade deixariam atrás de si a sua doutrina já consagrada pelo sangue do martírio.

A paz esteja com aqueles que procuram a paz, e que o amor vencedor permaneça a herança imorredoura de todas as almas que se submetem livremente à lei de Cristo!

Não resistir ao mal com a violência.

Adin Ballou


Durante cinquenta anos, Bailou escreveu e publicou livros que se referiam sobretudo à não-resistência. Nessas obras, no­táveis pela lucidez de pensamento e pela beleza do estilo, a ques­tão é examinada sob todos os ângulos possíveis. Ele faz da observância deste mandamento um dever para todo o cristão que crê na Bíblia como em uma revelação divina. Passa em re­vista todas as objeções... tanto as tratadas no Antigo e no No­vo Testamentos — como, por exemplo, a expulsão dos mercadores do Templo — quanto as independentes da Escritu­ra, e as refuta vitoriosamente, mostrando o sentido prático da não-resistência. Assim, um capítulo inteiro de sua obra é dedi­cado ao exame de casos especiais. Reconhece que só um caso, no qual a não-resistência não pudesse ser admitida, bastaria para provar a falsidade desta regra. Mas, examinando essas ocasiões excepcionais, demonstra que exatamente então é útil e sábio conformar-se a este preceito. Digo tudo isto para melhor mos­trar o interesse evidente que têm esses trabalhos para os cristãos. Pareceria que devessem conhecer a missão de Bailou e ter ad­mitido ou refutado os princípios. Mas não é assim.

Mais ainda do que meu relacionamento com os quakers, a obra de Harrison, a Sociedade da Não-Resistência por ele fundada e sua declaração provaram-me que desde há muito foi constatada a derrogação do cristianismo do Estado à lei de Cristo sobre a questão de não se opor ao mal com a violên­cia e que muitas pessoas trabalharam e trabalham ainda para demonstrar esta evidência. Bailou confirmou-me ainda mais esta opinião. Mas o destino de Harrison e sobretudo o desti­no de Bailou, desconhecido por todos, apesar dos cinquenta anos de trabalho obstinado e incessante, convenceram-me de que existe uma espécie de conspiração do silêncio, tácita, mas formal, contra todas estas tentativas.

Bailou morreu em agosto de 1890, e um jornal america­no que traz um título cristão (Religio-philosophical Journal — August 23) dedicou-lhe um artigo necrológico.

Nessa oração fúnebre laudatória foi dito que Bailou era o chefe espiritual da comunidade, que pronunciou de oito a nove mil sermões, uniu em matrimónio mil casais e escreveu cerca de quinhentas artigos e estudos, mas nem uma só pala-

vra foi pronunciada a respeito da missão à qual dedicou sua vida. Nem a palavra não-resistência foi mencionada.

Como tudo o que pregam os quakers há duzentos anos, como a obra de Harrison, sua declaração, a fundação de sua sociedade e de sua revista, parece que também os trabalhos de Bailou nunca existiram.

Como exemplo admirável desta ignorância das obras que visam explicar a não-resistência e confundir aqueles que não reconhecem este mandamento, pode-se citar o destino do li­vro do tcheco Kheltchitsky, que só recentemente foi conheci­do e ainda não publicado.

Pouco depois da publicação da tradução alemã de meu li­vro, recebi uma carta de um professor da Universidade de Pra­ga, que me dava a conhecer a existência de uma obra inédita do tcheco Kheltchitsky, do século XV, intitulada^ rede da fé. Nessa obra, dizia-me o professor, Kheltchitsky expressou, há quatro séculos, a propósito do cristianismo verdadeiro ou falso, as ideias expressas em meu livro A minha religião. Acrescentava meu cor­respondente que a obra de Kheltchitsky estava prestes a ser pu­blicada pela primeira vez, em língua tcheca, nas memórias da Academia de Ciências de Pittsburg. Não conseguindo obter esta obra, procurei tudo o que era sabido a respeito de Kheltchitsky e recolhi algumas informações em um livro alemão, que me foi aconselhado pelo mesmo professor de Praga, a História da li­teratura tcheca, de Pypine. Eis o que diz este último:

A rede da fé é a doutrina do Cristo que deve tirar o homem das obscuras profundezas do oceano da vida e de suas mentiras. A verdadeira fé está na crença das palavras de Deus, mas houve um tempo em que os homens consideravam a verdadeira fé uma heresia. É por este motivo que a razão deve mostrar em que con­siste a verdade, se alguém a ignora. A noite a ocultou dos homens. Estes não mais reconhecem a verdadeira lei do Cristo.

Para explicar esta lei, Kheltchitsky lembra a organização pri­mitiva da sociedade cristã, organização que hoje seria, diz ele, con­siderada pela igreja romana como uma terrível heresia.

Esta igreja primitiva foi o ideal da organização social basea­da na liberdade, na igualdade e na fraternidade, que são até ho­je, segundo Kheltchitsky, os fundamentos do cristianismo. Se a sociedade voltasse à sua doutrina pura, a existência dos reis e dos papas tornar-se-ia inútil: a lei única do amor bastaria para a or­dem social.

Historicamente, Kheltchitsky faz começar a decadência do cristianismo no tempo de Constantino Magno, que o papa Sil­vestre induziu a abraçar o cristianismo sem fazê-lo renunciar aos princípios e costumes pagãos. Constantino, por sua vez, deu ao papa a riqueza e o poder temporal. Desde aquele tempo os dois poderes reuniram seus esforços e visaram somente ao desenvolvi­mento de sua grandeza material.

Os doutores, os sábios e os padres não mais pensaram em outra coisa senão em subjugar o mundo e em armar os homens uns contra os outros, para a matança e o roubo. Eles fizeram desaparecer para sempre a doutrina evangélica da religião e da vida.

Kheltchitsky repele totalmente o direito da guerra e das execuções capitais; todo guerreiro, ainda que "cavalheiro", nada mais é do que um assassino e um bandido.

O mesmo é dito no livro alemão, que contém além disso algumas particularidades biográficas e muitas citações da cor­respondência de Kheltchitsky.

Ciente, então, em que consistia a doutrina de Kheltchitsky, esperei com ansiedade a publicação de A Rede da fé nas me­mórias da Academia. Mas, passou-se um ano, depois dois, e três, sem que a obra viesse a público. Só em 1888 soube que a edição, já iniciada, havia sido suspensa. Obtive as provas de tudo o que já havia sido composto e encontrei uma obra estupenda em cada parágrafo.

Essa obra foi muito bem resumida por Pypine. A ideia fundamental de Kheltchitsky é que o cristianismo, unindo-se ao poder sob Constantino e continuando a desenvolver-se nes­sas condições, corrompeu-se por completo e deixou de ser o cristianismo. O título de A Rede da fé foi dado por Kheltchitsky a seu livro porque, havendo usado como epígrafe o versículo do Evangelho que conclamava os discípulos a se tornarem pes­cadores de homens, ele dá sequência a esse paralelo e diz: "Cristo, por meio de seus discípulos, envolveu o mundo in­teiro na 'Rede da fé'; mas os peixes grandes, tendo rasgado as malhas da rede, escaparam, e pelo buraco que fizeram pas-

saram também os peixes pequenos, de modo que a rede ficou quase vazia."

Os peixes grandes que rasgaram a rede são os governan­tes: imperadores, papas, reis, que, sem abandonar o poder, aceitaram não o cristianismo, mas sua aparência.

Kheltchitsky ensina a doutrina que foi e é até hoje prega­da pelos "não-resistentes", pelos menonitas, pelos quakers e, no tempo antigo, pelos bogomilos, pelos paulicianos e por tan­tos outros. Ele ensina que o cristianismo, que exige de seus adeptos a resignação, a submissão, a doçura, o perdão das ofensas, que se ofereça a face direita àquele que bateu na es­querda e o amor aos inimigos, não pode se conciliar com a violência, a condição essencial do poder. *»* O cristão, segundo Kheltchitsky, não só não pode ser co­mandante ou soldado, mas não pode sequer fazer parte de qual­quer administração; não pode ser comerciante nem proprietário de terras: não pode ser senão um artesão ou agricultor.

Esse livro é uma das raras obras que escaparam aos autos-de-fé, entre as que fustigaram o cristianismo oficial, e é isto que o torna tão interessante.

Mas, além de seu interesse, esse livro, de qualquer ponto de vista que o examinemos, é um dos mais notáveis produtos do pensamento, tanto pela profundidade das opiniões, como pela extraordinária energia e pela beleza da linguagem popu­lar na qual é escrito. E, no entanto, esse livro permanece co­mo manuscrito há mais de quatro séculos e continua a ser ignorado por todos, exceto pelos especialistas.

Seria de esperar-se que esse tipo de obra — a dos qua­kers, de Harrison, de Bailou, de Kheltchitsky — que afirmam e demonstram, tomando por base o Evangelho, que o mundo entende mal a doutrina do Cristo, provocasse o interesse, a agitação, o murmúrio, as discussões, tanto entre os pastores quanto entre as ovelhas. Referindo-se à própria essência da doutrina cristã, essas obras deveriam ser examinadas e reco­nhecidas como justas, ou então refutadas e rechaçadas. Mas isto não acontece.

O mesmo fato se repete em relação a todas essas obras. Pessoas com as mais diversas opiniões, tanto os fiéis como — e isto é surpreendente — os livres-pensadores, todos parecem haver-se passado uma palavra de ordem de silenciar a seu res­peito, e tudo aquilo que os homens fazem para explicar o ver­dadeiro sentido da doutrina do Cristo permanece oculto ou esquecido.

Entretanto, ainda mais surpreendente é a obscuridade na qual permaneceram duas obras, de cuja existência só tomei conhecimento quando da publicação de meu livro. São elas a obra de Dymond, On War (Sobre a guerra), publicada pela primeira vez em Londres em 1824, e a obra de Daniel Musser, Sobre a não-resistência, escrita em 1864. É verdadeiramente estranho que estas obras tenham permanecido desconhecidas, porque, sem falar de seu valor, tratam tanto de teoria da não-resistência, quanto de sua aplicação prática na vida e do cris­tianismo em suas relações com o serviço militar; o que, hoje, é sobremaneira importante devido ao serviço militar obri­gatório.

Perguntar-se-á, talvez, qual deva ser a atitude daquele cuja religião é inconciliável com a guerra, mas de quem o governo exige o serviço militar?

Esta pergunta parece essencial, e o serviço militar obri­gatório confere à resposta uma importância especial. Todos ou quase todos os homens cristãos e todos os homens adultos são chamados às armas. Como pode então um homem, na qua­lidade de cristão, responder a essa exigência? Eis o que res­ponde Dymond:

Seu dever é recusar, com doçura, mas firmemente, o serviço militar

CertoS homens, sem raciocínio bem definido, concluem, não se sabe bem de que maneira, que a responsabilidade pelas medidas governamentais cabe inteiramente àqueles que governam, isto é, que os governantes e os reis decidam o que é bem e o que é mal para seus súditos, e que o dever destes é apenas o de obede­cer. Creio que este modo de pensar nada faz senão ofuscar a cons-, ciência. "Não posso participar dos conselhos do governo, portanto não sou responsável por seus delitos." É verdade que não somos responsáveis pelos erros dos governantes, mas somos responsáveis pelos nossos erros, e os cometidos por nossos governantes transformam-se em nossos se, sabendo que são erros, participamos de sua execução. Aqueles que acreditam que seu dever é obedecer ao governo e que a responsabilidade dos delitos que cometem recai inteiramente sobre o soberano estão bastante enganados.

Alguns dizem: ''Submetamos nossos atos à vontade alheia e estes atos não podem ser maus ou bons. Em nossos atos não pode haver o mérito de uma boa ação, nem a responsabilidade de uma má ação, já que são alheios à nossa vontade."

Devemos notar que estas mesmas ideias são desenvolvidas nas instruções dadas aos soldados e que devem por eles ser decora­das. Nelas é dito que somente o comandante será responsável pe­las consequências de suas ordens.

Mas isto não é verdade. O homem não pode fugir da respon­sabilidade dos atos que comete. Eis por que: Se o comandante ordena matar o filho do vosso vizinho, matar vosso pai, vossa mãe, obedecer-lhe-eis? E, se não lhe obedecerdes, todos os racio­cínios caem por terra, porque, se há caso em que podeis não obe­decer, onde encontrareis o limite até o qual deveis fazê-lo? Não existe para vós outro limite senào aquele estabelecido pelo cris­tianismo; e respeitá-lo é coisa, aojjiesrno tempo, sabiá e fácil.

Portanto, acreditamos que o dever de cada homem que con­sidere a guerra como inconciliável com sua religião é recusar, suave mas firmemente, o serviço militar. Aqueles que assim agirem recordar-se-ao que cumprem um grande dever. De sua fidelidade à religião depende (tanto quanto isto pode depender dos homens) o destino da paz da humanidade. Professem e defendam sua con­vicção, não apenas com palavras mas, se necessário, com sofri­mento. Se acreditais que o Cristo tenha condenado a matança, não atendais aos raciocínios nem às ordens dos homens que vos ordenam nela tomar parte.

Com essa firme recusa a participar da violência, merecereis a bênção daqueles que escutam e seguem essas ordens, e chegará um dia em que o mundo vos louvará como artífices da regenera­ção humana.

O livro de Musser tem o título: Non-resistance asserted, ou Kingdom of Christ and kingdom of this world separated, 1864 (Afirmação da não-resistência, ou Separação do reino de Deus do reino terrestre).

Esse livro foi escrito por ocasião da Guerra de Secessão, quando o governo americano impôs o serviço militar a todos os cidadãos. Isto é também importante, na atualidade, pelos assuntos que aborda em relação à recusa ao serviço militar. No prefácio, diz o autor:

Sabe-se que, nos Estados Unidos, muitos negam a necessi­dade da guerra. Estes são chamados os cristãos não-resistentes> ou defenceless (sem defesa). Recusam-se a defender o próprio país, a usar armas e a combater contra os inimigos a pedido do gover­no. Até pouco tempo esta razão religiosa foi respeitada pelo go­verno, e aqueles que a invocaram eram liberados do serviço militar. Mas, no início da Guerra de Secessão, a opinião pública indignou-se com essa situação. É natural que os cidadãos que, para a defesa de sua pátria, consideravam um dever submeter-se às durezas e aos perigos da vida militar, tenham visto com desprezo aqueles que, evitando essas obrigações, usufruíam de há muito, em igual­dade de condições, da proteção e das vantagens do Estado que se recusavam a defender no momento de perigo. E é também evi­dente que essa situação trazia em si algo de monstruoso e inex­plicável.

Inúmeros oradores e escritores rebelaram-se contra a dou­trina da não-resistência e tentaram provar sua falsidade, seja por meio de raciocínio, seja por meio da Sagrada Escritura. Isto é ló­gico e, em muitos casos, esses escritores têm razão, quando se trata daqueles que, recusando-se às durezas do serviço militar, não re­cusam as vantagens do serviço social; mas eles não têm razão quan­do se trata do próprio princípio da não-resistência.

Antes de tudo, o autor estabelece para osjcnstãos o de­ver da não-resistência pelo fato de que o mandamento é, niti­damente e sem equívoco possível, expresso por Cristo: "Julgai vós mesmos se é justo obedecer ao homem ao invés de Deus", como reportaram Pedro e João. Portanto, todo homem que quer ser cristão tem apenas uma conduta a manter, a recusa, quando desejarem mandá-lo à guerra, pois Cristo disse: "Não resistireis ao mal com a violência".

Eis por que o autor considera a questão a princípio re­solvida. Quanto à outra questão, relativa às pessoas que, não recusando as vantagens a elas dadas por um governo baseado na violência, ainda assim se recusam ao serviço militar, o au­tor a estuda em detalhes e chega à conclusão de que, caso o cristão que segue as leis de Cristo se recuse a ir à guerra, não pode tomar parte alguma na administração governamental, no poder judiciário, nem no poder eletivo. Não pocie, sequer, recorrer à autoridade, à polícia ou à justiça, para regularizar seus problemas pessoais.

Mais adiante, o autor examina as relações existentes en­tre o Antigo e o Novo Testamentos e mostra o que significa o Estado para os não-cristãos. Expõe as objeções feitas à dou­trina da não-resistência e as rebate; enfim, assim conclui: “Os cristãos não precisam do governo e portanto não são obriga­dos a obedecer-lhe e menos ainda a dele participar."

Cristo escolheu no mundo seus discípulos, que não alme­jam as satisfações e a felicidade terrenas; almejam, sim, a vi­da eterna. O espírito no qual vivem os torna satisfeitos e felizes, qualquer que seja sua condição. "Se o mundo lhes é toleran­te, estão contentes; se não são deixados em paz, vão-se para outros países, porque são peregrinos na Terra e não se fixam em lugar algum. Acreditam que cabe aos mortos enterrar seus mortos; no que lhes diz respeito nada devem fazer senão ‘seguir seu mestre’."

Sem examinar se a definição do dever do cristão em rela­ção à guerra é ou não justa, definição estabelecida nos dois livros, não se pode negar a possibilidade prática nem a urgên­cia de uma solução para este problema.

Centenas de milhares de homens, os quakers, os meno-nitas os nossos dukhoborzos, os nossos molokanes e uma quan­tidade de pessoas que não pertencem a qualquer seita definida, consideram a violência, e, por conseguinte, o serviço militar, como inconciliáveis com o cristianismo. Eis por que a cada ano, entre nós, na Rússia, alguns recrutados recusam o servi­ço militar, fundamentando-se em sua convicção religiosa. E o que faz o governo? Libera-os, talvez? Obriga-os a marchar e os pune, em caso de recusa? Não...

Em 1818, o governo assim regulamentou. Eis um extrato de jornal, que quase ninguém conhece na Rússia, de Nicolau Nicolaiewic Muraviev-Karsky, suprimido pela censura:

2 de outubro de 1818. Tifilis.

Hoje pela manhã, o comandante disse-me que foram manda­dos recentemente para a Geórgia cinco camponeses da Comarca de Tàmbov. Esses homens foram recrutados pelo exército, mas se re­cusam a se submeterem ao serviço militar. Foram já muitas vezes punidos com o knut1 e com o bastão; mas abandonaram sem resistência seus corpos às mais cruéis torturas e à morte, para não se­rem soldados. "Deixai-nos ir, dizem, não nos façais mal e não o faremos a ninguém. Todos os homens são iguais e o tzar é um ho­mem como nós. Por que lhe pagaremos impostos? Por que iremos expor nossas vidas na guerra para matar homens que não nos fize­ram mal algum? Podereis cortar-nos em pedaços, mas não muda­reis nossas ideias. Não vestiremos a farda e não comeremos na gamela. Aquele que tiver piedade de nós dará esmola; nada temos que pertença ao tzar e dele nada queremos ter!' Eis o que dizem es­ses mujiques. Garantem que na Rússia muitos pensam da mesma forma. Foram conduzidos quatro vezes à frente do conselho de mi­nistros, e foi finalmente decidido submeter a questão ao soberano, que determinou, como medida de punição, mandá-los para a Geór­gia, ordenando ao general-comandante que lhe fizesse um relatório mensal sobre os progressos da conversão deles a ideias mais sadias.

1Espécie de chicote russo. (N. do E.)


Se conseguiu submetê-los? Não se sabe; e é também des­conhecido o próprio fato, a respeito do qual foi mantido o mais profundo segredo.

Assim agia o governo há 75 anos; assim continuou a agir na maior parte dos casos, sempre com muito cuidado ocultos do povo; assim age ainda hoje, exceto para com os alemães menonitas que vivem na Comarca de Kherson, cuja recusa ao serviço militar é respeitada e que servem somente no corpo da guarda florestal.

Nos mais recentes casos de recusa ao serviço militar funda­mentada em convicções religiosas, por homens que não perten­çam à seita dos menonitas, as autoridades assim regulamentam.

Antes de tudo, adotam-se todas as medidas coercitivas que hoje são usadas para "corrigir" o recalcitrante e convertê-lo às ideias "sadias", e é mantida secreta qualquer instrução referente a tal espécie de assunto. No que concerne a um destes refratários, sei que em 1884, em Moscou, dois meses após sua recusa, o caso sè havia transformado em volumoso dossiê, con­servado no mais profundo segredo nos arquivos do ministério.

Começa-se geralmente por mandar o recalcitrante aos pa­dres que, para sua vergonha, procuram sempre induzi-lo à sub­missão. Mas esta exortação, em nome de Cristo, a renegar Cristo, permanece, na maior parte das vezes, sem efeito.

Então, entregam-no áos guardas. Estes, em geral, não en­contrando em seu caso qualquer razão política, mandam-no embora. Então são os doutores, os médicos, que dele se ocu­pam e o mantêm em observação num manicômio.

Em todo este ir e vir, o infeliz, privado de liberdade, so­fre todo o tipo de humilhação e sofrimento, como um delin­quente condenado (o fato repetiu-se quatro vezes). Quando os médicos o deixam sair do manicômio, começa uma longa série de manobras ocultas e pérfidas que visam impedi-lo de partir, a fim de que não leve o mau exemplo aos que como ele pensam. Evita-se também deixá-lo entre os soldados, por­que estes poderiam aprender com ele que sua convocação pa­ra o exército está longe de ser o cumprimento das leis de Deus, como são levados a crer.

O mais cómodo, para o governo, seria simplesmente cortar a cabeça do refratário, surrá-lo até a morte ou suprimi-lo de qualquer outro modo, como outrora se fazia. Desgraçadamen te, é impossível condenar à morte abertamente um homem pelo motivo de ser ele fiel à doutrina que nós próprios professamos.

Por outro lado, é da mesma forma impossível deixar em paz um homem que se recusa a obedecer. Então, o governo esforça-se para obrigar, pelo sofrimento, este homem a rene­gar Cristo, ou suprime-o secretamente por um meio qualquer, a fim de que ninguém conheça seu suplício ou seu exemplo.

Todo o tipo de astúcia foi adotado para submeter os re­fratários a todos os tipos de tortura: Deportação para algum país distante; processo por indisciplina; prisão, incorporação aos batalhões de punição, onde se pudesse torturá-lo livremen­te, ou rotulavam-nos como loucos e trancafíavam-nos num manicômio. Assim, um foi deportado para Taschkent, ou se­ja, usaram o pretexto de mandá-lo para o exército de Tasch­kent; um outro foi mandado para Omsk; um terceiro foi julgado por rebelião e encarcerado; um quarto, enfim, foi tran­cado num manicômio.

Por toda a parte a mesma coisa! Não só o governo, mas também a maioria dos liberais, dos livres-pensadores, pare­cem haver adotado a palavra de ordem de desviar cuidadosa­mente a atenção de tudo aquilo que foi dito, escrito, feito e que ainda se faz para revelar a inconciliabilidade da violên­cia, em sua forma mais terrível, mais grosseira, mais clara — a do militarismo, isto é, a organização da morte — com a dou­trina, não direi cristã, mas simplesmente humanitária, que a sociedade pretende professar.

Assim, as informações que recebi sobre até que ponto o verdadeiro significado da doutrina de Cristo foi explicado por muito tempo, e cada vez mais se explica, e qual seja, em rela­ção a esta explicação e ao seguimento da doutrina, a atitude das classes superiores e dirigentes — não só na Rússia, mas também na Europa e na América — convenceram-me de que, nessas classes, existe uma hostilidade consciente contra o ver­dadeiro cristianismo, e essa hostilidade se traduz principalmente na conspiração do silêncio em que são envolvidas todas as suas manifestações.





































Capítulo II

Opiniões dos fiéis e dos livres-pensadores sobre a não-resistência ao mal com a violência


Os comentários gerados por meu livro produziram em mim esta mesma impressão. Adivinhei o desejo existente de se fazer silêncio sobre as ideias que procurei exprimir.

Ao ser pubjicado, como já esperava, este livro foi proi­bido. Segundo a lei, deveria ser queimado. Ao contrário, foi procurado pelas autoridades; uma enorme quantidade de có­pias e autobiografias foi difundida, além de diversas tradu­ções editadas no exterior.

E, logo depois, apareceram as críticas, não apenas reli­giosas, mas leigas, que o governo não só tolerou como enco­rajou. Deste modo, a impugnação de um livro que ninguém deveria conhecer foi discutida nas academias como tema para obras teológicas.

As críticas a meu livro, russas ou estrangeiras, dividem-se em duas categorias: as críticas religiosas de escritores que se consideram fiéis e as críticas dos livres-pensadores.

Começo pelas primeiras.

Acuso, em meu livro, os doutores da igreja de ensinarem uma doutrina claramente contrária aos preceitos de Cristo, so­bretudo, ao mandamento da não-resistência ao mal e de, com isto, retirarem da doutrina de Cristo toda sua importância.

Os teólogos admitiram o Sermão da Montanha, como tam­bém o mandamento da não-resistência ao mal com a violência, como revelações divinas. Por que então, já decididos a discutir meu livro, não respondem eles, antes de tudo, ao ponto princi­pal da acusação? Deveriam dizer francamente se reconhecem ou não como obrigatórios para os cristãos a doutrina do Ser­mão da Montanha e o^mandamento da não-resistência ao mal com a violência. Em lugar de responderem, como muitas vezes fazem, que por um lado não se pode por certo negar, mas que, por outro lado, não se pode por certo afirmar... tanto mais que... etc...., eles deveriam responder com clareza à pergunta que for­mulo em meu livro. Cristo pedia realmente a seus discípulos que aceitassem os preceitos do Sermão da Montanha? Então, pode ou não o cristão participar da justiça, seja como juiz, seja co­mo acusador, o que se constitui numa apelação à força? Pode ele ou não, permanecendo cristão, participar da administração, isto é, usar da força contra seus semelhantes? E enfim, pergun­ta mais importante, a que, com o serviço militar obrigatório, in­teressa hoje a todos: pode o cristão, contrariamente à indicação tão precisa de Cristo, servir o exército e assim cometer homicí­dio ou preparar-se para tal?

Estas perguntas são formuladas clara e francamente, e mereciam respostas da mesma forma claras e francas. Mas na­da semelhante se encontra em todas as críticas provocadas por meu livro, nem mesmo, aliás, em todas as que responderam aos escritos através dos quais se conclamam os doutores da igreja às verdadeiras prescrições do Evangelho, escritos dos quais a História está repleta, desde os tempos de Constantino.

Por ocasião de meu livro, censuraram-me pela interpretação errada de uma ou outra passagem da Bíblia; porque não reco­nheço a Trindade, a Redenção e a imortalidade da alma, comen­taram meu desvio. Comentaram-se muitas coisas, mas nada a respeito daquilo que, para todos os cristãos, se constitui na prin­cipal, na essencial pergunta de vida: como conciliar a doutrina claramente expressa pelo Senhor e contida no coração de cada um de nós — perdão, humildade, paciência, amor a todos, ami­gos ou inimigos — com a exigência da guerra e de suas violên­cias contra os nossos compatriotas e contra os estrangeiros?

As aparentes respostas dadas a esta pergunta podem ser agrupadas em cinco categorias.

Reuni aqui não apenas o que encontrei nas críticas a meu livro, mas também tudo o que foi escrito sobre este assunto no passado.

O primeiro e mais grosseiro género de respostas consiste na afirmação audaciosa de que a violência não está em con­tradição com a doutrina de Cristo, que é autorizada e até mes­mo ordenada pelo Antigo e Novo Testamentos. As respostas deste tipo provêm, em sua maioria, de pessoas que se encontram no ápice da hierarquia administrativa ou reli­giosa e que estão, por isto, absolutamente certas de que ninguém a elas ousaria contradizer e que, por outro lado, nem dariam ouvidos. Devido à embriaguez do poder, esses homens perde­ram totalmente a noção do que é o cristianismo (em cujo nome ocupam suas posições), e tudo o que nele se encontra de real­mente cristão lhes parece herético, enquanto, tudo aquilo que, ; na Sagrada Escritura, pode ser interpretado no sentido anticris-tão e pagão parece-lhes o verdadeiro sentido do cristianismo.

Em apoio à afirmação de que o cristianismo não está em contradição com a violência, eles invocam, com a maior au­dácia, as passagens mais equivocadas do Antigo e do Novo Testamentos, interpretando-as no sentido menos cristão co­mo, por exemplo, a execução de Ananias e Safira, a de Simão Mago etc. Citam tudo o que lhes parece justificar a violência, como a expulsão dos mercadores do templo e as palavras: "Mas eu vos digo que o Dia do Juízo será mais suportável para a Terra de Sodoma, que para vós" (Mt 11,24).

Consoante a opinião desses homens, um governo cristão não tem, em absoluto, o dever de deixar-se guiar pelo espírito da caridade, pelo perdão às ofensas e pelo amor aos inimigos.

É inútil refutar tal tese, pois aqueles que a defendem re­futam a si mesmos, ou melhor, separam-se de Cristo, imagi­nando seu próprio Cristo e seu próprio cristianismo, ao invés daquele por cujo nome existem a igreja e a posição por eles ocupada J Se todos soubessem que a igreja reconhece um Cristo vingador, implacável e guerreiro, ninguém seria partidário des­sa igreja e ninguém defenderia suas doutrinas.

O segundo meio — um pouco menos grosseiro — consis­te em reconhecer que o Cristo ensinava, é verdade, a dar a face e o manto, e que esta é, realmente, uma elevada moral..., mas... uma vez que, sobre a terra, existe um grande número de malfeitores, é preciso mantê-los pela força, para que não se veja perecerem os bons e até mesmo o mundo inteiro. En­contrei pela primeira vez este argumento em São João Crisós­tomo e demonstro sua falsidade em meu livro A minha religião.

Este argumento não tem valor porque, se nos permitimos declarar, não importa quem, um malfeitor fora-da-lei, des­truímos toda a doutrina cristã segundo a qual somos todos iguais e irmãos, na qualidade de filhos de um só Pai Celeste. E mais, ainda que Deus houvesse permitido a violência con­tra os malfeitores, sendo impossível determinar de modo ab­solutamente certo a distinção entre o malfeitor e aquele que não é, aconteceria que os homens e a sociedade se considera­riam mutuamente malfeitores: coisa que hoje existe. Enfim, supondo que fosse possível distinguir com segurança um mal­feitor daquele que não é, não se poderia encarcerá-lo, torturá-lo e condená-lo à morte numa sociedade cristã, porque não ha­veria nela ninguém para cometer tais atos, sendo qualquer vio­lência proibida ao cristão.

O terceiro meio de responder — mais sutil que os prece­dentes — consiste na afirmação de que o preceito da não-resistência ao mal com a violência é certamente obrigatório para o cristão, mas somente enquanto o mal não ameaça senão a ele. Isto, porém, deixa de ser obrigatório quando o mal é dirigido contra seus semelhantes. Nesse caso, não só o cristão não deve se conformar ao preceito mas, ao contrário, deve opor-se à vio­lência com a violência. Esta afirmação é absolutamente arbi­trária e é impossível encontrar-lhe confirmação em toda a doutrina de Cristo. Esta interpretação faz mais do que restrin­gir o preceito: é sua negação absoluta. Se cada homem tem o direito de usar a violência para repelir um perigo que ameaça seu semelhante, muda a questão: não se trata mais de saber se a violência é proibida ou permitida, mas de saber qual a defi­nição do que pode representar perigo para outrem. E, se meu raciocínio particular pudesse decidir a questão, eu diria que não existe um só caso de violência que não possa ser explicado pe­lo perigo alheio. Queimaram e condenaram à morte bruxos; condenaram à morte aristrocatas e girondinos; condenaram à morte também seus inimigos, porque os que ocupavam o po­der consideravam-nos um perigo para a nação.

Se esta importante restrição, que aumenta a importância do preceito, tivesse estado na mente de Cristo, estaria formu­lada em algum lugar. Ela não se encontra nas prédicas nem na vida do Mestre. Mas ao contrário o que se vê é uma adver­tência contra tal restrição, tão falsa quanto sedutora. Isto res­salta, com especial clareza, do relato do raciocínio feito por Caifaz que justamente censura esta restrição. Ele reconhece que é injusto condenar Jesus, inocente, mas vê o perigo não para si, mas para todo o povo. Por isso ele diz: "É melhor que morra um só homem do que todo o povo." O mesmo en­sinamento sobressai ainda com mais nitidez das palavras di­tas a Pedro quando este tentou se opor à violência dirigida a Jesus (Mt 26,52). Pedro não se defendia a si mesmo, mas a seu Mestre divino e adorado. Mas Cristo proibiu-o, dizen­do: "Guarda tua espada no seu lugar, pois todos que pegam a espada pela espada morrerão."

Ademais, a violência para defender o semelhante de ou­tra violência nunca é justificada, porque não tendo sido ain­da cometido o mal que se quer impedir, é impossível que se possa adivinhar qual mal será maior, se aquele que se está pres­tes a cometer ou aquele que se quer impedir./Condenamos à morte um delinquente para dele livrar a sociedade, e na­da nos prova que esse delinquente não mudaria amanhã de conduta e que sua execução não seria uma crueldade inútil. Mandamos para a prisão um membro da sociedade, perigo­so a nosso ver, mas amanhã esse indivíduo poderia deixar de; ser perigoso e, então, sua prisão seria inútil./Vejo um bandi­do perseguir uma jovem. Tenho nas mãos um fuzil. Mato-o. Salvo a jovem; mas a morte ou a ferida do bandido é fato certo, enquanto o que teria acontecido com a jovem me é desconhe­cido. Que mal imenso deve resultar, e na realidade resulta, do direito reconhecido pelos homens de prevenir os delitos que poderiam ocorrer! Da Inquisição às bombas de dinamite, execuções capitais e torturas de dezenas de milhares de delinquen­tes ditos políticos são 99% das vezes fundamentadas neste ra­ciocínio.

A quarta categoria de respostas, ainda mais sutis, con­siste na afirmação de que o preceito da não-resistência ao mal com a violência, longe de ser negado, é, pelo contrário, for­malmente reconhecido como todos os outros; mas que um sig­nificado absoluto não lhe deve ser atribuído, como fazem os sectários.

Fazer dele uma condição sine qua non da vida cristã, à imitação de Harrison, Bailou, Dymond, dos menonitas, dos quakers e como fazem os irmãos morávios, os valdeses, os al-bigenses, os bogomilos, os paulicianos, é um sectarismo limi­tado. Este preceito não tem mais ou menos importância do que todos os outros, e o homem que infringe, devido a sua fraqueza, não importa qual mandamento, inclusive o da não-resistência, não deixa de ser cristão, se tem fé.

Esta astúcia é muito hábil e inúmeras pessoas, que desejam ser enganadas, a ela sucumbem sem dificuldade. Consiste is­to em transformar a negação consciente do preceito numa in-fração ocasional. Mas basta comparar a atitude dos ministros da igreja diante deste preceito e sua atitude frente àqueles que realmente o reconheçam para se convencer da diferença que fazem entre um e outros.

Eles sem dúvida reconhecem, por exemplo, o preceito con­tra a luxúria; assim, jamais admitem que a luxúria não seja um mal; nunca apontam uma ocorrência em que o preceito contra o adultério poderia ser infringido e sempre ensinam que devemos evitar as tentações da luxúria. Nada parecido em re­lação ao preceito da não-resistência. Todos os padres reconhe­cem casos onde este preceito pode ser violado, e assim ensinam. E não só ensinam a evitar as tentações das quais a primeira é o juramento, mas eles próprios o pronunciam. Em aconte­cimento algum aprovam a violação de qualquer outro man­damento; enquanto, em relação à não-resistência, professam abertamente que não há necessidade de seguir à risca esta in­terdição; que não é necessário a ela resignar-se sempre e que, aliás, existem circunstâncias, situações, que exigem justamente o contrário, isto é, nas quais se deve julgar, fazer guerra, con­denar à morte. De modo que, quando tratam do preceito da não-resistência, o mais comum é que ensinem como não se deve conformar com ele. A observância deste preceito é, dizem eles, muito difícil; é este o apanágio da perfeição. Como não seria difícil observá-lo, na realidade, se sua violação, longe de ser reprovada, é, ao contrário, encorajada, visto que são aberta­mente abençoados os tribunais, as prisões, os canhões, os fu­zis, o exército e as batalhas? Não é, então, verdade que este mandamento seja, como os outros, reconhecido pelos minis­tros da igreja.

Estes não o reconhecem, simplesmente, por não ousar admiti-lo e procuram dissimular este ponto de vista.

Tal é a quarta maneira de reagir.

O quinto modo, o mais hábil, o mais adotado e o mais forte, consiste em evitar responder, fingindo considerar esta questão como já resolvida de há muito tempo e da maneira mais clara e mais satisfatória, de tal forma que nela não se deva mais falar ./Esta resposta é adotada por todos os escrito­res religiosos demasiado instruídos para desconhecerem as leis da lógica. Sabendo que é impossível explicar a contradição exis­tente entre a doutrina de Cristo, que nós, e toda a nossa clas­se social, professamos por palavras, e que, falando a respeito, só se consegue torná-la mais evidente, eles contornam a difi­culdade com maior ou menor habilidade, simulando acredi­tar que a questão da conciliação da doutrina cristã com a violência já foi resolvida e absolutamente não existe.1

lO mundo inteiro julga com segurança.


'Conheço um só estudo — não uma crítica no sentido exato da palavra — que tra­ta do mesmo assunto, tem como alvo o meu livro e se afasta um tanto dessa defini­ção geral. É o opúsculo de Trostsky: O Sermão da Montanha (Kazan). O autor reconhece que o preceito da não-resistência ao mal com a violência quer dizer exata-mente isto, como também o preceito sobre o juramento. Ele não nega, como os ou­tros, o significado da doutrina de Cristo; infelizmente, ele não tira deste reconhecimento as deduções inevitáveis que daí derivam e aparecem, de forma naturalíssima, quan­do, como ele, temos em vista a doutrina de Cristo. Se não devemos opor-nos ao mal com a violência, nem prestar juramento, cada um deve se perguntar: "E o serviço militar? E o juramento?'* — E é exatamente a estas perguntas que o autor não res­ponde. Ora, é preciso responder a essas perguntas, ou, se não se pode, evite-se pro­vocar tais perguntas.

A maior parte dos críticos religiosos que se ocuparam do meu livro adotou este argumento. Poderia citar dezenas des­sas apreciações nas quais, sem exceção, a mesma coisa é sem­pre repetida. Fala-se de tudo, menos do assunto principal do livro. Como exemplo característico deste tipo de crítica, cita­rei o artigo do célebre e arguto escritor e pregador inglês Far-rar, grande mestre, como todos os teólogos sábios, da arte de subterfúgios e reticências. Este artigo foi publicado na revista americana Fórum do mês de outubro de 1888.

Depois de conscienciosa e rapidamente resumir meu li­vro, diz Farrar:

Tolstoi chegou à conclusão de que o mundo foi grosseira­mente enganado quando se assegurou aos homens que a doutrina de Cristo de não resistir ao mal com o mal é conciliável com a guerra, com os tribunais, com as execuções capitais, com o di­vórcio, com o juramento, com o patriotismo e em geral com a maior parte das instituições sociais e políticas. Ele acredita, hoje, que o reino de Cristo existirá quando os homens seguirem os cin­co mandamentos de Cristo, ou seja: 1 — Viver em paz com to­dos; 2 — Levar uma vida pura; 3 — Não jurar; 4 — Nunca resistir ao mal; 5 — Abandonar qualquer fronteira entre as nações.

Tolstoi nega a origem divina do Antigo Testamento, das Epís­tolas e de todos os dogmas da igreja, como a Trindade, a Reden­ção, a descida do Espírito Santo e a ordenação, e não reconhece senão as palavras e os preceitos de Cristo.

Mas é então acertada tal interpretação da doutrina de Cris­to? São os homens obrigados, e como ensina Tolstoi, a observar os cinco mandamentos de Cristo?

Diante desta pergunta essencial, a única que levou o au­tor a escrever o artigo sobre meu livro, que podemos esperar? Que ele nos diga que esta interpretação da doutrina de Cristo é justa e que é preciso a ela obedecer, ou então que é inexata, e que ele assim prove e nos dê uma explicação mais acertada para as palavras que compreendo tão mal? Nada disto. Far­rar restringe-se a exprimir a ''convicção" de que Tolstoi, ain­da que guiado pela mais nobre sinceridade, caiu no erro das interpretações restritas do significado do Evangelho e do pen­samento e da vontade de Cristo. Em que consiste este erro? Ele não explica, apenas diz:

É impossível, neste artigo, aprofundar-me nesta demons­tração, porque já ultrapassei o número de páginas que me foi fixado.

E conclui, com admirável tranquilidade de espírito:

Porém, se o leitor se sente atormentado pelo pensamento que deva, como cristão, seguindo o exemplo de Tolstoi, renunciar às condições habituais de sua vida e viver como um pedreiro, acalme-se e pense na máxima: Securus judicat orbis terrarum.

Salvo algumas exceções (prossegue ele) toda a cristandade, desde o tempo dos apóstolos até nossos dias, chegou à conclusão de que o objetivo de Cristo era dar aos homens um grande princí­pio, mas não destruir as bases das instituições de todas as socie­dades humanas, que se fundamentam na sanção divina e na necessidade. Se eu tivesse tido a missão de provar a impossibili­dade da doutrina do comunismo, que Tolstoi apoia sobre para­doxos divinos (s/c), que não podem ser interpretados senão sobre princípios históricos, de acordo com todos os métodos da doutri­na de Cristo — isto teria demandado um espaço maior do que aquele que tenho a minha disposição."

Que desgraça! Ele não tinha espaço! E que coisa estra­nha! Há 15 séculos ninguém tem espaço para provar que o Cristo, em quem acreditamos, não tenha dito o que disse. E çoder-se-ia entretanto tê-lo feito, caso se houvesse desejado. É verdade que não vale a pena provar o que todos sabem. Basta dizer: Securus judicat orbis terrarum.

Tal é, sem exceção, a argumentação de todos os crentes literatos que compreendem, por conseguinte, a falsidade de sua situação. Sua única tática consiste em se apoiar na autori­dade da igreja, em sua antiguidade e seu caráter sacro para intimidar o leitor e dissuadi-lo da ideia de ler o Evangelho e de estudar a fundo a questão. E a coisa funciona. Quem po­deria supor, de fato, que aquilo que os arquidiáconos, os bispos, os arcebispos, os santos sínodos e os papas repetem com tanta segurança e tanta solenidade, século após século, não é senão uma pérfida mentira, e que eles caluniam o Cristo com o objetivo de garantir para si mesmos as riquezas de que pre­cisam para levar uma vida agradável em prejuízo dos outros? Sua falsidade tornou-se hoje tão evidente que seu único meio de mantê-la é o de intimidar o público com sua audácia e de­senvoltura.

O mesmo ocorre há anos nos conselhos de revisão. Fren­te a uma mesa vêem-se sentados nos lugares de honra, sob o retrato do imperador, alguns velhos dignitários, todos cober­tos de condecorações, conversando livre e negligentemente, es­crevendo, ordenando, chamando. A seu lado, em batina de seda, uma grande cruz no peito, cabelos brancos caídos por sobre a estola, um venerável padre senta-se a uma estante so­bre a qual estão uma cruz de ouro e um Evangelho de ângulos dourados. Chamam Ivan Petrov. Um adolescente mal vesti­do, sujo, assustado, aproxima-se com o rosto descomposto, olhos irrequietos e febris e diz gaguejando, à meia-voz: "Eu... a lei... como cristão... não posso...*'

O que diz? —pergunta com impaciência o presidente piscando, segurando a orelha e levantando a cabeça do livro.

Fala em voz alta! — Grita o coronel cujos galões brilham.

Eu... eu... como cristão...

Por fim, entende-se que o jovem se recusa ao serviço mi­litar, porque é cristão.

Não diga asneiras. Abra os braços. Doutor, poderia medi-lo. Está bem?

Está bem.

Padre, faça-o prestar juramento.

Não somente ninguém está perturbado, mas nem sequer se dá atenção ao que balbucia aquele pobre adolescente as­sustado.

Todos têm algo a dizer, como se tivéssemos tempo para escutá-los. Restam ainda muitos recrutas a examinar!

O recrutado parece querer acrescentar algo.

Isto é contrário à lei de Cristo.

Sai, sai! Não precisamos de ti para saber o que está conforme à lei e o que não está. Sai! Vai-te embora! Padre, catequiza-o. Passemos a um outro: Vassili Nikitine!

E o jovem é conduzido para fora, todo trémulo.

E ninguém suspeita — nem os guardas, nem Vassili Ni­kitine, que é introduzido naquele momento, nem uma só pes­soa dentre as que assistiram a esta cena — que aquelas poucas palavras incoerentes, pronunciadas pelo adolescente e logo re­primidas, contêm a verdade, enquanto os solenes discursos dos funcionários e do padre, calmos e seguros, nada são senão men­tira e engano!

Os artigos de Farrar produzem a mesma impressão. O mesmo ocorre com todos os discursos retóricos, com trata­dos e livros que vêm a público tão logo a verdade apareça em algum lugar, para revelar a mentira imperante. Sem perda de tempo, escritores e oradores, verbosos ou hábeis, elegantes ou solenes, levantam e tratam de questões à margem do assunto, tendo por outro lado o cuidado de silenciar a respeito do te­ma em si.

É este o quinto método de controvérsia, o mais eficaz para ocultar a contradição em que se colocou o cristianismo ofi­cial, professando a doutrina de Cristo na teoria, mas negando-a na prática.

Aqueles que tentam se justificar pelo primeiro método, afirmando aberta e brutalmente que o Cristo tenha autoriza­do a violência, as guerras, as matanças, afastam-se conscien-temente da doutrina evangélica. Aqueles que se defendem pelo segundo, terceiro e quarto métodos emaranham-se em sua pró­pria contradição, e é fácil convencê-los da mentira, mas os úl­timos, que não raciocinam ou não se dignam raciocinar, que se escondem atrás de sua grandeza, que aparentam acreditar que todas estas questões tenham sido resolvidas de há muito, por eles e por outros, e não mais dão lugar a dúvidas, estes supostos impassíveis permanecerão serenos enquanto os ho­mens estiverem sob ação da sugestão hipnótica dos governos e da igreja. Assim foi, em relação a meu livro, a atitude dos teólogos, que professam a religião cristã.

Não poderiam ter tido outra. Eles estão presos pela con-

tradição em que se encontram — a fé na divindade do Mestre e a negação de suas palavras mais claras — contradições às quais se querem subtrair a qualquer custo.

Por conseguinte, não se poderia esperar deles uma argu­mentação independente sobre a própria essência da questão, sobre modificações das condições da existência que resulta­riam na aplicação da doutrina de Cristo à ordem atual. Eu esperava este tipo de raciocínio por parte dos críticos livres-pensadores que não estão presos à fé e podem julgar livremente; esperava ver os livres-pensadores considerarem Cristo não ape­nas como fundador de uma religião de salvação pessoal (co­mo entendem os partidários da igreja), mas também como um reformador que derruba as antigas bases da sociedade e cons­trói novas, reforma ainda não concluída, e cuja efetivação prossegue a cada dia.

Este conceito da doutrina de Cristo é o de meu livro. Pa­ra meu grande assombro, entre as inúmeras críticas por ele provocadas, não se encontrou uma única, russa ou estrangei­ra, que tenha tratado o tema sob este ponto de vista, isto é, considerando a doutrina de Cristo como uma doutrina filo­sófica, moral e social (segundo a expressão dos doutores).

Os críticos leigos russos não viram em meu livro nada além do preceito da não-resistência ao mal, e (provavelmente pela comodidade da objeção) compreenderam este preceito no sen­tido absoluto, ou seja, como a interdição de qualquer luta con­tra o mal. Eles o atacaram com furor e demonstraram vi­toriosamente, durante vários anos, que a doutrina de Cristo é falsa uma vez que proíbe a oposição ao mal. Os críticos re­futaram esta suposta doutrina de Cristo com tanto maior su­cesso quanto sabiam muito bem, antecipadamente, que sua argumentação não seria relevada ou retificada, já que, havendo a censura proibido o livro, proibia da mesma forma qualquer artigo a seu favor.

Coisa notável! Aqui, onde não se pode dizer uma só pa­lavra sobre a Sagrada Escritura sem que se intrometa a censu­ra, este preceito de Cristo clara e formalmente expresso (Mt 5,39) foi, durante anos, falsamente interpretado, criticado, con­denado e ridicularizado em todas as revistas.

Os críticos leigos russos, ignorando, sem dúvida, o que foi feito a respeito do exame da questão de não-resistência ao mal com a violência, fazendo até mesmo, aliás, crer que eu houvesse inventado pessoalmente esta regra, atacavam-na, falsificavam-na e refutavam-na com o máximo ardor. Busca­vam argumentos, há longo tempo examinados e rejeitados sob todos os aspectos, para provar que o homem deve necessaria­mente defender (com violência) todos os fracos e todos os opri­midos, e que, portanto, a doutrina da não-resistência ao mal é uma doutrina imoral.

Para os críticos russos, toda a importância da pregação de Cristo aparece como um suposto impedimento voluntário de certa ação direta contra tudo o que ele considerava, então, como um mal. De tal modo que o princípio da não-resistência ao mal com a violência foi atacado por dois campos opostos: pelos conservadores, porque este princípio teria impedido a resistência ao mal causado pelos revolucionários, sua perse­guição e sua execução capital; e pelos revolucionários, por­que este princípio impedia a resistência ao mal causado pelos conservadores, e sua queda.

Os conservadores indignavam-se porque a doutrina da não-resistência impedia a enérgica repressão dos elementos re­volucionários que poderiam comprometer o bem-estar da na­ção; os revolucionários indignavam-se porque esta doutri­na os impedia de derrubar os conservadores que comprome­tiam o bem-estar da nação. É notável que os revolucioná­rios atacassem o princípio da não-resistência ao mal com a vio­lência, que é também o mais terrível, o mais perigoso para qualquer despotismo, pois, desde que o mundo existe, todas as violências — da Inquisição à fortaleza de Schlússelburg1 — fundamentaram-se e fundamentam-se ainda no princípio contrário.

1 Prisão para condenados políticos. (N. do E.)


Ademais, os críticos objetavam ainda que a aplicação do preceito da não-resistência à vida prática afastaria a humani­dade do caminho da civilização, por ela seguida.

Ora, o caminho da civilização seguido pelos povos europeus é, em sua opinião, precisamente aquele que toda a hu­manidade deve sempre seguir.

Tal é o caráter principal das críticas russas.

As críticas estrangeiras eram concebidas com o mesmo espírito, mas diferiam bastante nas objeções. Estas se diferen­ciavam das críticas russas não só pelo sentido íntimo, mas tam­bém por mais urbanidade e menos paixão na forma.

Falando, a propósito de meu livro, da doutrina evangéli­ca em geral, tal como é estabelecida no Sermão da Montanha, os críticos estrangeiros afirmam que esta doutrina não é, pa­ra dizer a verdade, a do cristianismo (que, em suas opiniões, é representado pelo catolicismo ou pelo protestantismo), mas apenas uma série de encantadoras utopias, mas não práticas do encantador doutor (charmant docteuf), como dizia Renan, admissíveis para os habitantes meio selvagens que viviam na Galiléia, há 1.800 anos, ou então para os meio selvagens rus­sos — Sutaiev, Bondarev e o místico Tolstoi — mas absoluta­mente não aplicáveis às sociedades europeias possuidoras de grande cultura.

Os críticos estrangeiros leigos fizeram-me sentir, de ma­neira bastante delicada e, sem me ofender, que eu não pode­ria supor a humanidade capaz de conformar-se com a ingénua doutrina do Sermão da Montanha, senão graças a minha fal­ta de saber, a minha ignorância da história e de todas as vãs tentativas feitas no passado para pôr em prática na vida os princípios desta doutrina.

Fizeram-me entender que desconheço o alto grau de civi­lização a que chegaram hoje as nações europeias, com os ca­nhões Krupp, com a pólvora sem fumaça, com a colonização da África, com a administração da Irlanda, com o parlamen­to, com o jornalismo, com as greves, com as constituições, com a torre Eiffel.

Assim escreveram o senhor de Vogue, o senhor Leroy-Beaulieu, Mathieu Arnold; assim escreveram os americanos Savadje, Ingersol — o popular livre-pensador e orador ame­ricano — e tantos outros.

"A doutrina de Cristo não é praticável porque não cor­responde a nosso .século industrial", dizia ingenuamente Ingersol, exprimindo assim, com muita franqueza e clareza, a opinião das pessoas cultas e refinadas sobre a doutrina de Cris­to. Ela não é prática em nosso século industrial! Como se a ordem de nosso século industrial, tal qual existe, fosse sagra­da e não pudesse ser modificada! Seria como se bêbados res­pondessem, ao conselho de se tornarem mais sóbrios, que este conselho não teria cabimento devido a seu estado de em­briaguez.

As opiniões de todos os críticos, russos ou estrangeiros, apesar das diferenças de tom e forma, conduzem, em subs­tância, ao mesmo estranho mal-entendido, ou seja: que a dou­trina de Cristo, da qual um dos princípios é a não-resistência ao mal com a violência, não nos é possível, pois obrigar-nos-ia a modificar toda nossa vida.

A doutrina de Cristo não é possível porque, se fosse se­guida, nosso modo de viver não poderia continuar. Em ou­tras palavras, se tivéssemos começado a viver bem como nos ensina Cristo, não teríamos podido continuar a viver mal co­mo fazemos e como nos habituamos. Quanto à questão da não-resistência ao mal, ela não só não pode ser discutida, como o simples fato de tal prescrição no Evangelho é já prova sufi­ciente da impossibilidade de toda a doutrina.

Parece contudo necessário dar alguma solução a esta ques­tão, porque ela é a base de toda nossa ordem social.

Nisto consiste a dificuldade. Como resolver o antagonis­mo entre pessoas, algumas das quais consideram um mal aquilo que outras consideram um bem e vice-versa?

Porque declarar como mal o que assim considero, ape­sar da afirmação de meu adversário, que declara ser isto um bem, não é uma resposta. Não podem existir senão duas solu­ções: ou encontrar um critério verdadeiro, indiscutível, do que se chama mal, ou não resistir ao mal com o mal.

A primeira solução foi tentada no princípio dos tempos históricos e, como sabemos, não deu qualquer resultado sa­tisfatório. A segunda solução é não resistir com o mal ao que classificamos como sendo o mal, até que tenhamos encontra­do um critério certo: e isto foi o que nos ensinou Cristo.

Pode-se considerar que esta solução não seja boa, pode-se substituí-la por outra melhor, dando um critério que deter­mina para todos o que é o mal. Pode-se achar simplesmente inúteis estas questões, como fazem os povos selvagens; mas não se pode, como fazem os críticos que tratam do estudo da doutrina evangélica, aparentar acreditar que essas questões não existem ou que já tenham sido resolvidas pelo direito reconhe­cido a certos homens ou a certas classes de homens (sobretu­do se delas fazemos parte) de definirem o mal e de a ele resistirem com a violência. Tal atribuição, sabemos todos, nada resolve, pois sempre se encontram homens que se negam a re­conhecer este direito a outros homens.

Os críticos leigos na doutrina cristã ou nada entendem da questão, ou fundamentam seus argumentos numa definição arbitrária do mal, definição que a eles parece indiscutível. De tal modo que os estudos sobre meu livro, leigos ou religiosos, mostraram-me simplesmente que a maior parte dos homens não compreende não só a palavra de Cristo, mas sequer as questões às quais ela corresponde.

















Capítulo III

O cristianismo malcompreendido pelos fiéis


Assim, as informações que recebi após a publicação de meu livro, tanto sobre o modo de compreender a doutrina de Cristo em seu verdadeiro significado, de uma minoria de pen­sadores, quanto sobre as críticas religiosas ou leigas por ele provocadas e nas quais se nega a possibilidade de compreen­der a doutrina de Cristo em seu significado literal, conven­ceram-me de que, enquanto para a minoria esta doutrina, longe de deixar de ser compreensível, tornava-se cada vez mais cla­ra, para a maioria seu significado se tornava sempre mais obs­curo. Esta obscuridade chegou a tal ponto que os homens não mais compreendem as noções mais simples, expressas no Evan­gelho com as mais simples palavras.

Hoje, tendo a luz da doutrina de Cristo penetrado até os ângulos recônditos da consciência humana, conforme disse Ele, grita-se de cima dos telhados o que ele dizia ao pé do ouvido; quando esta doutrina se mescla a todas as manifestações da vida doméstica, económica, social, política e internacional, se­ria inexplicável que permanecesse incompreendida se para tanto não houvesse causas especiais.

Uma destas causas é que tanto fiéis como ateus estão fir­memente convencidos de que compreenderam, há muito tem­po, tão completa, positiva e definitivamente a doutrina evangélica, que não é possível atribuir-lhe um significado diverso daquele que lhe é dado. E sua interpretação errónea é fortale­cida pela antiguidade da tradição.

O rio mais copioso não pode acrescentar uma gota d*água a um vaso já cheio.

Pode-se explicar ao homem mais ignorante as coisas mais abstratas, se ele delas ainda não tem noção alguma; mas não se pode explicar a coisa mais simples ao homem mais inteli­gente, se ele está firmemente convencido de saber muito bem o que se lhe quer ensinar.

A doutrina de Cristo apresenta-se aos homens de nosso tempo como uma doutrina perfeitamente conhecida desde há muito em seus mínimos detalhes, e que não pode ser compreen­dida de modo diverso do que o é atualmente.

O cristianismo é, assim, para os fiéis, uma revelação so­brenatural, milagrosa, de tudo o que é dito no Credo. Para os livres-pensadores é uma manifestação esgotada do desejo que têm os homens de crer no sobrenatural, um fenómeno his­tórico que encontrou sua expressão definitiva no catolicismo, na ortodoxia, no protestantismo, e que para nós não mais pos­sui qualquer significado prático.

A importância da doutrina é ocultada dos fiéis da igreja e dos livres-pensadores da ciência.

Comecemos a falar dos primeiros.

Há 1.800 anos, em meio ao mundo romano, surge uma nova doutrina, estranha, nada semelhante a nenhuma das que a haviam precedido e atribuída a um homem, Cristo.

Esta doutrina era inteiramente nova (tanto na forma, quanto na substância) para o mundo judaico que a tinha vis­to nascer e sobretudo para o mundo romano, onde era prega­da e propagada.

Em meio às complicadíssimas regras religiosas do mun­do judaico — onde, segundo Isaías, havia regra sobre regra — e à legislação romana, levada a um alto grau de perfeição, surge uma nova doutrina que negava não apenas todas as di­vindades, como também todas as instituições humanas e suas necessidades. Em troca de todas as regras das antigas cren­ças, esta doutrina não oferecia senão um modelo de perfeição interna, de verdade e de amor na pessoa do Cristo e, como conseqüência desta perfeição interna, a perfeição externa, preconizada pelos profetas: o reino de Deus, no qual todos os homens, não mais sabendo odiar, serão unidos pelo amor, e no qual o leão estará frente ao cordeiro. Ao invés de amea­ças de castigo para as infrações das regras ditadas por anti­gas leis religiosas ou civis, ao invés da atração das recompensas por sua observância, esta doutrina só atraía por ser a verdade.

Se alguém quiser cumprir Sua vontade, saberá se mi­nha doutrina é de Deus ou se falo de mim mesmo" (Jo 7,17).

"Vós, porém, procurais matar-me, a mim que vos falei a verdade" (Jo 8,40), "e a verdade vos fará livres. Não deve­mos obedecer a Deus senão com a verdade. Toda a doutrina será revelada e compreendida pelo espírito da verdade. Façam o que Deus lhes manda e conhecerão a verdade" (Jo 8,36).

Nenhuma outra prova da doutrina foi apresentada além da verdade, a adequação da doutrina com a verdade.

Toda a doutrina consistia na busca da verdade e em sua observação, na efetivaçâo cada vez mais perfeita da verdade e do desejo de dela se aproximar, sempre mais, na vida prática.

Segundo esta doutrina, não é por meio de práticas que o homem se torna justo. Os corações elevam-se à perfeição interna através de Cristo, modelo de verdade, e a perfeição externa pela efetivaçâo do reino de Deus. O cumprimento da doutrina está no caminho da estrada indicada, na busca da perfeição interna pela imitação de Cristo, e da perfeição ex­terna graças ao estabelecimento do reino de Deus.

A maior ou menor felicidade do homem depende, segun­do esta doutrina, não do grau de perfeição que ele pode al­cançar, mas do seu caminho mais ou menos rápido para esta perfeição.

O ímpeto para a perfeição do publicano Zaqueu, da peca­dora, do ladrão na cruz é, segundo esta doutrina, uma felici­dade maior que a imóvel virtude do fariseu. A ovelha desgarrada é mais querida ao coração do pastor do que 99 ovelhas não des­garradas; o filho pródigo, a moeda perdida e reencontrada são mais caros a Deus do que tudo o que nunca foi perdido.

Cada situação, segundo esta doutrina, não é mais que uma etapa para o caminho da perfeição interna e externa realizá­vel. Eis por que ela não tem importância. A felicidade não consiste senão em aspirar sempre à perfeição; a pausa em qual­quer grau de perfeição é a pausa da felicidade.

"A mão esquerda ignora o que faz a direita." "O lavra-dor que toma do arado e olha para trás não é digno do reino dos céus." "Não vos alegreis se os demónios vos obedecem, procurai que vosso nome seja inscrito no céu." "Sede perfei­tos como vosso Pai Celeste." "Buscai o reino de Deus e sua verdade."

O cumprimento da doutrina não consiste senão no cami­nhar incessante em direção à posse da verdade a cada passo mais alta, de sua atuação cada vez maior no próprio ser com um amor sempre mais ardente e fora do próprio ser na atua­ção perfeita do reino de Deus.

É evidente que esta doutrina, nascida no meio judaico e pagão, não podia ser aceita pela maioria dos homens, acostu­mados a uma vida totalmente diversa daquela por ela exigida.

A doutrina não podia ser compreendida em todo seu sig­nificado nem mesmo por aqueles que haviam aceito, porque era contrária a todos os antigos conceitos de vida.

Somente após uma série de mal-entendidos, erros, expli­cações restritas, retificadas e completadas por muitas gerações, o princípio do cristianismo ficou mais claro aos homens.

O conceito evangélico influenciou àqueles do judaísmo e do paganismo, e, por sua vez, estas correntes deixaram sua mar­ca no cristianismo. Mas o conceito cristão, mais vivo, penetrava dia a dia, mais e mais no judaísmo e no paganismo agonizan­tes e aparecia cada vez mais puro, libertando-se dos maus ele­mentos a que era misturado. Os homens compreendiam melhor o sentido cristão, usavam-no sempre mais em suas vidas.

Mais envelhecia a humanidade, quanto mais claro via a doutrina de Cristo; por outro lado não pode ser diferente em qualquer doutrina social.

As sucessivas gerações corrigiam os erros das gerações pre­cedentes e aproximavam-se mais a cada dia do verdadeiro sen­tido da doutrina.

Assim foi desde os primeiros tempos do cristianismo. Des­de o princípio apareceram alguns homens que afirmavam ser seu modo de explicar a doutrina o único exato, e isto prova­ram por meio de fenómenos sobrenaturais que vinham con­firmar a exatidão de suas interpretações.

Essa é a razão principal de haver sido a doutrina, primei­ro, malcompreendida e, depois, desvirtuada.

Admitiu-se que a doutrina de Cristo foi transmitida aos homens não como todas as outras verdades, mas por um ca­minho especial, sobrenatural. De tal modo que é demonstra­da não por sua lógica e por seu acordo com as necessidades da vida humana, mas pelo caráter milagroso de sua transmissão.

Esta suposição, nascida do entendimento imperfeito da doutrina, teve como resultado a impossibilidade de ser com­preendida melhor.

Isto ocorreu desde os primeiros tempos, quando a dou­trina era interpretada de forma tão incompleta e várias vezes tão falsa, como vemos nos Evangelhos e nos Atos. Quanto menos era compreendida, tanto mais misteriosa e mais era ne­cessário dar provas exteriores de sua verdade. O preceito: "Não faças aos outros o que não queres que te seja feito" não pre­cisa ser demonstrado com a ajuda de milagres e não exige um ato de fé, porque é convincente por si mesmo e satisfaz simul­taneamente a inteligência e o instinto humanos, enquanto a divindade de Cristo precisava ser provada com milagres ab­solutamente incompreensíveis.

Quanto mais obscura era a noção da doutrina de Cristo, mais elementos milagrosos eram nela infiltrados; quanto mais nela se infiltrava o maravilhoso, tanto mais ela se afastava de seu sentido e se tornava obscura, quanto mais precisava afir­mar com força sua infalibilidade, tanto mais se tornava in­compreensível.

Desde os primeiros tempos, pode-se observar no Evan­gelho, nos Atos, nas Epístolas como a não-compreensão do sentido exato da doutrina fazia nascer a necessidade de pro­vas milagrosas. .

Isto teve início, segundo os livros dos Atos, na reunião

em que os Apóstolos examinaram, em Jerusalém, a questão do batismo dos não-circuncidados e daqueles que comiam car­nes sacrificadas.

A única maneira de expor a questão mostrava que aque­les que dela tratavam não compreendiam a doutrina de Cris­to, que exclui qualquer cerimonia exterior: abluções, puri­ficações, jejum, sábado. Lê-se textuamente no Evangelho: "Não é aquilo que entra na boca que macula, e sim o que sai do coração." Eis por que a questão do batismo dos não-circuncidados não pôde nascer senão entre homens que ama­vam o Mestre e sentiam a grandeza de Sua doutrina, mas que ainda não a compreendiam com clareza. Assim, uma confir­mação exterior de sua interpretação era para eles tão necessá­ria quanto essa interpretação era falsa. E para resolver esta questão que provava, assim como era colocada, quão incom­preendida era a doutrina, foram pronunciadas naquela assem­bleia as palavras terríveis e funestas:

"Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós..." (At 15,28).

Pela primeira vez os apóstolos afirmam, externamente, a exatidão de algumas de suas decisões, isto é, apoiando-se na milagrosa participação do Espírito Santo, ou seja, de Deus.

Mas a afirmação de que o Espírito Santo, isto é, Deus, tenha falado por meio dos apóstolos devia também ser pro­vada; e foi, então, dito que no dia de Pentecostes o Espírito Santo havia descido sob forma de línguas de fogo sobre aqueles que assim o afirmaram (na narrativa, a descida do Espírito Santo precede esta deliberação, mas os Atos foram escritos muito tempo depois). Mas era também preciso confirmar a descida do Espírito Santo para aqueles que não viram as lín­guas de fogo (ainda que seja incompreensível que uma língua de fogo acesa sobre a cabeça de um homem demonstre ser uma verdade absoluta aquilo que este homem está para dizer); e então, foi necessário recorrer a novos milagres: curas maravi­lhosas, ressurreições, mortes, enfim, todos os falsos milagres de que está cheio o livro dos Atos, e que não só não podem convencer ninguém da verdade da doutrina, mas que, ao con­trário, devem levantar dúvidas.

Este modo de afirmar a verdade tinha como conseqüência afastar a doutrina de seu sentido primitivo e torná-la tan­to mais incompreensível quanto mais se acumulavam as nar­rativas dos milagres. __

Foi o que aconteceu desde os primeiros tempos e conti­nuou crescendo sempre, chegando, em nossos tempos, aos dog­mas da transubstanciação e da infalibilidade do papa, dos bispos e da Escritura, isto é, até a exigência de uma fé cega, incompreensível até o absurdo, não em Deus, não em Cristo, nem mesmo na doutrina, mas em uma pessoa, como no cato­licismo, ou em várias pessoas, como na ortodoxia, ou num livro, como no protestantismo. Quanto mais se propagava o cristianismo, mais englobava um sem-número 4e pessoas não preparadas, e menos era compreendido.

Quanto mais se afirmava energicamente a infalibilidade da interpretação oficial, menos possível se tornava penetrar no verdadeiro sentido da doutrina. Já ao tempo de Constantino ela reduzia-se a uma síntese confirmada pelo poder secu­lar — síntese das discussões que ocorreram no concílio — o símbolo da fé, onde isto é dito: "Creio nisto... nisto... nisto, e finalmente numa igreja universal, sagrada e apostólica, ou seja, na infalibilidade das pessoas que se dizem a igreja."

De tal modo que tudo foi feito para o que o homem não creia mais nem em Deus, nem em Cristo tal como eles se reve­laram, mas somente no que a igreja ordena que se acredite.

Mas a igreja é sagrada. Mas a igreja foi fundada por Cris­to. Deus não podia deixar aos homens a liberdade de inter­pretar sua doutrina arbitrariamente; por isto ele instituiu a igreja. Todas estas máximas são a tal ponto falsas e privadas de fundamento que se tem vergonha de refutá-las.

Em lugar algum, aparece qualquer indício (exceto nas afir­mações da igreja) de que Deus ou Cristo tenha fundado algo que se assemelhe ao que os fiéis entendem pela palavra igreja. Existe, no Evangelho, uma indicação contrária à igreja como autoridade externa, indicação das mais claras e das mais evi­dentes de que não se deve chamar ninguém de Mestre ou Pai. Mas menção alguma é feita à instituição daquilo que os fiéis chamam de igreja.

A palavra igreja é usada duas vezes no Evangelho; uma vez no sentido de uma assembleia para resolver uma questão dúbia, outra vez junto a palavras obscuras sobre pedra, Pe­dro e as portas do inferno. Destas duas menções à palavra igre­ja, não havendo outro significado além da palavra assembleia, deduziu-se o que hoje entendemos pela palavra igreja. Mas Cristo não poderia absolutamente fundar a igreja, isto é, o que hoje entendemos por esta palavra, porque nada que se pos­sa assemelhar ao conceito atual de igreja, com sua afirmação de infalibilidade, encontra-se nas palavras de Cristo, nem no pensamento dos homens daqueles tempos. h^-^O simples fato de que aquilo que se formou a seguir te­nha sido chamado com uma palavra empregada por Cristo não permite afirmar que Cristo tenha fundado a única e verdadei­ra igreja^H^M*

Ademais, se ele realmente houvesse estabelecido uma ins­tituição como a igreja, sobre a qual são baseadas toda a dou­trina e toda a fé, tê-lo-ia feito em termos tão precisos quanto cristalinos, e teria cercado esta igreja única e verdadeira, ao invés de milagres usados em todas superstições, de sinais a tal ponto evidentes que dúvida alguma seria possível quanto a sua realidade. Mas nada parecido existe e, como de outras vezes, existem ainda hoje diferentes igrejas, cada uma delas inti­tulando-se única e verdadeira.

O catecismo católico diz: "A igreja é a Sociedade dos fiéis, estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo, espalhada por so­bre toda a terra e submissa à autoridade de pastores legítimos, principalmente o Nosso Santo Padre, o papa", entendendo-se por "pastores legítimos" uma instituição humana que tem por chefe seu papa e se compõe de determinadas pessoas liga­das entre si por uma determinada organização.

O catecismo ortodoxo diz: "A igreja é uma sociedade, fundada na Terra por Jesus Cristo, reunida num só todo por uma só doutrina e pelos sacramentos, sob a direção e sob a égide da hierarquia estabelecida por Deus", entendendo-se por "hierarquia estabelecida por Deus" precisamente a hierarquia grega, composta de tais ou tais pessoas que se encontram em tais ou tais lugares. „

O catecismo luterano diz: "A igreja é o santo cristianis-

mo ou a reunião de todos os fiéis sob o Cristo, seu chefe, e na qual o Espírito Santo, através do Evangelho e dos Sa­cramentos, oferece e comunica a saúde divina", dando a en­tender que a igreja católica abandonou o verdadeiro cami­nho, e que a verdadeira tradição é conservada pelo lutera-nismo.

Para os católicos, a igreja divina encarna-se na hierarquia grega e russa1; e para os luteranos, na reunião dos homens que reconhecem a Bíblia e o catecismo.

1A definição de igreja feita por Khomiakow, que goza de um certo crédito entre os russos, nada muda, se com ele reconhecemos que a única e verdadeira igreja é a or­todoxa. Khomiakow afirma que igreja é a reunião dos homens (sem distinção de pas­tores ou ovelhas) unidos no amor; que só aos homens unidos no amor é revelada a verdade (amemo-nos uns aos outros), e que esta igreja é aquela: primeiro, que re­conhece o símbolo de Nicéia, e segundo que, depois da separação das igrejas, não reconhece nem o papa nem os novos dogmas. Mas, depois, esta definição torna-se ainda mais difícil compreender, como quer Khomiakow, a igreja unida no amor, na igreja que reconhece o símbolo de Nicéia e a verdade pregada por Fócio.

De modo que a afirmação de Khomiakow, de que esta igreja unida no amor, portanto Santa, seja precisamente aquela constituída pela hierarquia grega, é ainda mais arbitrária do que a afirmação dos católicos e dos velhos ortodoxos. Admitindo-se o conceito de igreja, tal como nos foi dito por Khomiakow, tudo o que se pode dizer seria que se teria muito prazer em dela fazer parte. Mas não existe sinal algum do qual se possa deduzir se um homem dela faz ou não parte, porque um tal conceito não se pode traduzir por qualquer caráter externo.


Em geral, falando da origem do cristianismo, os homens pertencentes a uma das igrejas existentes empregam a palavra no singular, como se nunca houvesse existido e não exista se­não uma só igreja. Mas isto não é exato. A Igreja, instituição que afirma possuir a verdade indiscutível, não surgiu senão no momento em que não mais estava só, em que já existiam pelo menos duas. Os fiéis até concordavam, não foi necessá­rio que sua sociedade única se constituísse em igreja; somente quando estes homens se dividiram em partidos opostos, ne­gando-se mutuamente, cada partido sentiu a necessidade de afirmar sua ortodoxia, atribuindo-se a posse exclusiva da ver­dade. O conceito de uma igreja única foi consequência do fa­to de que cada um de seus participantes, em desacordo, declarando ser o outro cismático, reconheceu como infalível apenas sua própria igreja.

Se conhecemos a existência de uma igreja que no ano de 51 decidiu admitir os não-circuncidados, é porque havia ou­tra de judaizantes, que havia decidido não admiti-los.

Se hoje existe uma igreja católica, convencida de sua infalibilidade, é porque existem igrejas greco-russas, ortodoxas, protestantes, cada uma das quais afirma sua própria infalibi­lidade, negando, em consequência, as outras igrejas. Assim, a igreja universal não é senão uma palavra ilusória, sem qual­quer realidade.

Estas numerosas sociedades que afirmam, cada uma por conta própria, ser a igreja universal fundada por Cristo e se­rem as outras cismáticas e heréticas não existiram e realmente não existem a não ser como fenómenos históricos.

O catecismo das igrejas mais difundidas: católica, orto­doxa e protestante, assim afirma abertamente.

O catecismo católico: "Quem são os que estão fora da igreja?"

"Os infiéis, os hereges e os cismáticos."

Os cismáticos são aqueles que se chamam ortodoxos; os protestantes são reconhecidos como hereges. De modo que, segundo o catecismo católico, na igreja existem apenas ca­tólicos.

No catecismo chamado ortodoxo, lemos: "Sob o nome de igreja única de Cristo, entende-se somente a igreja ortodo­xa, que permanece em plena concordância com a igreja uni­versal. Quanto à igreja romana e outras confissões (aos lu­teranos e aos outros esse catecismo não dá nem mesmo o no­me de igreja), não podem ser compreendidas na igreja uni­versal, pois dividiram-se em si mesmas."

Segundo esta definição, os católicos e os protestantes es­tão fora da igreja, e só os ortodoxos dela fazem parte.

O catecismo luterano diz, por sua vez: "A verdadeira igre­ja é reconhecida pela palavra de Deus ensinada clara e pura­mente, sem intervenções humanas, e pelos sacramentos nela estabelecidos fielmente, a exemplo da doutrina de Cristo."

Segundo esta definição, todos aqueles que algo acrescen­taram à doutrina de Cristo e dos Apóstolos, como fizeram a igreja católica e a grega, estão fora da igreja e só os protes­tantes dela fazem parte. Os católicos afirmam que o Espírito Santo manifesta-se constantemente em sua hierarquia; os or­todoxos também o afirmam. Os arianos afirmaram-no (com o mesmo direito das igrejas que hoje reinam). Cada tipo de protestantes: os luteranos, a igreja reformada, os presbiteria­nos, os metodistas, os mórmons e os seguidores de Sweden-borg, afirmam também que o Espírito Santo só se manifesta entre eles.

Se os católicos afirmam que o Espírito Santo, no momento da separação das igrejas ariana e grega, abandonou estas igrejas cismáticas, e só permaneceu na única igreja verdadeira, com os mesmos direitos podem afirmar os protestantes das mais variadas correntes que, com a separação de sua igreja da igre­ja católica, o Espírito Santo abandonou esta última e passou para sua igreja. Aliás, assim fazem.

Cada igreja tem como base de sua fé a tradição ininter­rupta transmitida desde os tempos de Cristo e dos Apóstolos. De fato, cada confissão cristã proveniente de Cristo deveria necessariamente chegar à geração presente através de certas tradições. Mas isso não prova que estas tradições sejam indis­cutíveis e excluam todas as outras.

Cada galho da árvore vem da raiz sem interrupção, mas disto não se pode na verdade deduzir que cada ramo seja o único galho.

Cada igreja apresenta as mesmas provas de sua continui­dade na tradição, e os mesmos milagres em apoio a sua ortodoxia. Assim, a definição exata e absoluta do que é a igreja só pode ser uma: a igreja é uma reunião de homens que afirmam serem os únicos de posse da verdade.

Estas sociedades, transformadas a seguir com a contri­buição do poder civil em potentes instituições, foram o obs­táculo principal à propagação da verdadeira inteligência da doutrina de Cristo.

Não poderia ter sido diferente.

A característica principal da doutrina de Cristo, a que a distingue de todas as outras, é que aqueles que a aceitaram tendem sempre mais a compreendê-la e pô-la em prática; en­quanto a igreja afirma a inteligência definitiva da doutrina e seu cumprimento.

Por mais que nos possa parecer estranho, a nós que fo­mos educados na doutrina errónea da igreja como instituição cristã e no desprezo pela heresia e, exatamente, o que foi cha­mado de heresia, constituía-se o caminhar pelo caminho cer­to, isto é, no verdadeiro cristianismo, o que não deixava de ser verdadeiro senão quando este caminhar se interrompia e se fixava na heresia, como a igreja em suas formas imóveis.

O que é, de fato, a heresia? Leiam todas as obras teoló­gicas que tratam deste assunto (que é o primeiro a ser defini­do, porque cada teologia fala da doutrina verdadeira em meio a doutrinas erróneas, isto é, heréticas) e não encontrarão em lugar algum nem mesmo uma aparência de definição de heresia.

A argumentação sobre esse tema do erudito historiador do cristianismo E. de Pressensé, em sua História do Dogma, com a epígrafe: Ubi Christus, ibi Ecclesia (Paris, 1869)1, é um exemplo desta total ausência de qualquer definição da pala­vra heresia. Eis o que ele diz no prefácio desta obra:

1Onde está o Cristo está 3 Igreja. (N. do E.)


Sei que nos é contestado o direito de qualificar assim (isto é, de chamar heresia) as tendências que tão vivamente foram com­batidas pelos primeiros padres. A própria definição de heresia pa­rece um atentado à liberdade de consciência e de pensamento. Não podemos participar deste escrúpulo, porque nem mesmo ele nos levaria a tirar do cristianismo qualquer caráter especial...

E, após haver dito que depois de Constantino a igreja real­mente abusava de seu poder de considerar como hereges aqueles que com ela não concordavam, e que os perseguia, diz ele, fazendo um breve histórico dos primeiros tempos:

A igreja é uma livre associação; separar-se dela só pode ser vantajoso. A polémica contra o erro não tem outros pretextos se­não o pensamento e o sentimento. Um tipo doutrinal uniforme não foi ainda elaborado; as divergências secundárias produzem-se no Oriente e no Ocidente com total liberdade; a teologia não está de modo algum ligada a fórmulas invariáveis. Se no seio desta diversidade aparece um fundo comum de crenças, não temos nós o direito de ver, não um sistema formulado e composto por re­presentantes de uma autoridade de escola, mas a própria fé, em seu mais seguro instinto e em sua manifestação mais espontânea? Se esta mesma unanimidade que se revela nas crenças essenciais aí está para rechaçar tais ou tais tendências, não temos nós o di­reito de concluir que estas tendências estavam em flagrante desa­cordo com os princípios fundamentais do cristianismo? Não se transformará esta presunção em certeza se reconhecermos na dou­trina universalmente rechaçada pela igreja os traços característi­cos de uma religião do passado? Para dizer que o gnosticismo e o ebionismo são as formas legítimas do pensamento cristão, é pre­ciso dizer audaciosamente que não existe pensamento cristão nem caráter específico onde se possa reconhecê-lo. Com o pretexto de ampliá-lo, diluem-no. Ninguém, nos tempos de Platão, teria ou­sado cobrir com seu nome uma doutrina que não tivesse dado ori­gem à teoria das ideias; e teriam provocado merecidos sarcasmos da Grécia querendo fazer de Epicuro ou de Zenão um discípulo da Academia. Reconhecemos então que, se existe uma religião ou uma doutrina que se chama cristianismo, essa doutrina pode ter suas heresias.

Toda a argumentação do autor diz, em resumo, que to­do raciocínio discordante dos dogmas professados em qual­quer tempo é uma heresia. Mas em uma época e em um lugar quaisquer, os homens certamente professavam algo, e esta cren­ça em algo, em algum lugar, em um tempo qualquer, não po­de ser o critério da verdade.

Cada pretensa heresia que não reconhece como verdadeiro senão o que ensina pode encontrar uma explicação na histó­ria da igreja, apoderar-se por conta própria de todos os argu­mentos de Pressensé e considerar a sua fé como o único e verdadeiro cristianismo: assim fizeram e fazem todas as here­sias. Tudo é reconhecido ao Ubi Christus, ibi Ecclesia, e o Cris­to está onde nós estamos.

A única definição de heresia (a palavra a i p e o i Ç sig­nifica parte) é o nome dado por uma reunião de homens a to­da argumentação que refuta uma parte da doutrina professada por esta sociedade. O significado mais especial dado com fre­quência à palavra heresia é o de uma opinião que derruba a dou­trina estabelecida pela igreja e sustentada pelo poder temporal.

Existe uma obra importante, notável, mas pouco conhe­cida, de Gottfried Arnold, Unpartheyische Kirchen undKetzer-Historie (História Imparcial das Igrejas e das Heresias) de 1699, que trata desse tema e demonstra a ilegitimidade, o arbítrio, o absurdo e a credulidade da palavra heresia no sentido de reprovação. Este livro é um ensaio de descrição histórica do cristianismo, sob a forma de história das heresias.

Na introdução, o autor coloca uma série de pontos: 1? — Dos que formam os hereges; 2? — Dos que se transfor­mam em hereges; 3? — Dos motivos de heresia; 4? — Dos modos de criar hereges; 5? — Do objetivo e das consequên­cias da fomentação da heresia. Cada um destes pontos pro­voca inúmeras perguntas às quais o autor responde com citações de teólogos célebres, deixando porém ao leitor o cui­dado de tirar a conclusão do conjunto de seu livro.

Como exemplo destas perguntas que contêm parte das res­postas, desejo citar as seguintes: No quarto ponto, relativo aos meios de criar hereges, encontra-se esta pergunta (a 7?): "To­da a história não nos demonstra, talvez, que os maiores faze­dores de hereges foram precisamente aqueles doutores a quem o Pai ocultou seus mistérios, isto é, os hipócritas, os fariseus e os juristas, ou seja, homens absolutamente privados de fé e de moral?*' Perguntas 20? e 21? : "Nos tempos corruptos do cristianismo, os hipócritas e os invejosos não rechaçaram talvez aqueles homens especialmente dotados por Deus, os quais, nos tempos do cristianismo puro, teriam sido altamen­te honrados?" "E, ao contrário, os homens que nos tempos da decadência do cristianismo elevaram-se acima dos outros e declararam-se propagadores do cristianismo puro não teriam sido, nos tempos dos apóstolos e dos discípulos do Cristo, re­conhecidos como hereges e cínicos anticristãos?"

Exprimindo entre outras coisas, nestas perguntas, a ideia de que a expressão verbal da fé, exigida pela igreja e da qual qualquer afastamento era considerado heresia, não pode nunca conter inteiramente o próprio conceito de fiel, e que, por con­sequência, esta exigência da expressão da fé por meio de de­terminadas palavras provocava heresias, ele diz (pergunta 31?): "E se os atos e pensamentos de Deus parecem ao homem tão

grandes e tão profundos que ele não pode encontrar palavras correspondentes para exprimi-las, devemos considerá-lo he­rege, porque não pode traduzir exatamente o que sente?"

E na pergunta 33?: "E não é por esse motivo que nos pri­meiros tempos do cristianismo não existiam heresias, pois os homens julgavam-se uns aos outros não pelas palavras, mas sim pelo coração e pelos atos, havendo plena liberdade de ex­primir seus pensamentos sem receio de serem acusados de he­resia?" "A igreja, (diz ele em sua 34? pergunta) não usava talvez o meio mais fácil e mais ordinário, tornando suspeitas as pessoas das quais o clero queria se desfazer, e atirando so­bre elas o manto da heresia?"

' 'Embora seja verdade (diz ele mais adiante) que aqueles chamados hereges pecavam e erravam, não resulta de forma menos real e menos evidente, dos inúmeros exemplos aqui ci­tados (isto é, na história da igreja e das heresias), que existis­se um homem sincero e consciencioso de certa influência que, por inveja ou qualquer outro motivo, tenha sido desacredita­do pelos partidários da igreja."

Da mesma forma, há quase dois séculos já não se com­preendia o significado da palavra heresia e esta mesma opi­nião reina, entretanto, até hoje. Por outro lado, esta opinião não pode deixar de existir enquanto existir a igreja. A heresia é o reverso da igreja. Onde existe a igreja deve existir a here­sia. A igreja é uma sociedade de homens que pretendem pos­suir a verdade absoluta; a heresia é a opinião daqueles que não reconhecem a indiscutibilidade desta verdade.

A heresia é uma manifestação do movimento, uma revolta contra a inércia dos princípios 4a igreja, uma tentativa de con­cessão viva da doutrina. Todos os passos em direção à inteli­gência e à efetivação da doutrina foram dados por hereges: Tertuliano e Orígenes, Santo Agostinho e Lutero, Huss e Sa-vonarola, Kheltchitsky e outros eram hereges. Não poderia ter sido diferente.

O discípulo de Cristo, cuja doutrina consiste na penetra­ção progressiva do pensamento evangélico, em sua observân­cia, cada vez maior, no caminho para a perfeição, não pode afirmar, por conta própria ou por conta de outrem, exatamente por ser discípulo de Cristo, conhecer por inteiro Sua doutrina e observá-la. Menos ainda pode afirmá-lo em nome de toda uma assembleia.

Qualquer que seja o grau de compreensão e perfeição que tenha atingido, o discípulo de Cristo sente sempre a insufi­ciência de seu entendimento e de sua observância, e sempre se inclina para uma penetração e uma obediência cada vez maiores. Eis por que a afirmação — em seu nome, ou em no­me de uma sociedade — que nos encontramos de posse do to­tal entendimento e da perfeita observância da doutrina de Cristo seria uma renúncia ao espírito da própria doutrina.

Por mais estranho que possa parecer, cada igreja, como Igreja, sempre foi e não pode deixar de ser uma instituição, não só alheia, mas até diretamente oposta à doutrina de Cris­to. Não foi sem motivo que Voltaire a chamou de infame. Não é sem motivo que todas, ou quase todas as pretensas seitas cristãs, reconheceram e reconhecem a igreja na grande peca­dora profetizada no Apocalipse. Não é sem motivo que a his­tória da igreja é a história das maiores crueldades e dos piores erros.

As igrejas, como igrejas, não são instituições que têm por base um princípio cristão, ainda que um tanto desviado do caminho certo, como pensa um grande número de pessoas. As igrejas, como sociedades afirmadoras de sua infalibilida­de, são instituições anticristãs. Não só nada existe em comum entre as igrejas e o cristianismo, exceto o nome, como seus princípios são absolutamente opostos e hostis. As primeiras representam o orgulho, a violência, a sanção arbitrária, a imo­bilidade e a morte; o outro representa a humildade, a peni­tência, a submissão, o movimento e a vida.

Não se pode servir ao mesmo tempo a estes dois senho­res: é preciso escolher um ou outro.

Os servidores das igrejas de todos os credos procuram, sobretudo nestes últimos tempos, apresentar-se como parti­dários do progresso no cristianismo. Fazem concessões, que­rem corrigir os abusos que se introduziram na igreja e dizem que não se pode negar, devido a estes abusos, o próprio prin­cípio da igreja cristã que, sozinha, pode reunir todos em um só todo e ser a intermediária entre os homens e Deus. Mas is­to é um erro. Não só as igrejas nunca uniram ninguém, como foram sempre uma das principais causas do desacordo entre os homens, do ódio, das guerras, das inquisições, das noites de São Bartolomeu etc, e nunca as igrejas serviram de inter­mediárias entre os homens e Deus, o que é aliás inútil e proi­bido por Cristo, que revelou sua doutrina diretamente a cada homem. Elas introduzem, ao contrário, fórmulas mortas no lugar de Deus e, longe de mostrá-lo aos homens, escondem-no. Nascidas da ignorância, que conservam com sua imobili­dade, as igrejas não podem evitar de condenar toda a justa compreensão da doutrina. Procuram escondê-la, mas isto é impossível; porque cada avanço no caminho indicado por Cris­to destrói o poder destas igrejas.

Ao ouvir ou ler os sermões ou artigos nos quais os escri­tores religiosos dos novos tempos e de todos os credos falam de virtude e de verdade cristã, ao ouvir ou ler as hábeis argu­mentações, as exortações, as profissões há séculos elaboradas e que às vezes têm aparência de sinceridade, estaremos incli­nados a duvidar que as igrejas tenham podido ser hostis ao cristianismo. "Mas é impossível que homens como Crisósto­mo, Fénelon, Botler e outros pregadores do cristianismo lhe sejam hostis." Somos tentados a dizer: "As igrejas puderam afastar-se do cristianismo, cair no erro, mas não lhe podem ser hostis." Porém, ao examinar o fruto para julgar a árvore, como ensinou Cristo, e ao ver que os frutos eram ruins, que a corrupção do cristianismo foi a consequência de seus atos, não podemos deixar de reconhecer que, por melhores que te­nham sido os homens, a obra da igreja, para a qual eles cola­boraram, não foi uma obra verdadeiramente cristã. A bondade e o mérito de todos estes servidores das igrejas foram as vir­tudes dos homens, não as virtudes da obra a que eles serviam. Todos estes homens virtuosos, como Francisco de Assis e Fran­cisco de Sales, como nosso Tikhon Zadonsky, Tomás de Kem-pis etc, eram bons, apesar de seus serviços a uma obra hostil ao cristianismo, e teriam sido ainda melhores e mais dignos, se não tivessem caído no erro a que serviam.

Mas por que falar do passado, por que julgar o passado que pode ser mal ou pouco conhecido? As igrejas, com seus princípios e suas ações, não são coisas do passado; as igrejas estão hoje diante de nós, e podemos julgá-las segundo seus atos e sua ação sobre os homens.

Em que, então, consiste a ação das igrejas? Como influen­ciam os homens? O que fazem as igrejas junto a nós, junto aos católicos e junto aos protestantes de todos os credos? Quais são as consequências de sua ação?

A ação de nossa igreja russa, chamada ortodoxa, é visí­vel a todos. É um grande fato, que se pode ocultar e que não se pode discutir.

Em que consiste a ação desta igreja russa, desta imensa instituição animada por vida intensa e composta por um exér­cito de meio milhão de homens que custam ao povo dezenas de milhões?

A ação desta igreja consiste em incutir, por todos os meios possíveis, nos cem milhões de homens desta nação russa, as antigas crenças que foram uma vez professadas por homens absolutamente estranhos a nosso povo, nas quais ninguém mais crê, muitas vezes nem mesmo aqueles cuja missão é protegê-las.

Arraigar no povo fórmulas do clero bizantino sobre a Trindade, a mãe de Deus, os sacramentos, as graças, que ne­nhum sentido fazem mais para os homens de nosso tempo, constitui uma parte da ação da igreja russa. A outra parte de sua ação é o apoio, fornecido pela idolatria, no sentido literal da palavra: veneração das santas relíquias, das santas imagens e sacrifícios que lhes são ofertados para a obtenção da reali­zação dos próprios desejos.

Não falarei do que diz e escreve o clero russo, com uma tintura de erudição e liberalismo, nas revistas religiosas, mas falarei do que faz realmente o clero na imensa extensão da terra russa em meio a um povo de cem milhões de almas. O que se ensina com intensidade ao povo, e por toda parte com o mesmo zelo? O que dele se exige em virtude da suposta fé cristã?

Começarei do princípio; isto é, do nascimento da crian­ça. Quando do nascimento da criança, ensina-se que é preciso fazer, sobre o recém-nascido e sobre a mãe, uma prece para purificá-los, porque sem esta prece aquela mãe é impura. Com tal propósito, o padre toma em seus braços a criança e pro­nuncia as palavras sacramentais diante das imagens dos san­tos que o povo chama francamente de deuses. Assim, ele purifica a mãe. Então se inculca e mesmo se exige dos pais, com ameaças de punições, que batizem a criança, isto é, que a façam ser mergulhada pelo padre na água, três vezes segui­das, com a leitura de palavras incompreensíveis acompanha­das por atos ainda mais incompreensíveis: unção de várias partes do corpo, corte dos cabelos; os padrinhos sopram e cos­pem no demónio imaginário. Tudo isto deve purificar a criança e dela fazer um cristão. Ensina-se, assim, aos .pais que é pre­ciso fazer a criança comungar, isto é, fazê-la engolir, sob for­ma de pão e vinho, uma partícula do corpo de Cristo, o que terá como consequência fazer nela penetrar toda a graça divi­na etc. É, então, ensinado que, à medida que ela crescer, será preciso ensiná-la a rezar. Rezar quer dizer colocar-se diante de um quadro sobre o qual estão desenhados o rosto de Cris­to, da Virgem ou dos santos e, com os dedos postos de deter­minada maneira, tocar a fronte, os ombros, o abdómen, pro­nunciando palavras eslavas, entre as quais as mais usadas são: "Santa Virgem..., Virgem, alegra-te etc."

Ensina-se, após, que à vista de uma igreja ou de uma ima­gem sacra é preciso fazer aquele mesmo sinal-da-cruz. Depois ensina-se que durante as festas (as festas são o dia em que nas­ceu Cristo — ainda que ninguém conheça a data deste acon­tecimento —, o dia em que foi circuncidado, o dia em que morreu a Virgem, o dia em que foi carregada a cruz, o dia em que o inocente viu a aparição etc.) é preciso vestir as me­lhores roupas, ir à igreja, comprar velas e colocá-las defronte às imagens dos santos, dar bilhetinhos e lembrancinhas, dar pãezinhos nos quais são feitos cortes triangulares e, depois, rezar inúmeras vezes pela saúde e felicidade do czar e dos ar­cebispos e por si e seus próprios negócios, e por fim beijar a cruz e a mão do padre.

Além destas orações, ensina-se ainda que é preciso, pelo menos uma vez por ano, confessar-se e comungar. Confessar significa ir à igreja e contar os próprios pecados ao padre, supondo que essa confissão a um estranho nos purifique por com­pleto: e então comer numa colher um pedaço de pão com vi­nho, o que purifica ainda mais.

É ensinado também que, se o homem e a mulher dese­jam que sua união carnal seja santa, devem ir à igreja, colo­car sobre suas cabeças coroas de metal, beber determinada bebida, andar três vezes em volta de uma mesa com acompa­nhamento de cânticos e, então, a união carnal do homem e da mulher torna-se-á santa e em tudo diferente das outras.

Para a vida, ensinaram-se as seguintes regras: não comer carne nem beber leite em determinados dias; assistir aos ofí­cios e rezar pelos mortos em outros determinados dias; convi­dar o padre nas festas e dar-lhe dinheiro, e retirar da igreja, várias vezes por ano, o quadro das imagens e colocá-lo sobre guardanapos pelos campos e nas casas. Enfim, ensina-se ao homem a obrigação de comer, no momento da morte, numa colherinha, pão com vinho e, ainda mais válido, se lhe ainda resta tempo, untar-se com óleo. Isto lhe garante a felicidade na vida futura. Após a morte, ensina-se aos parentes do fina­do que, para a saúde de sua alma, é útil colocar-lhe entre as mãos uma folha de papel na qual está escrita uma oração; e também útil ler sobre o corpo do morto determinado livro e pronunciar seu nome na igreja, em determinados dias.

Em tudo isto consiste a fé obrigatória. Mas, se alguém quer tomar especial cuidado com sua alma, é ensinado que, de acordo com esta crença, a garantia mais segura da feli­cidade da alma no outro mundo é dar dinheiro às igrejas e aos conventos, o que obriga os homens santos a rezar pelo doador.

São ainda salutares, de acordo com esta crença, as pere­grinações aos conventos e o beijo nas imagens milagrosas e nas relíquias.

Segundo esta crença, as imagens milagrosas concentram em si uma força, uma graça e uma santidade especiais; tocá-las ou beijá-las, acender velas e ajoelhar-se diante delas em muito contribui para a salvação, assim como as missas cele­bradas em seu favor.

E esta crença, é não outra, esta crença chamada ortodoxa, isto é, fé verdadeira, é que é ensinada ao povo como cristianismo, há muitos séculos e ainda hoje.

E não se diga que os padres ortodoxos compreendem de outro modo o sentido da doutrina e que essas são fórmulas antigas que não se acha necessário destruir. Não é verdade. Em toda a Rússia, hoje, só esta fé é ensinada, por todo o cle­ro russo, com especial cuidado.

Nada mais existe. Escreve-se e fala-se de outra coisa nas capitais mas, entre os cem milhões de almas do povo, nada de diferente é feito, nada além disto é ensinado. Os ministros da igreja discutem entre si aquela outra coisa, mas ensinam apenas esta.

As prostrações diante das relíquias e das imagens sacras fazem parte da teologia, do catecismo. São ensinadas, teórica e praticamente, ao povo, com pompa, com solenidade, com autoridade, e com violência; hipnotizando-o, obrigam-no a ne­las acreditar e assim é esta fé zelosamente preservada de qual­quer tentativa de emancipação do povo destas superstições dignas de selvagens.

Como eu disse a propósito de meu livro, a doutrina de Cristo e suas próprias palavras a respeito da não-resistência ao mal com a violência foram, na minha presença, por mui­tos anos, objeto de zombaria, de ironia geral; e os ministros da igreja não só não se opunham a essas blasfémias, como até encorajavam-nas. Experimentai falar desrespeitosamente do ridículo ídolo que pessoas embriagadas carregam, em Mos­cou, de maneira sacrílega, sob o nome de ícone de Iver. Um grito de indignação levantar-se-á dentre os próprios ministros da igreja ortodoxa. Prega-se somente o culto externo da ido­latria.

E não se diga que um não impede o outro; que uma coisa deve ser feita e que outra não deve ser abandonada.

"Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem mas não fazem." (Mt 23,3). Isto foi dito dos fariseus que observam todas as regras exteriores da religião; e por isto as palavras: "Fazei e obser­vai tudo quanto vos disserem" referem-se aos atos de carida­de e de beneficência, enquanto as palavras: "Mas não imiteis as suas ações, pois dizem mas não fazem" referem-se a sua observância das cerimonias e à não-observância às obras de Deus. Estas palavras têm um significado totalmente oposto ao que querem atribuir-lhes os ministros da igreja, que as in­terpretam como uma ordem de observância das cerimonias. O culto exterior e o culto do bem e da verdade dificilmente se conciliam, até aliás se excluem mutuamente. Assim faziam os fariseus, e o mesmo acontece ainda hoje entre os cristãos da igreja oficial!

Se o homem pode obter a salvação pela expiação, pelos sacramentos e pelas orações, as boas obras não mais lhe são necessárias.

O Sermão da Montanha ou então o Símbolo da Fé: não se pode crer num ou noutro; e os partidários da igreja esco­lheram o último. O Símbolo da Fé é ensinado e lido como ora­ção nas igrejas, enquanto o Sermão da Montanha é excluído até mesmo das leituras evangélicas nas igrejas, a tal ponto que os fiéis nunca o ouvem, salvo nos dias em que o Evangelho é lido por inteiro. E não poderia ser diferente.

Homens que crêem num Deus malvado e insensato que amaldiçoou a raça humana e mandou seu filho ao sacrifício e uma parte dos homens a uma tortura eterna não podem crer num Deus de amor. O homem que crê em Deus-Cristo que julga e pune ruidosamente os vivos e os mortos não pode crer num Cristo que ordena dar a face ao ofensor, não julgar, per­doar e amar os próprios inimigos.

O homem que crê no caráter divino do Antigo Testa­mento e na santidade de Davi, que em seu leito de morte de­lega a missão de matar o velho que o ofendeu, a quem ele não pode matar pessoalmente por estar ligado a um jura­mento (1 Rs 2,8), e muitas outras vilanias das quais está cheio o Antigo Testamento, não pode crer na moral de Cristo. O homem que crê na doutrina e nos sermões da igreja relati­vos à conciliação do cristianismo com as execuções capitais e a guerra não pode mais acreditar na humanidade de todos os homens.

E, sobretudo, o homem que acredita na salvação pelo ca­minho da expiação e dos sacramentos não pode mais concentrar todos seus esforços na observância da doutrina moral de Cristo.

O homem a quem a igreja ensinou esta doutrina sacríle­ga, ou seja, que ele não pode encontrar em si a salvação e que existe um outro meio de obtê-la, recorrerá necessariamente a este meio, e não a sua própria força, na qual não pode con­fiar sem pecado, como lhe é afirmado. A doutrina da igreja, qualquer que seja, com suas expiações e seus sacramentos, ex­clui a doutrina de Cristo (sobretudo a igreja ortodoxa, com sua idolatria).

"Mas, poder-se-á objetar, o povo sempre acreditou, e ain­da acredita, desta forma. Toda a história do povo russo as­sim o prova. Não se pode tirar suas tradições."

É uma falsidade. O povo realmente professou, por algum tempo, algo parecido com o que hoje professa a igreja; mas não era, na verdade, a mesma coisa.

Ao lado da idolatria das imagens, das relíquias, existiu sempre no povo uma compreensão profundamente moral do cristianismo, que nunca existiu na igreja e que só é encontra­da em seus melhores representantes. Mas o povo, apesar de todos os obstáculos neste sentido a ele colocados pelo Estado e pela igreja, já percorreu, há muito, a etapa grosseira deste conceito. O que demonstra isso, por outro lado, é o espontâ­neo e geral desenvolvimento das seitas racionalistas que hoje proliferam na Rússia, e contra as quais lutam, com tão pouco sucesso, os ministros da igreja. O povo segue adiante na pe­netração do código moral e vivo do cristianismo. E é, então, que aparece a igreja, não para trazer seu apoio a este movi­mento, mas para inculcar ainda mais no povo um antigo pa­ganismo, de formas petrificadas, e para novamente empurrá-lo para as trevas das quais com tanta dificuldade tenta sair.

"Não ensinamos ao povo nada de novo, mas apenas aqui­lo em que ele crê, e de uma forma mais perfeita", dizem os ministros da igreja. Este modo de agir assemelha-se ao que consistiria em amarrar um pintinho que cresce e fechá-lo na casca de onde saiu.

A primeira pergunta, a primeira dúvida que se apresenta ao russo quando este começa a refletir refere-se às imagens milagrosas e, sobretudo, às relíquias: é verdade que são in­corruptíveis e fazem milagres? Centenas de homens fazem-se esta pergunta, mas se detêm diante da solução, principalmen­te devido ao fato de que os arcebispos, os bispos e todos os homens de alta posição beijam as relíquias e as imagens mila­grosas. Perguntai aos arcebispos e aos grandes personagens por que o fazem e nos responderão que o fazem para dar o exemplo ao povo. E o povo assim faz porque eles o fazem.

A igreja russa, apesar do verniz superficial de moderni­dade e refinamento do caráter sacro que seus membros come­çam hoje a introduzir em suas obras, em seus artigos, suas revistas religiosas e seus sermões, não tem outro objetivo se­não manter o povo numa idolatria selvagem e grosseira e di-* fundir a superstição e a ignorância, obscurecendo a compreen-j são da doutrina evangélica que vive no povo ao lado da su­perstição.

Lembro-me de haver assistido um dia, na livraria do con­vento Optin, à escolha, feita por um velho camponês analfa­beto, de alguns livros religiosos para seu filho. Um frade recomendava-lhe a história das relíquias, das festas, das apa­rições das imagens, o livro dos salmos etc. Perguntei ao velho se ele possuía um Evangelho.

Não

Dê-lhe então um Evangelho em russo — disse eu ao frade.

Não serve para eles, respondeu-me o frade.

Eis, em poucas palavras, toda a ação de nossa igreja.

Mas isto só acontece na bárbara Rússia, objetará um lei­tor europeu ou americano. E esta opinião será justa, mas só enquanto houver um governo que ajude a igreja na Rússia em sua missão de desmoralização e embrutecimento.

É bem verdade que em parte alguma da Europa existe um governo tão despótico e que tão bem se ponha de acordo com a igreja atual. A participação do poder na desmoralização do povo russo é também muito grande. Mas seria injusto crer que a igreja russa se distingue no que quer que seja de qualquer outra igreja em sua influência sobre o povo.

As igrejas são ás mesmas por toda a parte e, se as igrejas

católica, anglicana, luterana não têm nas mãos um governo assim tão dócil, não é, certamente, porque não o desejem.

Uma igreja, qualquer que seja, não pode deixar de não visar o mesmo objetivo da igreja russa, isto é, encobrir o ver­dadeiro sentido da doutrina de Cristo e substituí-la por um ensinamento que a nada obrigue e que, sobretudo, justifique a existência de bonzos nutridos à custa do povo.

Acaso age de outro modo o catolicismo, quando proíbe a leitura do Evangelho, quando exige uma submissão cega aos chefes da igreja e ao papa infalível? Acaso ensina o catolicis­mo algo diferente do que ensina a igreja russa? O mesmo cul­to externo, as mesmas relíquias, os mesmos milagres, as mes­mas estátuas milagrosas, a Madona e as procissões, os mes­mos raciocínios afetados e nebulosos sobre o cristianismo nos livros e nos sermões; na verdade, o mesmo encorajamento à mais vulgar idolatria.

E acaso o mesmo não ocorre nas igrejas anglicana, lute­rana e em cada protestantismo que tem uma igreja? As mes­mas exigências de fé nos dogmas expressos no século IV, e que perderam qualquer sentido para os homens de nosso tempo, as mesmas práticas de idolatria, se não às relíquias e aos íco­nes, ao menos ao dia de sábado e aos textos da Bíblia. Sem­pre a mesma tendência a esconder as verdadeiras exigências do cristianismo e substituí-las por um culto externo e pelo cant9 que não obriga a nada, como definem tão bem os ingleses, que lhe são especialmente afeiçoados. No protestantismo, es­ta tendência é sobretudo notável porque não tem o pretexto da antiguidade. E acaso não se dá o mesmo no calvinismo re­generado, no evangelismo que deu origem ao Exército de Salvação?

Como as diferentes doutrinas de igreja são semelhantes no que se refere à doutrina de Cristo, é também semelhante seu procedimento.

Sua situação é tal que elas não podem deixar de envidar todos seus esforços para ocultar a doutrina de Cristo, de cujo nome se servem. A incompatibilidade de todos os credos ecle­siásticos com a doutrina de Cristo é, de fato, tal que são fei­tos esforços especiais para dissimulá-la perante os homens.

Qual é, na realidade, a situação de um adulto, não digo ins­truído, mas que haja assimilado, ainda que superficialmente, as noções que flutuam no ar, sobre geologia, física, química, cosmografia e história, quando, pela primeira vez, examina com consciência as crenças que lhe foram inculcadas na in­fância e que as igrejas consagram? Que crenças! Deus criou o mundo em seis dias, a luz antes do sol, Noé reuniu todos os animais na arca etc, Jesus é Deus-filho que tudo criou tran­sitoriamente, desceu à terra por causa do pecado de Adão, res­suscitou, subiu ao céu, onde está sentado à direita do Pai, e voltará por sobre as nuvens para julgar o mundo etc.

Todas essas noções elaboradas pelos homens do século IV, e que naquela época, faziam para eles um certo sentido, não mais fazem hoje em dia. Os homens de nosso tempo po­dem repetir com os lábios essas palavras, mas não podem acre­ditar nelas, porque afirmações como estas: Deus vive no céu, o céu abriu-se e uma voz desceu e disse algo, Cristo ressusci­tou e subiu para algum lugar no céu e voltará sobre as nuvens etc. não fazem sentido algum para nós.

O homem que considerava o céu como uma abóboda só­lida e limitada poderia crer ou não crer que Deus houvesse criado o céu, que este se tivesse aberto, que Cristo houvesse subido; mas, para nós, que sentido pode ter tudo isto? Os ho­mens de nosso tempo podem somente crer que é preciso crer; e assim fazem. E, contudo, não podem crer no que para eles não faz sentido.

Mas, se todas estas expressões devem ter um sentido ale­górico, sabemos, em primeiro lugar, que os partidários da igre­ja não estão propositalmente de acordo e que a maioria insiste no entendimento da Sagrada Escritura em seu sentido literal e, em segundo lugar, que todas estas interpretações, muito di­ferentes umas das outras, em nada se apoiam.

Mas ainda que os homens quisessem se esforçar para acre­ditar na doutrina das igrejas da forma como é ensinada, a di­fusão da instrução e do Evangelho oporiam a sua crença um obstáculo intransponível.

Bastaria ao homem de nosso tempo comprar, por três moedas, o Evangelho e ler as palavras tão claras de Cristo, palavras que não requerem qualquer comentário, como aquelas ditas à Samaritana, isto é, que o Pai precisa de fiéis, não em Jerusalém, nem nesse ou naquele monte, mas de fiéis no espí­rito e na verdade, ou como as que afirmam que o cristão deve orar, não como um pagão num templo, mas secretamente em retiro e que o discípulo de Cristo a ninguém deve chamar de Pai ou Mestre; bastaria ler estas palavras para se convencer indiscutivelmente que os pastores das igrejas que chamam a si mesmos de Mestres, contrariamente à doutrina de Cristo, e que discutem entre si, não têm autoridade alguma, e que aqui­lo que ensinam não é o cristianismo.

E mais: se o homem moderno continuasse a acreditar em milagres e a não ler o Evangelho, suas únicas relações com os homens de outras crenças, relações tornadas tão fáceis em nosso tempo, fá-lo-iam duvidar da verdade da sua fé. Era fá­cil, para um homem que não podia ver seus semelhantes de outra crença acreditar que a sua fosse a única verdadeira; en­quanto basta a um homem que reflete, para duvidar de sua fé, ser colocado em contato com outros homens, bons ou maus, de outros credos, que discutem e condenam reciprocamente suas próprias crenças. Em nossa época, somente o homem ab­solutamente ignorante ou indiferente a todas as questões da vida iluminadas pela religião pode conservar a fé de sua igre­ja. Assim, quantas astúcias e quantos esforços não devem pôr em prática as igrejas, porque, apesar das condições desfavo­ráveis à fé, elas podem ainda fabricar templos, cantar missas, pregar, ensinar, fazer adeptos e, sobretudo, ser regiamente pa­gas por isto na pessoa de todos seus padres, pastores, inten­dentes, superintendentes, abades, arquidiáconos, bispos e arcebispos!

Esforços enormes, sobre-humanos, são necessários, e as igrejas fazem-nos com energia sempre maior. Entre nós, na Rússia (sem falar dos outros meios), adota-se apenas a vio­lência brutal do poder submisso à igreja. Os homens que se negam às práticas exteriores ao culto e não o escondem são punidos sem qualquer processo, ou são privados de seus di­reitos.

Ao contrário, os homens que praticam todas as formas exteriores da fé são recompensados e conquistam novos di­reitos.

Assim agem os ortodoxos; mas todas as igrejas, sem ex-ceção, empregam, para este fim, todos os meios, entre os quais hoje está em primeiro lugar o que se chama hipnotismo.

São utilizadas todas as artes, da arquitetura à poesia, pa­ra influenciar a alma e para entorpecer a inteligência, e esta influência é contínua. Esta necessidade de hipnotizar os ho­mens pode ser especialmente notada no Exército de Salvação, que adota métodos novos, aos quais nós não estamos ainda acostumados, como as trompas, os tambores, os cânticos, as bandeiras, as roupas, as procissões, o baile, as lágrimas e ou­tros métodos dramáticos.

Mas tudo isso não nos impressiona senão por se tratar de procedimentos novos. Não seriam talvez análogos os anti­gos procedimentos dos templos, com sua iluminação especial, o esplendor dos dourados, as velas, os coros, os órgãos, os sinos, os pregadores lamurientos etc?

Mas, apesar de todo o poder desta hipnose, não consiste nisto a ação mais infausta da igreja. Esta reside em sua ten­dência para enganar as crianças, aquelas mesmas crianças das quais disse Jesus: "Ai daquele que tocar num só destes pe­queninos!"

Desde o primeiro despertar de sua consciência, começa-se a mentir à criança; ensinam-lhe solenemente coisas em que seus próprios educadores não crêem e isto é feito com tanta habilidade e tanta constância, que essas crenças tornam-se para ela, com o passar do tempo, uma segunda natureza. Tem-se o cuidado de enganá-la sobre a questão mais importante da vida e, quando esta mentira criou em sua mente raízes tão pro­fundas que é impossível erradicá-las, abre-se diante da crian­ça o mundo da ciência e da realidade, que de modo algum podem conciliar-se com as crenças nela inculcadas, e deixa-se a ela o trabalho de se desenredar, como puder, dessas contra­dições.

Como fosse investigado o problema de desviar a inteli­gência sadia do homem, a fim de que não pudesse sair da con­tradição dos dois conceitos opostos nele inculcados desde a infância, não seria possível inventar algo mais poderoso do que o sistema de educação adotado em nossa sociedade dita cristã.

O que as igrejas fazem dos homens é terrível, mas, ao exa­minar bem sua situação, reconhece-se que não podem agir de outra forma. Um dilema é apresentar às igrejas: o Sermão da Montanha ou o Símbolo de Nicéia. Um exclui o outro. Se o homem crê sinceramente no Sermão da Montanha, o Símbo­lo de Nicéia perde fatalmente todo o sentido e todo o valor e, com o Símbolo de Nicéia, a igreja e seus representantes. E, se ele crê no Símbolo de Nicéia, isto é, na igreja, naqueles que se intitulam seus representantes, o Sermão da Montanha torna-se inútil para ele. É por isto que as igrejas não podem deixar de fazer todos os esforços imagináveis para obscurecer o sentido do Sermão da Montanha e atrair para si os homens. É somente graças à ação intensiva das igrejas neste sentido que sua influência pôde ser mantida até agora. Se a igreja detives­se, até mesmo por um breve momento, esta influência sobre as massas, com o hipnotismo, e sobre as crianças, com a men­tira, os homens logo compreenderiam a doutrina evangélica e a compreensão desta doutrina aniquilaria as igrejas e sua in­fluência. E é por isto que as igrejas não interrompem sua ação por um só momento. E é esta ação que impede que a maioria dos homens supostamente cristãos entenda a doutrina de Cristo.












Capítulo IV

O cristianismo malcompreendido pelos cientistas


Falarei agora de outro suposto conceito do cristianismo, que impede a compreensão de seu sentido verdadeiro, isto é, do conceito científico.

Os partidários da igreja deram ao cristianismo uma interpretação que consideram como única verdadeira.

Os cientistas examinaram o cristianismo tal como é pro­fessado pelas diversas igrejas e, supondo que elas lhe dão seu significado absoluto, consideram-no como uma doutrina re­ligiosa que já teve seu tempo. Para melhor compreender como seria impossível, com essa opinião, penetrar na doutrina de Cristo, é indispensável conhecer o lugar que ocuparam e ocupam na realidade todas as religiões em gerai e o cristianismo em particular, na vida da humanidade, como também a im­portância que pela ciência lhes é atribuída.

Do mesmo modo que o indivíduo isolado não pode viver sem ter uma ideia de sua razão de ser e sem subordinar, às vezes inconscientemente, suas ações ao objetivo que dá a sua existência, assim também os grupos de homens que vivem em iguais condições, como as nações, não podem deixar de dar uma razão determinante a seus fins comuns e aos esforços que lhe são consequentes. Do mesmo modo que o homem isolado, envelhecendo, muda necessariamente seu conceito de vida e

encontra para sua existência um sentido que ele percebeu quando criança, assim as sociedades, as nações mudam ne­cessariamente, segundo suas idades, seus conceitos de vida e a ação que daí deriva.

A diferença entre o indivíduo e a humanidade está em que o indivíduo pode aproveitar indicações de homens que viveram antes dele e já ultrapassaram a idade em que ele está, enquanto a humanidade não pode receber tais indicações, porque caminha por uma estrada ainda inexplorada e não encontra a quem perguntar como deve encarar e agir nas novas condições em que se encontra e em que ninguém jamais ainda se encontrou.

Entretanto, como o pai de família não pode continuar a encarar a vida como encarava na infância, assim a humanidade, após várias mudanças — densidade da população, relações estabelecidas entre as nações, aperfeiçoamento dos meios de luta contra a natureza, acúmulo do saber — não pode continuar a encarar a vida como antes. Ela precisa de um novo conceito de existência, conceito do qual resulta a nova atividade, adequado ao novo estado em que ingressou.

A esta necessidade responde a faculdade especial da humanidade de produzir homens que venham dar à vida humana um novo sentido, donde resulta uma ação totalmen­te diversa da antiga. O estabelecimento destes novos concei­tos e da nova acão que daí resulta é aquilo que se chama reli­gião.

Por isso a religião não é, como acredita a ciência, um fenómeno que em tempos idos acompanhou o desenvolvimento da humanidade e que não mais se renovou, mas sim um fenômeno próprio da vida humana e ainda hoje absolutamente natural à humanidade como em qualquer outra época. Em segundo lugar, sendo sempre a religião a definição da ação no futuro e não do passado, é claro que o estudo dos fenómenos passados não pode, em caso algum, alcançar todo o sentido da religião.

A essência de qualquer doutrina religiosa não está no desejo de uma expressão simbólica das forças da natureza, nem no terror que suas forças inspiram, nem num desejo de maravilhas, nem nas formas exteriores com as quais se manifesta, como crêem os cientistas.

A essência da religião está na faculdade que têm os homens de profetizar e indicar o caminho que deve seguir a huma­nidade, numa direção diferente da seguida no passado e da qual resulta uma ação absolutamente diferente da humanidade.

Esta faculdade de prever o caminho da humanidade per­tence mais ou menos a todos os homens, mas sempre, em todos os tempos, existiram homens nos quais isto se manifestou com uma força especial e que, exprimindo lúcida e exatamente o que sentiam vagamente todos os outros, estabeleceram um jnovo conceito de vida, de onde resultou uma nova ação para muitos séculos ou por milhares\de anos.l

Conhecemos três destes conceitos de vida. Dois já pas­saram pela humanidade, e atravessamos hoje o terceiro, no cristianismo. Estes conceitos são três, e apenas três, não porque tenhamos arbitrariamente reunido diversos, mas porque as ações de todos os homens têm sempre seu princípio num destes três conceitos de vida, e porque só podemos compreender a vida destas três maneiras.

Estes três conceitos são: primeiro, vida pessoal ou animal; segundo, vida social ou pagã; terceiro, vida universal ou divina.

De acordo com o primeiro conceito, a vida do homem está compreendida apenas em sua personalidade: a meta de sua vida é a satisfação da vontade desta personalidade. Consoante o segundo conceito, a vida do homem está com­preendida, não somente em sua personalidade, mas num complexo e numa graduação de personalidades: a família, a tribo, a raça, o Estado. O objetivo da vida consiste na satisfação da vontade deste complexo de personalidades. Segundo o terceiro conceito, a vida do homem não está com­preendida nem em sua personalidade, nem num complexo ou numa graduação de personalidades, mas no princípio e na fonte da vida: Deus.

Estes três conceitos de vida servem de base a todas as religiões que existem e existiram.

O selvagem não reconhece a vida senão nele mesmo, em suas necessidades pessoais; a felicidade de sua vida concentra-se apenas nele. A maior felicidade para ele é a satisfação mais completa de seus próprios apetites. O que impulsiona sua vida é seu prazer pessoal. Sua religião consiste em cativar a divindade e em prostrar-se diante dos deuses imaginários, que ele imagina existirem para uma finalidade pessoal.

O pagão social reconhece a vida não apenas nele pró­prio, mas num conjunto de indivíduos: a família, a tribo, a raça, o Estado — e sacrifica a este conjunto sua própria felicidade. O estímulo de sua vida é a glória. Sua religião consiste na glorificação dos chefes: os antepassados, che­fes de tribo, soberanos — e na adoração dos deuses que protegem, exclusivamente, sua família, sua tribo, seu povo, seu Estado1.

1Só porque baseamos, neste conceito da vida pagã ou social, diversas formas de vida — a vida de família, de tribo, de raça, de Estado, e também a vida de toda a humanidade, teoricamente representada pelos positivistas — não conseguimos que a unidade deste conceito de vida seja destruída. Todas estas diferentes formas de vida baseiam-se numa noção única, a de saber que a personalidade não é um objetivo suficiente para a vida e que o sentido da vida só pode ser encontrado na associação dos indivíduos.


O homem, pelo conceito divino da vida, já reconhece a vida, não em sua personalidade ou numa associação de per­sonalidades (família, tribo, povo, pátria ou Estado), mas na fonte da vida eterna, isto é, em Deus, e, para cumprir a vontade de Deus, ele sacrifica sua felicidade pessoal, doméstica e social. O estímulo de sua vida é o amor e sua religião é a adoração do princípio de tudo: Deus.

Toda a vida histórica da humanidade não é senão uma passagem gradual do conceito de vida pessoal animal ao conceito social, e deste ao conceito divino. Toda a história dos povos antigos, que durou milhões de anos e termina com a história de Roma, é a história da substituição do conceito social e racional pelo conceito animal e pessoal. A história do mundo, desde a época da Roma imperial e da aparição do cristianismo, é a história que atravessamos ainda hoje, da substituição do conceito nacional pelo conceito divino.

Este último conceito (e a doutrina cristã que dele deriva), dirige toda nossa vida e é a base de todas nossas ações, tanto práticas, quanto científicas. Os homens da suposta ciência, estudando-o só em suas manifestações externas, consideram-no coisa ultrapassada que, para nós, não tem mais valor.

Segundo estes cientistas, esta doutrina, que consiste apenas em dogmas — a Trindade, a Redenção — em seus milagres, sua igreja, seus sacramentos etc, não é senão uma das numerosas religiões que a humanidade fez nascer e que termina seu tempo hoje, após haver representado seu papel à luz da ciência e da civilização.

Ocorre, agora, o que acontece na maioria dos casos e dá origem a grandes erros — que homens de grau intelectual inferior deparam-se com fenómenos de ordem superior e que, ao invés de se colocarem num ponto de vista suficientemente elevado para julgá-los com sinceridade, explicam-nos de seu ponto de vista inferior, e com audácia tanto maior quanto menos compreendem do que se trata.

Para a maior parte dos doutores que examinam a doutrina moral viva de Cristo de um ponto de vista inferior do conceito social da vida, esta doutrina não é mais do que uma espécie de amálgama sem coesão, de ascetismo hindu, de doutrinas estóicas e neoplatônicas e de utópicos sonhos anti-sociais que não têm qualquer importância séria para nosso tempo; e, para eles, tudo se concentra nas manifestações externas: o cato­licismo, o protestantismo, os dogmas e a luta contra o poder secular. Definindo o significado do cristianismo segundo manifestações similares, eles assemelham-se a surdos que julgam o valor e a importância da música pelos movimentos dos músicos.

Disto resulta que todos esses homens, a começar por Kant, Strauss, Spencer e Renan, sem entender as palavras de Cristo, sem perceber por que elas foram ditas, não compreendendo sequer a pergunta a que respondem, não tendo o cuidado de penetrar em seu sentido, negam simplesmente, quando mal-intencionados, que a doutrina tenha um sentido razoável.

E, quando se dignam serem benevolentes, corrigem-na do alto de sua doutrina, supondo que Cristo queria dizer exatamente o que eles pensam, mas que não soube fazê-lo.

Os doutores tratam a doutrina como os presunçosos tratam as palavras dos interlocutores, que consideram como inferiores, dizendo: "Mas, na verdade, quisestes dizer isto e aquilo."

E suas retificações têm sempre o objetivo de reconduzir o conceito superior divino ao conceito inferior social.

Diz-se, em geral, que a doutrina moral do cristianismo é boa, mas exagerada. Para que se torne praticável, é preciso retirar-lhe todo o supérfluo que não se concilia com as con­dições de nossa existência. "Porque a doutrina que pede demais é irrealizável e não vale a que só exige dos homens o possível, compatível com suas forças", pensam e afirmam os eruditos comentaristas do cristianismo, repetindo o que afirmavam e não podiam deixar de afirmar aqueles que, não o compreen­dendo, crucificaram o Mestre: os judeus. ***>*Diante do julgamento dos doutores do nosso tempo, a lei judaica: dente por dente, olho por olho, isto é, a lei do castigo justo, conhecida pela humanidade há cinco mil anos, é mais razoável do que a lei do amor pela qual Cristo a substituiu há 1.800 anos.

Eles consideram que tudo aquilo que foi feito pelos homens que compreenderam corretamente a doutrina de Cristo e viveram segundo este conceito, tudo o que foi feito e dito por todos os verdadeiros cristãos, todos os militantes da doutrina evangélica, tudo o que hoje transforma o mundo sob o sopro do socialismo e do comunismo, tudo isto é um exagero que não merece ser mencionado.

Os homens há 18 séculos instruídos no cristianismo con­venceram-se, na pessoa de seus representantes autorizados, os doutores, que a doutrina cristã é uma doutrina de dogmas. Quanto a sua aplicação prática, trata-se de um mal-entendido, um exagero que compromete as verdadeiras e legítimas exi­gências da moral humana; e aquela doutrina de justiça que Cristo rejeitou e substitui pela sua própria nos é muito mais satisfatória.

O preceito da não-resistência ao mal com a violência parece aos doutores um exagero e também um absurdo. É melhor rejeitá-lo, pensam, sem perceber que não discutem a doutrina de Cristo, mas sim o que acreditam ser a doutrina de Cristo.

Não percebem que dizer que o preceito da não-resistência ao mal com a violência é um exagero da doutrina de Cristo equivale a dizer que, na definição do círculo, a afirmação da igualdade dos raios é um exagero. Eles fazem o que faria um homem que, não tendo qualquer noção do que seja um círculo, afirmasse ser exagero dizer que todos os pontos da circunfe­rência são igualmente distantes do centro. Aconselhar a repelir ou atenuar o axioma da igualdade dos raios do círculo é não compreender o que é o círculo. Aconselhar a repelir ou atenuar, na doutrina de Cristo, o preceito de não-resistência ao mal com a violência é não compreender a doutrina.

E aqueles que assim se comportam não a entendem de fato. Não compreendem que esta doutrina é a atuação prática de um novo conceito de vida, conceito correspondente à nova fase em que a humanidade já entrou há 1.800 anos, e do qual resulta a definição de nova vida.

Eles não concordaram que o Cristo tenha querido dizer o que disse; ou supõem que foi por impulso, por falta de raciocínio e de cultura, que ele disse o que se encontra no Sermão da Montanha e em outros lugares1.

1Eis, por exemplo, uma argumentação característica deste género, num artigo da revista americana Arena (outubro 1890) intitulado New basis ofchurch life (Novas bases da vida eclesiástica). Raciocinando sobre o significado do Sermão da Montanha, e sobretudo sobre a não-resistência ao mal, o autor, não estando, como seguidores da igreja, obrigado a ocultar-lhes o significado, diz: "Cristo realmente pregou o mais completo comunismo e a anarquia, mas é preciso saber ver o Cristo em seu significado histórico e psicológico. Como todos os pregadores da humanidade, o Cristo, en­tusiasmado, atingia exageros utópicos em sua doutrina. Cada passo à frente na perfeição moral da humanidade é sempre dirigido por homens que nada vêem além de sua missão. Cristo, sem que se possa reprová-lo, tinha o temperamento típico de tais reformadores. Por isto, devemos lembrar que seus ensinamentos não devem ser tomados ao pé da letra como uma completa filosofia da vida. Devemos analisar suas palavras, com respeito, mas com um espírito de crítica que busca a verdade etc." Cristo teria ficado feliz por falar com acerto, mas não sabia se exprimir com tanta lucidez e exatidão como nós, no espírito de crítica. Por isto o corrigimos. Tudo o que ele disse sobre a doçura, o sacrifício, a pobreza, a indiferença do amanhã, tudo isto disse por acaso, não sabendo exprimir-se cientificamente.


Por isso, vos digo: Não vos preocupeis por vossa vida, quanto ao que havereis de comer, nem com vosso corpo, quanto ao que havereis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa?

Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem juntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas?

Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode prolongar, por pouco que seja, a duração da sua vida?

E com as roupas, por que andais preocupados? Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam.

E no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em todo seu esplendor, se vestiu como um deles.

Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existe hoje e amanhã será lançada ao forno, não fará ele muito mais por vós, homens fracos na fé?

Por isso, não andeis preocupados, dizendo: Que iremos comer? Ou, que iremos beber? Ou, que iremos vestir?

De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso: o vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas estas coisas.

Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

Não vos preocupeis portanto com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal (Mt 6,25-34).

Vendei vossos bens e dai esmola; fazei bolsas que não fiquem velhas; um tesouro inesgotável os céus, onde o ladrão não chega nem a traça não rói. Pois onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (Lc 12,33.34).

Vende teus bens e segue-me; quem não deixa pai e mãe, filhos e irmãos, campo e casa não pode ser meu discípulo.

Renuncia a ti mesmo, toma sobre ti a tua cruz e segue-me. Meu alimento consiste em cumprir a vontade dfAquele que me enviou, e de cumprir Sua obra! Não é minha vontade que será feita, mas a Dele; não é o que eu quero, mas o que Ele quer. A vida consiste em cumprir não a vontade própria, mas a vontade de Deus (Mc 10,21.29; 9,34 e 14,36).

Estas máximas podem parecer aos homens importantes que têm da vida um conceito inferior a expressão de uma espécie de impulso entusiástico sem aplicação possível na prática. E, no entanto, estas citações resultam com tanto rigor do conceito cristão quanto o preceito do abandono do trabalho em prol da comunidade ou do sacrifício da vida pela defesa da pátria do conceito social.

O homem, ligado ao conceito social da vida, pode dizer ao selvagem: "Volta a ti, reflete; a vida de tua personalidade não pode ser a verdadeira vida porque esta é miserável e efémera. Somente a agregação e a gradação perpetuam-se: a família, a tribo, a raça, o Estado, e por isto deves sacrificar tua personalidade à existência deste grupo"; assim a doutrina cristã fala ao homem a respeito do conceito social: "Arre­pendei-vos, ( jiexavoexa), isto é, retornai a vós mesmos, senão perecereis. Retornai a vós mesmos e entendei que a vida que viveis não é a vida verdadeira, que a vida da família, da so­ciedade, do Estado não é a salvação. A verdadeira vida, sábia, só é possível para o homem quando ele dela participa com mo­deração, não da vida da família e do Estado, mas a vida do Pai!' Assim é, indiscutivelmente, o conceito cristão, que aparece em cada citação do Evangelho.

Pode-se não ter a mesma opinião, pode-se negá-la e provar sua inexatidão, mas, é impossível julgar uma doutrina sem haver penetrado no conceito do qual ela deriva. E, mais ainda, é impossível julgar uma tese de ordem superior colocando-se num ponto de vista inferior: julgar o alto da torre quando estamos nas fundações. E é precisamente isso que fazem nossos doutores. E o fazem porque caem num erro semelhante ao dos fiéis da igreja, que acreditam possuir tantos meios de inves­tigação que basta aplicá-los, para que nenhuma dúvida possa surgir do resultado de seu exame.

Esta posse de um método de investigação, supostamente infalível, constitui o principal obstáculo à compreensão da doutrina cristã por parte dos ateus e dos pretensos doutores, cuja opinião norteia a grande maioria dos incrédulos, crédulos e instruídos. E é desta suposta interpretação que esultam todos os erros dos doutores sobre a doutrina cristã e, especialmente, dos estranhos mal-entendidos que, mais do que tudo, impedem sua compreensão.

Um destes mal-entendidos é que a doutrina cristã seja irrealizável; por isso, ou ela não é de fato obrigatória, isto é, não deve servir de guia, ou então deve ser modificada, atenuada até o limite em que sua obediência é possível dentro de nossa ordem. O segundo mal-entendido consiste em que esta doutrina, que manda amar e servir a Deus, é pouco clara, mística, e não tem um objetivo definido de amor; e, portanto, deve ser substituída por uma doutrina mais exata e mais compreensível de amar e servir a humanidade.

O primeiro mal-entendido, quanto à imposibilidade de praticar a doutrina cristã, vem do fato que os homens se­guidores do conceito social da vida, não compreendendo o motivo que guia os que seguem a doutrina cristã e, consi­derando a indicação da perfeição como uma regra de vida, pensam e dizem que lhes é impossível seguir a doutrina de Cristo, porque a execução completa das exigências desta doutrina destruiria a vida. "Se um homem cumprisse o que prega Cristo, ele destruiria a sua vida; e se todos os homens o cumprissem, toda a espécie humana deixaria de existir", dizem eles.

"Não vos preocupeis com o amanhã, com o que comereis, nem com o que bebereis, nem como vos vestireis" — diz Cristo. Sem defender a própria vida, sem resistir ao mal com a violência, dando a própria vida pelo próximo e guardando a castidade absoluta, o homem e a humanidade não poderiam existir, pensam e dizem eles.

E têm absoluta razão, se consideram as indicações de perfeição dadas pela doutrina de Cristo como regras que cada um deve respeitar, assim como, na doutrina social, cada um deve cumprir as regras de pagamento dos impostos, de par­ticipação na justiça etc.

O mal-entendido consiste exatamente nisto: que a doutrina de Cristo dirige os homens com um meio que não as doutrinas fundamentadas no conceito da vida inferior. As doutrinas sociais são dirigidas somente com regras e com leis, às quais é preciso submetèr-se exatamente. A doutrina de Cristo guia os homens mostrando-lhes a infinita perfeição do Pai celeste, perfeição a que cada homem pode aspirar livremente, inde­pendente do grau de imperfeição em que ele se encontre.

O mal-entendido dos homens que julgam a doutrina cristã do ponto de vista social consiste em que, supondo que a perfeição indicada por Cristo possa ser totalmente alcançada, eles se perguntam (como se perguntam, supondo que as leis sociais sejam observadas): "O que acontecerá quando isto ocorrer?" Esta suposição é falsa, porque a perfeição indicada aos cristãos é infinita e nunca poderá ser alcançada. Cristo apresenta sua doutrina, sabendo que a perfeição absoluta nunca será alcançada, mas que a tendência a esta perfeição absoluta e infinita aumentará continuamente a felicidade dos homens, e que, por consequência, esta felicidade poderá ser indefinidamente aumentada.

Cristo ensina, não aos anjos, mas aos homens que se movem e vivem uma vida animal. A esta força animal do movimento, Cristo aplica, por assim dizer, uma nova força — a consciência da perfeição divina — e assim dirige o caminho da vida sobre a resultante destas duas forças.

Crer que a vida do homem seguirá a direçâo indicada por Cristo é como acreditar que um barqueiro, para atravessar um rio veloz, remando quase que diretamente contra a corrente, navegaria naquela direção.

Cristo reconhece a existência dos dois lados do parale-lograma, das duas forças eternas, imortais, de que se compõe a vida do homem: a força da natureza animal e a força da consciência, isto é, que ele é filho de Deus. Não falando da força animal que, afirmando-se por si só, permanece sempre igual a si mesma e está fora do alcance do homem, Cristo só fala da força divina, chamando o homem a maior consciência desta força, a sua mais completa emancipação e a seu maior desenvolvimento.

Na emancipação e no aumento desta força consiste, segundo a doutrina de Cristo, a verdadeira vida do homem. De acordo com as doutrinas que a precederam, a verdadeira vida estava no cumprimento das regras, das leis; enquanto, segundo a doutrina* de Cristo, esta consiste na aspiração à perfeição divina, dada como fim, e cujo princípio, todo homem tem consciência de trazer consigo, na assimilação mais completa da vontade humana com a vontade de Deus, assimilação para a qual o homem tende, e que seria o aniquilamento da vida que conhecemos.

A perfeição divina é a assíntota da vida humana; a humanidade sempre tende para ela; pode dela se aproximar, mas só pode alcançá-la no infinito.

A doutrina de Cristo não parece excluir a possibilidade da vida, senão quando é considerada como regra aquilo que é apenas a indicação de um ideal. Só neste caso os preceitos de Cristo parecem inconciliáveis com as necessidades da vida, enquanto, ao contrário, só eles oferecem a possibilidade de uma vida justa.

Não se deve pedir demais, dizem os homens frequen­temente, discutindo as exigências da doutrina cristã. Não se pode deixar de pensar no amanhã, como está dito no Evan­gelho, mas é preciso também não se preocupar demais; não se pode dar tudo aos pobres, mas é preciso dar-lhes com mo­deração; não se pode guardar uma castidade absoluta, mas é preciso fugir da depravação; não é preciso abandonar a mulher e filhos, mas não é preciso ter por eles um amor ex­clusivo demais etc."

Falar assim, é como dizer a um homem, que atravessa contra a correnteza um rio veloz, que ele não deve remar assim, mas em linha reta em direção ao ponto da margem que deseja alcançar.

A doutrina de Cristo distingue-se das antigas doutrinas no fato de dirigir os homens não com regras externas, mas com a consciência que têm da possibilidade de alcançar a perfeição divina. E a alma humana não contém regras mo­deradas de justiça e filantropia, mas o ideal da perfeição divina, inteira e infinita. Só a busca desta perfeição modifica o curso da vida humana, do estado animal ao estado divino, tanto quanto isto é humanamente possível.

Para chegar ao lugar desejado, é preciso dirigir-se, com todas as forças, a um ponto muito mais alto.

Baixar o nível do ideal é não só diminuir as probabilidades de alcançar a perfeição, mas destruir o próprio ideal. O ideal que nos atrai não foi inventado por ninguém; cada homem traz no coração. Só este ideal de absoluta e infinita perfeição nos seduz e nos atrai. Uma perfeição possível perderia qualquer influência sobre a alma humana.

A doutrina de Cristo tem grande poder exatamente porque requer a perfeição absoluta, isto é, a identificação do sopro divino que se encontra na alma de cada homem com a vontade de Deus, identificação do filho com o Pai. Libertar do animal o filho de Deus que vive em cada homem e aproximá-lo do Pai, apenas nisto está a vida, segundo a doutrina de Cristo.

A existência apenas do animal, no homem, não é a vida humana. A vida, somente segundo a vontade de Deus, tam­pouco é a vida humana. A vida humana é o conjunto da vida divina e da vida animal e, quanto mais este conjunto se apro­xima da vida divina, mais é vida.

A vida segundo a doutrina cristã é o caminho para a perfeição divina. Nenhum estágio, conforme esta doutrina, pode ser mais alto ou mais baixo do que o outro. Cada estágio não é senão uma etapa para uma perfeição irrealizável e, por consequência, não constitui por si só um grau mais ou menos alto da vida. O aumento da vida é apenas uma aceleração do movimento em direção à perfeição. Por isso o ímpeto para a perfeição do coletor de impostos Zaqueu, da pecadora, do ladrão na cruz constitui um mais alto grau da vida do que a imóvel infalibilidade do fariseu. Por isso não podem existir regras obrigatórias para esta doutrina. O homem colocado num grau inferior, caminhando em direção à perfeição, tem uma melhor conduta moral, observa mais a doutrina do que o homem colocado num grau bem mais alto, mas que não se encaminha para a perfeição.

É neste sentido que a ovelha desgarrada é mais cara ao Pai do que as outras; o filho pródigo, a moeda perdida e reencontrada são mais amados do que aqueles que nunca foram considerados perdidos.

O cumprimento da doutrina está no movimento do eu em direção a Deus. É evidente que isto não pode ter leis ou regras determinadas. Qualquer grau de perfeição ou imperfeição é igual frente a esta doutrina, cujo cumprimento não se consti­tui na obediência a lei alguma; por isso não podem existir re­gras ou leis obrigatórias.

Desta diferença radical entre a doutrina de Cristo e to­das aquelas que a precederam, baseadas sobre o conceito so­cial da vida, resulta também a diferença entre as leis sociais e os preceitos cristãos.

As leis sociais são, em sua maioria, positivas, recomen­dando certos atos, justificando e absolvendo os homens. Ao contrário, os preceitos cristãos (o mandamento do amor não é um preceito no verdadeiro sentido da palavra, mas a expres­são do próprio sentido da doutrina), os cinco mandamentos do Sermão da Montanha são todos negativos e não indicam senão aquilo que, num certo grau de desenvolvimento da hu­manidade, os homens não mais devem fazer. De qualquer for­ma, estes preceitos são como pontos de encontro na rota infinita da perfeição, em cuja direção caminha a humanida­de, e os graus de aperfeiçoamento acessível num dado perío­do de desenvolvimento.

No Sermão da Montanha, Cristo mostrou simultaneamen­te o ideal eterno ao qual os homens devem aspirar e os graus que já podem alcançar em nossos dias.

O ideal não é desejar fazer o mal, não provocar a male-volência, não odiar o próximo. Quanto ao preceito que indi­ca um dos graus abaixo do qual não se pode mais descer para alcançar este ideal, este é o da proibição de ofender os homens com a palavra. E este é o primeiro mandamento.

O ideal é não se preocupar com o amanhã e, sim, viver o presente. O mandamento que indica outro grau abaixo do qual não se pode descer é não jurar, nada prometer para ama­nhã. E este é o terceiro mandamento.

O ideal é nunca usar a violência para qualquer fim. O man­damento que indica um outro grau abaixo do qual não se po­de descer é não pagar o mal com o mal, sofrer a ofensa, dar a própria veste. E este é o quarto mandamento.

O ideal é amar aqueles que nos odeiam. O mandamento que indica mais outro grau abaixo do qual não se pode descer é não fazer mahaos próprios inimigos, falar bem deles, não fazer diferença entre eles e os amigos. E este é o quinto man­damento.

Todos estes mandamentos são indicações daquilo que, na rota da perfeição, não mais devemos fazer, daquilo que ago­ra nos devemos esforçar para transformar, pouco a pouco, em hábitos instintivos; mas, longe de constituir a doutrina de Cristo e de contê-la por inteiro, estes mandamentos são ape­nas uma das inúmeras etapas na rota da perfeição. E devem ser seguidos por mandamentos sempre superiores. - jfrpor isto, cabe à doutrina cristã formular exigências mais altas que as expressas por estes mandamentos, e não diminuí-los, como pensam os homens que julgam esta doutrina sob o ponto de vista do conceito social da vida.

Assim é o primeiro mal-entendido dos doutores quanto à importância e ao objetivo da doutrina cristã. O outro, pro­veniente da mesma fonte, consiste na substituição da obriga­ção cristã de amar e servir aos homens pelo amor a Deus, pela obrigação de amá-los e servi-los pelo amor à humanidade.

A doutrina cristã de amar e servir a Deus, e (apenas co­mo consequência deste amor e deste serviço) amar e servir ao próximo, parece aos doutores pouco clara, mística e ar­bitrária, e assim refutam, sem restrições, a obrigação de amar e servir a Deus, considerando que a doutrina que ensina so­mente o amor à humanidade é muito mais clara, sólida e sen­sata.

Os doutores ensinam, teoricamente, que a vida conscien­te e boa é aquela consagrada ao serviço de toda a humanida­de; nisto consiste, para eles, o sentido da doutrina cristã; e a isto se reduz o ensinamento de Cristo. Eles procuram a con­firmação de sua doutrina na do Evangelho, supondo que am­bas sejam uma única.

Esta opinião é, realmente, falsa. A doutrina cristã e a dos positivistas, dos comunistas e de todos os apóstolos da frater­nidade universal, alicerçada no interesse geral, nada têm em comum e distinguem-se uma das outras, principalmente, pelo fato de que a doutrina cristã tem bases firmes e claras na al­ma humana, enquanto a doutrina do amor à humanidade é apenas uma dedução teórica por analogia.

A única doutrina do amor à humanidade baseia-se no con­ceito social da vida.

A essência do conceito social da vida consiste na substi­tuição do sentido da vida pessoal pelo da vida em grupo: fa­mília, tribo, raça, Estado. Este fenómeno completou-se e completa-se fácil e naturalmente nos primeiros graus, isto é, na família ou na tribo; mas na raça e no povo torna-se mais difícil e requer uma educação especial; enfim, seu extremo li­mite encontra-se no Estado.

Amar a si mesmo é natural e cada um se ama sem preci­sar ser encorajado; amar a própria tribo, da qual se recebe ajuda e proteção; amar a própria mulher, felicidade e ampa­ro da vida; amar os próprios filhos, consolação e esperança da vida, e os pais de quem se recebeu a existência e a educa­ção, tudo isto é natural, e estes amores, embora muito menos potentes do que o amor a si próprio, podem ser, com frequên­cia, encontrados.

Amar por si, pelo próprio orgulho, a própria raça, o pró­prio povo, embora já não tão natural, é ainda frequente.

O amor à nação, este grupo da mesma origem, da mesma língua, da mesma religião, é também possível, ainda que este sentimento esteja longe de ser tão forte, não só como o amor por nós mesmos, mas como também pela própria família e pela pró­pria raça. Mas o amor pelo Estado, como a Turquia, a Alema­nha, a Inglaterra, a Áustria, a Rússia, já é algo quase impossível e, não obstante a educação dirigida nesse sentido, este amor é apenas suposto e na realidade não existe. Neste grupo, termina para o homem a possibilidade de conduzir a própria consciên­cia e de provar, por meio deste artifício, um sentimento direto; enquanto os positivistas e todos os apóstolos da fraternidade científica, sem levar em consideração a diminuição do sentimen­to à medida que se amplia o objetivo da afeição, continuam a raciocinar teoricamente e vão ainda mais longe por este caminho.

"Se o indivíduo tem interesse em estender o seu eu à famí­lia, à tribo, ao povo, ao Estado, está ainda mais interessado em estendê-lo ao complexo da humanidade, de modo que todos vi­vam para a humanidade, como cada um vive para a família e para o Estado" — dizem eles.

De fato, teoricamente, isto é lógico.

Já que o amor foi transferido da personalidade à famí­lia, desta à raça, depois ao povo, ao Estado, seria absoluta­mente lógico que os homens, para evitar as lutas e os males resultantes das divisões da humanidade em povos e Estados, transferissem seu amor para toda a humanidade. Isto parece­ria mais natural, e os teóricos assim pregam, sem se dar conta que o amor é um sentimento que se pode ter, mas não pregar, e que, ademais, o amor deve ter um objeto, enquanto a hu­manidade não o tem. Isto não é senão hipocrisia. ___pOamília, a tribo, o próprio Estado não foram inventa­dos pelo homem; estas instituições formaram-se por si mes­mas, como os enxames das abelhas e a sociedade das formigas, e têm uma existência realj O homem que ama, por sua perso­nalidade animal, a família, sabe que ama Ana, Maria, João, Pedro etc. O homem que ama a sua raça, e disto se orgulha, sabe que ama todos os guelfos e todos os gibelinos. Aquele que ama o Estado sabe que ama, por exemplo, a França, das margens do Reno até os Pireneus, e sua cidade principal, Pa­ris, e sua história etc. Mas o que ama o homem que ama a humanidade? Existem Estados, povos; neles está o conceito abstraio do homem, mas a humanidade como conceito con­creto não existe e não pode existir.

A humanidade? Onde estão os limites da humanidade? Onde ela termina? Onde começa? A humanidade acaba, tal­vez, exclusivamente, no selvagem, no idiota, no alcoólatra, no louco? Se traçamos uma linha que limite a humanidade, excluindo os representantes inferiores da espécie humana, onde traçaremos essa linha? Excluiremos os negros, como fazem os americanos? E os hindus, como certos ingleses? E os ju­deus, como muitos outros? E se englobarmos todos os homens, sem exceção, por que admitiremos apenas os homens, e não os animais superiores, muitos dos quais são mais desenvolvi­dos que os representantes inferiores da raça humana?

Não conhecemos a humanidade como um objeto exter­no; ignoramos seus limites. A humanidade é uma hipocrisia; não se pode amá-la. Seria muito útil, é verdade, que os ho­mens pudessem amar a humanidade tanto quanto amam a família. Seria muito vantajoso substituir, como desejam os co­munistas, a concorrência entre os homens por uma ordem co­mum, ou a propriedade individual pela propriedade universal, a fim de que cada um pudesse trabalhar para todos e todos para cada um: entretanto, não há razão para fazê-lo. Os po­sitivistas, os comunistas e todos os apóstolos da fraternidade científica pregam a extensão a toda a humanidade do amor que os homens sentem por si mesmos, por sua família e pelo Estado; esquecem-se de que o amor por eles pregado é um amor pessoal que, crescendo, foi capaz de abranger a família, e tam­bém o amor à pátria natural, mas que desaparece por com­pleto na presença de um Estado artificial, como a Áustria, a Inglaterra, a Turquia, e que não podemos sequer chegar a ima­ginar quando se trata de toda a humanidade — conceito absolutamente místico.

"O homem ama a si próprio, a sua personalidade ani­mal; ama sua família, ama também sua pátria. Por que não amaria do mesmo modo toda a humanidade? Como seria be­lo! Aliás, o cristianismo também o ensina." Assim pensam os seguidores da fraternidade positivista, comunista e socia­lista. De fato, a ideia seria muito bonita, mas não pode acon­tecer porque o amor baseado no conceito pessoal e social da vida não pode ir além do amor à pátria.

O erro de raciocínio consiste em que o conceito social da vida, sobre o qual se baseia o amor e a pátria, está, ele pró­prio alicerçado no amor à personalidade, e que este amor, estendendo-se da personalidade à família, à raça, à nação, en­fraquece cada vez mais e atinge, no amor ao Estado, seu limi­te extremo.

A necessidade de ampliar o domínio do amor é indiscutí­vel mas, ao mesmo tempo, esta necessidade destrói de fato a possibilidade do amor e prova a insuficiência deste amor no sentido pessoal humano.

E é então que os apóstolos das fraternidades positivista, comunista e socialista propõem, para evitar essa falência do amor humano, o amor cristão, mas somente diante destas con­sequências, e não destas causas. Eles propõem somente o amor à humanidade, sem o amor a Deus.

Mas este amor não pode existir; não tem qualquer razão de ser. O amor cristão resulta unicamente do conceito cristão da vida, conceito segundo o qual o objetivo essencial da vida é amar e servir a Deus.

Por um procedimento natural, o conceito social da vida conduziu os homens, do amor a si mesmo, à família, à na­ção, à pátria, até a consciência da necessidade do amor pela humanidade, que não tem limites e se confunde com tudo o que vive. Esta necessidade de amar algo que não desperte no homem qualquer sentimento fez surgir uma contradição que o conceito social da vida não pode resolver.

Somente a doutrina evangélica em todo seu significado a resolve, dando à vida um novo sentido. O cristianismo re­conhece, assim, o amor por si mesmo, bem como o amor à família, à nação e a humanidade, e não só à humanidade, mas também a tudo o que vive. Mas o homem não encontra o ob-jeto deste amor fora de si, no grupo de pessoas: família, raça, pátria, humanidade, tampouco no mundo exterior; ele o en­contra em si mesmo, em sua personalidade divina, cuja essência é este amor.

O que distingue a doutrina cristã das que a precederam é que a antiga doutrina social dizia: "Vive contrariamente a tua natureza (entendendo por isto apenas a natureza animal); submete-te à lei externa da família, da sociedade, do Estado." Por sua vez, o cristianismo diz: "Vive conforme a tua nature­za (referindo-se só à natureza divina); a nada a submetas, nem à natureza animal, nem à dos outros, e alcançarás exatamen-te aquilo que procuras submetendo às leis externas tua natu­reza externa."

A doutrina cristã reconduz o homem à consciência pri­mitiva de seu eu, não de seu eu animal, mas de seu eu divino, da centelha divina, de seu eu filho de Deus, Deus como Pai, mas envolto num invólucro animal. E a consciência de ser fi­lho de Deus, cuja essência é o amor, satisfaz a necessidade de ampliar os domínios do amor, necessidade à qual foi leva­do o homem do conceito social. Para este último, a salvação da personalidade exige de fato a ampliação cada vez maior dos domínios do amor; o amor é uma necessidade, em relação a determinados objetos: a si mesmo, à família, à socieda­de, à humanidade. Com o conceito cristão da vida, o amor não é uma necessidade e não se exerce sobre coisa alguma; é uma faculdade essencial da alma humana. O homem ama, não porque tenha interesse em amar isso ou aquilo, mas por­que o amor é a essência de sua alma, porque ele não pode dei­xar de amar.

A doutrina cristã ensina ao homem que a essência de sua alma é o amor, que sua felicidade não é a de amar tal ou tal entidade, mas sim o princípio de tudo, Deus, que ele tem a consciência de trazer consigo. Por isso ele amará todos e tu­do. Eis a diferença fundamental entre a doutrina cristã e a dou­trina dos positivistas e de todos os teóricos da fraternidade universal não-cristã.

São estes os dois principais mal-entendidos em relação ao cristianismo, dos quais resulta a maior parte dos raciocínios falsos de que é objeto. O primeiro consiste em acreditar que a doutrina de Cristo dá aos homens, como as doutrinas que a precederam, regras a que estes devam obedecer, e que tais regras sejam impraticáveis; o segundo, que toda a filosofia do cristianismo se reduz a fazer da humanidade uma só família, e que este resultado pode ser obtido com o simples amor à hu­manidade desvinculado do amor a Deus.

Enfim, a opinião errónea dos doutores, que o sobrena­tural é a essência do cristianismo, e que sua doutrina é impra­ticável, é também uma das causas pelas quais os homens de nosso tempo não compreendem o cristianismo.




































Capítulo V

Contradições entre nossa vida e a consciência cristã


A incompreensão da doutrina de Cristo por parte dos ho­mens tem causas diversas. Uma delas é que os homens crêem tê-la compreendido quando, como os fiéis da igreja, admiti­ram sua revelação sobrenatural, ou então quando, como os doutores, limitaram-se ao estudo dos fenómenos externos atra­vés dos quais ela se manifestou. Outra destas causas está na convicção de que ela é impraticável e pode ser substituída pe­la doutrina do amor à humanidade. Mas a principal destas cau­sas, a que é a fonte de todos os mal-entendidos, consiste na opinião de que o cristianismo é uma doutrina que se pode acei­tar ou rejeitar sem mudar de vida.

Os homens, habituados à ordem atual das coisas, à qual são afeiçoados e que receiam modificar, procuram entender a doutrina como um conjunto de revelações e regras, que se pode aceitar sem mudar de vida. Porém, o cristianismo não é apenas uma doutrina que dá normas para seguir, mas uma explicação nova do sentido da vida, uma definição da ação humana absolutamente diversa da antiga, porque a humani­dade entrou num novo período.

A vida da humanidade modifica-se, como a vida do indi­víduo, passando por diversas idades: cada idade tem, sobre a vida, um conceito correspondente, que os homens infalívelmente assimilam. Aqueles que não o assimilam com a razão assimilam-no inconscientemente. O que ocorre pela mudança do modo de encarar a vida pelos indivíduos, ocorre da mes­ma forma pela mudança do modo de encarar a vida pelos po­vos e por toda a humanidade. Se o pai de família continuasse a agir segundo o conceito de vida que ele tinha quando jo­vem, sua vida tornar-se-ia tão difícil que ele procuraria por si mesmo um outro conceito e, de bom grado, aceitaria aque­le que correspondesse a sua idade.

É isto o que hoje ocorre com a humanidade, no período de tempo que atravessamos, período de transição entre o con­ceito pagão de vida e o conceito cristão. O homem social de nosso tempo é levado pela própria vida à necessidade de re­jeitar o conceito pagão da vida, impróprio para a idade atual da humanidade, e a submeter-se às exigências da doutrina cris­tã, cujas verdades, por mais corruptas e mal-interpretadas que sejam, são, porém, por ele conhecidas e as únicas a lhe ofere­cer a solução para as contradições que o embaraçam.

Se o homem seguidor do conceito social considera as exi­gências do cristianismo estranhas e também perigosas, igualmen­te estranhas, incompreensíveis e perigosas pareciam ao selvagem das épocas antigas as exigências da doutrina social, quando ele ainda não as entendia e não podia prever suas consequências.

"É uma insensatez sacrificar a própria tranqüilidade e a própria vida pela defesa de algo incompreensível, intangível e convencional: a família, a raça, a pátria, e é sobretudo peri­goso colocar-se nas mãos de um poder estrangeiro'' — dizia ele.

Mas veio um tempo em que o selvagem compreendeu, ain­da que vagamente, o valor da vida social e de seu principal estímulo, a aprovação ou a reprovação social: a glória — e no qual, por outro lado, as dificuldades de sua vida pessoal tornaram-se tais que não podia continuar a acreditar no valor de seu antigo conceito da vida e precisou aceitar a doutrina social e a ela submeter-se.

O mesmo repete-se hoje com o homem social.

"É uma insensatez, diz ele, sacrificar a própria felicida­de, a da própria família e da própria pátria para satisfazer as exigências de algumas leis, superiores sim, mas incompatíveis com o sentimento melhor, mais natural, o amor a si próprio, à própria família, à própria raça, à própria pátria, e, é sobre­tudo perigoso abandonar a garantia da vida que assegura a ordem social" — continua ele a dizer.

Mas chega o tempo em que a vaga consciência da lei su­perior do amor a Deus e ao próximo e os sofrimentos resul­tantes das contradições da vida forçam o homem a rejeitar o conceito social e a aceitar o que lhe é proposto, que resolve todas as contradições e remedia todos os sofrimentos: o con­ceito cristão da vida. E este tempo chegou.

Nós que suportamos, por milhares de anos, a transição do conceito animal da vida ao conceito social, acreditamos que esta transição era então necessária, natural, enquanto aquela na qual nos encontramos há 1.800 anos nos parece arbitrária, artificial e assustadora. Mas nos parece assim somente porque a primei­ra transição já se completou e porque os costumes que fez nas­cer tornaram-se habituais, enquanto a transição presente ainda não terminou e devemos conscientemente levá-la adiante.

Longos séculos, milhares de anos passaram-se antes que o conceito social penetrasse na consciência dos homens. Ele passou por diversas formas e entrou hoje no domínio do in­consciente, por meio da herança, da educação e do hábito. Por isso nos parece natural. Mas, há cinco mil anos, parecia ao homem tão pouco natural e tão apavorante quanto lhes pa­rece, agora, a doutrina cristã, em seu verdadeiro sentido.

Parece-nos, hoje, que as exigências do cristianismo, a fra­ternidade universal, a supressão da nacionalidade, a supressão da propriedade e o tão estranho preceito da não-resistência ao mal com a violência são inaceitáveis. Mas pareciam, tam­bém, inaceitáveis, há milhares de anos, todas as exigências da vida social e mesmo as da vida doméstica, como a obrigação dos pais de nutrir os filhos e dos jovens de nutrir os velhos, ou mesmo a obrigação dos esposos de serem fiéis um ao outro. Mais estranhas ainda, até insensatas, pareciam as diversas exi­gências sociais, como a obrigação dos cidadãos de submeter-se ao poder, de pagar impostos, de guerrear em defesa da pá­tria etc. Todas estas exigências nos parecem, hoje, simples, com­preensíveis, naturais e nada vemos nelas de místico ou apavorante. Todavia, há cinco ou três mil anos pareciam inadmissíveis.

O conceito social servia de base às religiões porque, na época em que foi proposto aos homens, era absolutamente in­compreensível, místico e sobrenatural. Hoje, tendo atraves­sado esta fase da vida humana, compreendemos as causas racionais do agrupamento humano em famílias, comunidade, Estados; mas, na Antiguidade, a necessidade de tais reuniões foi apresentada em nome do sobrenatural e por ele confirmada.

As religiões patriarcais divinizavam a família, a raça, o povo; as religiões sociais divinizavam o rei, os Estados. Ainda hoje, a maior parte dos ignorantes — como nossos cam­poneses que chamam o czar de Deus terrestre — submetem-se às leis sociais, não segundo a consciência racionalizada de sua necessidade, não por terem uma ideia do Estado, mas por sen­timento religioso.

Do mesmo modo, hoje, a doutrina de Cristo aparece sob o aspecto de uma religião sobrenatural, enquanto, na verda­de, nada tem de misteriosa, mística ou sobrenatural. É sim­plesmente uma doutrina de vida, correspondente ao grau de desenvolvimento da idade em que se encontra a humanidade e que, em consequência, deve ser, por ela, aceita.

Virá o tempo — e já está vindo — no qual os princípios cristãos da vida — fraternidade, igualdade, comunhão de bens, não-resistência ao mal com a violência — parecerão tão sim­ples e tão naturais como hoje parecem os princípios da vida doméstica e social.

Nem o homem nem a humanidade podem voltar atrás. Os conceitos doméstico e social são fases atravessadas pelos ho­mens; é preciso que eles progridam e assimilem o conceito sub­sequente, superior; e isso já ocorre atualmente.

Este movimento é executado de dois modos simultâneos: conscientemente, como resultado de causas materiais; incons­cientemente, como sequência de causas materiais. Como um indivíduo isolado não muda sua existência por razoes apenas morais e, na maioria das vezes, continua a viver como no passado, apesar do novo sentido e da nova finalidade revelados pela razão, e só modifica sua vida quando esta se torna absolutamente contrária a sua consciência e, portanto, intolerável, assim também a humanidade, tendo aprendido com seus guias religiosos o novo sentido da vida, os novos objetivos que deve alcançar, continua ainda por longo tempo após esta ini­ciação a viver como no passado e não é induzida a aceitar o novo conceito senão pela impossibilidade de continuar a antiga vida.

Não obstante a obrigação de modificar a vida, obriga­ção formulada pelos guias religiosos, reconhecida pelos ho­mens mais inteligentes, e já parte da consciência, a maioria dos homens, mesmo mantendo um respeito religioso por es­tes guias, ou seja, a fé em sua doutrina, continua a seguir pe­lo caminho mais complicado, pelos princípios da antiga dou­trina, como faria um pai de família que, sabendo muito bem como é preciso viver em sua idade, continuasse, por hábito e por leviandade, a viver sua existência de menino.

Eis o que acontece no período de transição da humani­dade de uma idade para outra, que nesse momento atravessa­mos. A humanidade saiu da idade social e entrou numa nova. Porém, conhecedora da doutrina que deve servir de base a es­ta nova idade, continua, por inércia, a conservar as antigas formas de vida. Deste antagonismo do novo conceito com a prática da vida resulta uma série de contradições e sofrimen­tos que envenenam nossa existência e exigem sua modificação.

Basta, na realidade, comparar apenas a prática com sua teoria, para assustar-se frente à contradição flagrante das con­dições de nossa existência e de nossa consciência.

Toda nossa vida está em contradição constante com tu­do o que sabemos e que consideramos necessário e obrigató­rio. Esta contradição está em tudo, na vida económica, na vida política e na vida internacional. Como se tivéssemos esqueci­do o que aprendemos e posto provisoriamente de lado o que acreditamos justo, fazemos o contrário daquilo que pedem nos­sa razão e nosso bom senso.

Guiamo-nos, em nossas relações económicas, sociais e in­ternacionais, pelos princípios que eram bons para os homens há três e cinco mil anos, e que estão em contradição direta com nossa consciência atual, bem como com as condições da vida em que, hoje, nos encontramos.

O homem da Antiguidade podia julgar ser seu direito gozar os bens deste mundo em detrimento dos outros homens, fazendo-os sofrer de geração em geração, porque acreditavam que os homens pertenciam a diversas origens, nobres ou vis, estirpe de Jafé ou de Cam. Não só os maiores sábios do mun­do, os educadores da humanidade, Platão, Aristóteles etc, justificavam a escravidão e demonstravam sua legitimidade, como, há três séculos, os homens que descreveram a socieda­de imaginária do futuro, a Utopia, não conseguiam representá-la sem escravos. Os da Antiguidade e também os da Idade Mé­dia acreditavam que os homens não são iguais, que os verda­deiros homens eram somente os persas, somente os gregos, somente os romanos, somente os franceses: mas não mais po­demos acreditar nisso, e os que, em nossos tempos, se esfor­çaram tanto para defender a aristocracia e o patriotismo não podem acreditar naquilo que dizem.

Sabemos todos, e não temos como não saber, ainda que nunca houvéssemos ouvido ou lido coisa alguma a este respei­to, ainda que nós mesmos nunca houvéssemos expressado, impregnando-nos do sentimento que age na área cristã — sa­bemos com todo nosso coração, e não temos como não saber, que somos todos filhos de um só Pai, qualquer que seja o lugar em que moramos, qualquer que seja a língua que falamos; que somos todos irmãos e todos sujeitos ao julgamento da lei úni­ca do amor, colocada em nosso coração por nosso Pai comum.

Quaisquer que sejam as ideias e o grau de instrução de um homem de nosso tempo, um culto liberal de qualquer grau, um filósofo de qualquer sistema, um doutor, um economis­ta de qualquer escola, também um fiel de qualquer crença, cada homem sabe que todos os homens têm os mesmos di­reitos à vida e aos prazeres deste mundo, e que todos, nem piores ou melhores uns do que os outros, são iguais. Cada um sabe isto do modo mais absoluto e seguro. Entretanto, não só cada um vê a seu redor a divisão dos homens em duas cas­tas, uma lastimosa, sofrida, miserável, oprimida, e a outra ociosa, dominadora, vivendo no luxo e nas festas; mas além do mais, voluntariamente ou não, cada qual participa de um lado ou de outro da manutenção destas divisões que sua cons­ciência condena, 'porque não pode deixar de sofrer com esta contradição e com sua contribuição para este ordenamento.

Seja patrão ou escravo, o homem moderno não pode dei­xar de perceber a contradição constante, aguda, entre sua cons­ciência e a realidade, e deixar de conhecer os sofrimentos que daí resultam.

A massa trabalhadora, a grande maioria dos homens, su­portando a pena e as privações sem fim e sem razão que ab­sorvem durante toda a vida, sofrem ainda mais com esta flagrante contradição entre o que é e o que deveria ser, segun­do o que eles mesmos professam e o que professam aqueles que os reduziram a esse estado.

Eles sabem que vivem na escravidão e condenados à mi­séria e às trevas para o prazer da minoria que os escraviza. Sabem e dizem. É esta consciência não só aumenta seu sofri­mento, mas é sua principal causa.

O escravo antigo sabia que era escravo por natureza, en­quanto o nosso operário, sentindo-se escravo, sabe que não deveria sê-lo e, por isso, sofre o suplício de Tântalo, desejan­do sempre e jamais obtendo, não só o que lhe poderia ser con­cedido, mas sequer o que lhe é devido. Os sofrimentos das classes operárias, derivando da contradição entre o que é e o que deveria ser, decuplicam com a inveja e com o ódio resul­tantes da consciência desta situação.

O operário de nosso tempo, ainda que seu trabalho seja me­nos penoso do que o do escravo antigo, ainda que obtenha a jor­nada de oito horas e o salário de poucas liras por dia, não deixaria de sofrer porque, fabricando objetos dos quais não tem o prazer do uso, trabalha não para si e voluntariamente, mas por necessidade, para a satisfação dos ricos e dos ociosos, e para o proveito de um só capitalista (proprietário de fábrica ou es­tabelecimento industrial). Sabe que isto ocorre num mundo em que é reconhecida a máxima científica de que só o trabalho alheio é uma injustiça, um delito punido por lei, num mundo que professa a doutrina de Cristo, segundo a qual somos todos irmãos, e que não se reconhece ao homem outro mérito senão o de vir em auxílio do próximo, ao invés de explorá-lo.

Ele sabe tudo isso e não pode deixar de sofrer devido a esta flagrante contradição entre o que é e o que deveria ser.

Segundo todos os dados e segundo tudo o que eu sei do que acontece no mundo eu deveria ser livre, amado, igual a todos os outros homens e, em vez disto, sou escravo, humi­lhado, odiado." Diz para si mesmo o trabalhador.

E ele também odeia e procura o modo de sair de sua si­tuação, de livrar-se do inimigo que o oprime e de, por sua vez, oprimi-lo.

Diz-se: "Os operários estão errados ao desejarem colocar-se no lugar do capitalista, o pobre no lugar do rico." É falso. O trabalhador e o pobre seriam injustos se assim o desejas­sem no mundo em que escravos e patrões, ricos e pobres são reconhecidos como sucedâneos de Deus; mas eles assim o de­sejam num mundo no qual se professa a doutrina evangélica, cujo primeiro princípio é que todos os homens são filhos de Deus, donde resultam a fraternidade e igualdade de todos. E, não obstante todos os esforços dos homens, não é possível es­conder que uma das principais condições da vida cristã é o amor não a palavras, mas a fatos.

O homem da classe que se diz culta sofre até mais com as contradições de sua vida. Cada membro desta classe, se acredi­ta em algo, acredita, senão na fraternidade dos homens, pelo menos num sentimento de humanidade ou na justiça, ou na ciên­cia; e ele sabe, entretanto, que toda sua vida está estabelecida sobre princípios diretamente opostos a tudo isso, a todos os prin­cípios do cristianismo, da humanidade, da justiça e da ciência. Ele sabe que todos os hábitos em meio aos quais foi edu­cado, e cujo abandono lhe seria penoso, só podem ser satis­feitos por meio de um trabalho árduo, muitas vezes fatal, dos operários oprimidos, isto é, pela violação mais evidente, mais grosseira, daqueles mesmos princípios de cristianismo, de hu­manidade, de justiça e até de ciência (e omite as exigências da economia política) por ele professados. O homem ensina princípios de fraternidade, de humanidade, de justiça, de ciên­cia, mas não só vive de modo a ser obrigado a recorrer à opres­são do trabalhador, a qual reprova, mas ainda toda sua vida repousa sobre os benefícios desta opressão, assim dirigindo toda sua ação para a manutenção deste estado de coisas abso­lutamente contrário a todos os princípios que professa.

Somos todos irmãos, e, no entanto, a cada manhã, este ir­mão ou esta irmã fazem para mim os serviços que não desejo fazer. Somos todos irmãos — e no entanto preciso a cada dia de charuto, de açúcar, de espelho e de outros objetos em cuja fabricação meus irmãos e minhas irmãs, que são meus seme­lhantes, sacrificaram e sacrificam sua saúde; e sirvo-me destes objetos, e até os reclamo como meu direito. Somos todos irmãos — e no entanto ganho a vida trabalhando num banco, ou nu­ma casa de comércio, num estabelecimento cujo resultado é tor­nar mais custosas todas as mercadorias necessárias a meus irmãos. Somos todos irmãos — e no entanto vivo e sou pago para interrogar, julgar e condenar o ladrão e a prostituta, cuja existência resulta de todo meu modo de viver e a quem não se deve, como sei, condenar ou punir. Somos todos irmãos — e vivo e sou pago para recolher impostos dos trabalhadores ca­rentes e empregá-los para o bem-estar dos ociosos e dos ricos. Somos todos irmãos — e sou pago para pregar aos homens uma suposta fé cristã, na qual eu mesmo não creio, e que os impede de conhecer a verdadeira fé; recebo salário como padre, como bispo, para enganar os homens nas questões, para eles, mais es­senciais. Somos todos irmãos — mas não forneço ao pobre se­não por dinheiro meu trabalho de pedagogo, de médico, de literato. Somos todos irmãos — e eu me preparo para o assassinato; aprendendo a assassinar, fabrico armas, pólvora, cons­truo fortalezas e por isso sou pago.

Toda a vida de nossas classes superiores é uma constante contradição, tanto mais dolorosa para um homem quanto sua consciência é mais sensível e mais elevada.

O homem dotado de uma consciência impressionável não pode deixar de não sofrer com tal vida. O único meio para livrar-se desse sofrimento é impor silêncio à própria consciên­cia; mas, se alguns conseguem isso, não conseguem impor si­lêncio a seu medo.

Os homens das classes superiores opressivas, cuja cons­ciência é pouco impressionável ou que tenham sabido fazê-la calar, se não sofrem devido a ela, sofrem com o medo e com o ódio e não conseguem deixar de sofrer. Conhecem todo o ódio que contra eles nutrem as classes trabalhadoras; não ignoram que os operários são enganados e explorados e que co­meçam a se organizar para combater a opressão e vingar-se dos opressores. As classes superiores vêem as associações, as greves, o 1? de maio e sentem o perigo que os ameaça, e este medo envenena sua vida e transforma-se num sentimento de defesa e de ódio. Sabem que, enfraquecendo por um instante na luta contra os escravos oprimidos, perecerão, porque os escravos estão exasperados e porque cada dia de opressão au­menta essa exasperação. Os opressores, ainda que quisessem, não poderiam dar fim à opressão. Sabem que eles próprios pereceriam, não apenas logo que deixassem de ser opressores, mas também assim que dessem sinais de enfraquecimento. Por isto não enfraquecem, apesar de seus supostos cuidados com o bem-estar do operário, das jornadas de oito horas, das leis trabalhistas para o menor e a mulher, das caixas de pensão e de recompensas. Tudo isso nada é senão prepotência ou de­sejo de deixar ao escravo a força de trabalho; mas o escravo permanece escravo e o patrão, que não pode ficar sem ele, es­tá menos disposto do que nunca a libertá-lo.

As classes dirigentes encontram-se, face às classes traba­lhadoras, na situação de um homem que houvesse jogado ao chão seu adversário e não o soltasse, não tanto porque não o quisesse, mas porque um momento de liberdade concedido a seu inimigo, irritado e armado com uma faca, bastaria para que este o degolasse.

Por isso, impressionáveis ou não, nossas classes abasta­das não podem, como os antigos que acreditavam em seus di­reitos, gozar das vantagens das quais despojaram o pobre. Toda sua vida e todos seus prazeres são perturbados pelo re­morso e pelo medo.

Assim é a contradição económica. Mais surpreendente ain­da é a contradição política. Todos os homens são educados, antes de tudo, no hábito da obediência às leis. Toda a vida de nossos tempos baseia-se nestas leis. O homem se casa, se divorcia, cria os filhos e até mesmo professa uma crença (em muitos países) de acordo com as leis. Qual é então essa lei sobre a qual repousa toda nossa existência? De fato, nenhuma. Ademais, os homens de nosso tempo não acreditam na justiça dessas leis, desprezam-nas e por isso não se submetem a elas. Compreende-se que os homens da Antiguidade se tenham sujeitado a sua lei; real­mente acreditavam que essa lei (que em geral era também re­ligiosa) fosse a única, a verdadeira, aquela a que todos os homens devem sujeitar-se. Mas, e nós? Nós sabemos e não temos dúvida de que a lei do nosso Estado não é a única, a eterna lei, mas somente uma lei como as outras, tão numero­sas, dos outros Estados, igualmente imperfeita e muitas vezes também claramente falsa e injusta. Compreende-se que os ju­deus tenham obedecido as suas leis, uma vez que não duvida­vam que Deus as houvesse escrito com seu dedo, o mesmo se compreende com relação aos romanos, que as acreditavam di­tadas pela ninfa Egéria. Compreende-se até a obediência às leis quando se acreditava que os soberanos que as ditaram eram os representantes de Deus na Terra, ou quando as assembleias legislativas que as elaboraram foram animadas pelo desejo de fazê-las o melhor possível e tiveram a habilidade de consegui-lo. Mas todos sabemos como são feitas estas leis. Estivemos todos nos bastidores; sabemos que são geradas pela cobiça, pela astúcia, pela luta entre os partidos; que nelas não há e não pode haver justiça real. Por isso os homens de nosso tempo não podem crer que a submissão às leis sociais e políticas sa­tisfaça às exigências da razão e da natureza humana. Os ho­mens de há muito sabem que é irracional submeter-se a uma lei cuja verdade é dúbia e, portanto, não podem deixar de so­frer ao se submeterem a uma lei cujo bom senso e cujo caráter obrigatório eles não reconhecem.

O homem não pode deixar de sofrer quando toda sua vida é regulada antecipadamente por leis às quais ele deve obe­decer sob ameaça de castigo, ainda que não acredite em sua sabedoria e justiça e que até, muitas vezes, tenha plena cons­ciência de sua crueldade e de seu caráter artificial.

Reconhecemos a inutilidade das alfândegas e das taxas de entrada, mas somos obrigados a pagá-las. Reconhecemos a inu­tilidade das listas civis e de muitas outras despesas governamen­tais; consideramos nocivos os ensinamentos da igreja, e devemos contribuir para a manutenção destas instituições. Reconhecemos como cruéis e injustas as condenações pronunciadas pe­los tribunais e somos obrigados a participar desta justiça. Re­conhecemos ser irregular e funesta a distribuição da propriedade rural, e devemos suportá-la. Não reconhecemos a necessidade do exército e da guerra, e devemos pagar terríveis impostos pa­ra a manutenção das tropas e para as despesas da guerra.

Mas esta contradição não é nada se comparada àquela que se ergue diante dos homens em suas relações internacionais e que, sob pena de perda da razão e da vida humana, exige uma solução: a contradição entre a consciência cristã e a guerra.

Todos nós, povos cristãos, que participamos da mesma vida espiritual, de tal modo que cada pensamento generoso, fecundo, que nasce numa extremidade da Terra, comunica-se imediatamente a toda humanidade cristã e provoca por toda a parte o mesmo sentimento de alegria e orgulho, a despeito das nacionalidades; nós, que amamos o pensador, o filantro­po, o poeta, o sábio estrangeiro; nós, que estamos orgulho­sos com o empreendimento de Damien1, como se nosso fosse; nós, que simplesmente amamos os estrangeiros, franceses, ale­mães, americanos, ingleses; nós, que pregamos suas qualida­des, que ficamos felizes ao encontrá-los, que os acolhemos com prazer, que não só não podemos considerar como um ato he­róico a guerra contra eles, mas que também não podemos pen­sar sem terror que uma desavença tão grave possa ser defla­grada entre nós e eles, nós somos todos chamados a partici­par da carnificina que inevitavelmente deve acontecer senão hoje, pelo menos amanhã.

1Empreendimento feito por Joseph De Veuster, que, em 1863, transferiu-se para a Oceania e consagrou-se a cuidar de leprosos, dos quais contraiu a doença. Seu nome religioso era Padre Damien. (N. do E.)


Compreende-se que os judeus, os gregos, os romanos ha­jam defendido sua independência com o assassinato e que, pelo assassinato, outros povos os hajam submetido, porque cada um deles acreditava firmemente ser o único povo escolhido, bom e amado por Deus, enquanto os outros não eram senão filisteus ou bárbaros. Os homens da Idade Média, e também aqueles do final do século XVIII e do princípio deste, podiam ainda ter a mesma crença. Mas nós, apesar de todas nossas excitações, não mais podemos tê-la. E esta contradição é tão terrível em nossos tempos que não mais podemos viver sem encontrar uma solução.

O conde Komarovsky, professor de Direito Internacio­nal, escreve em suas sábias memórias:

Os nossos tempos são ricos em contradições de toda a espé­cie; a imprensa de todos os países nos fala, em todos os tons, da necessidade da paz entre os povos e deseja-a ardentemente. Os membros dos governos declaram-no, assim como órgãos oficiais e privados; disto se fala na câmara dos deputados, nas correspon­dências diplomáticas e até nos tratados que se concluem. A paz está em todas as bocas e, no entanto, os governos a cada ano au­mentam seus armamentos, introduzem novos impostos, fazem em­préstimos e elevam desmedidamente seus débitos, deixando às gerações futuras o trabalho de reparar todos os erros de nossa política insensata. Que lamentável contraste entre palavras e atos! E o que fazem os governos para justificar seus armamentos e o déficit de seus balanços? Colocam absolutamente tudo na conta exclusiva da defesal Mas eis o ponto obscuro, o que nenhum ho­mem imparcial pode ou poderá compreender: de que parte virá o ataque se, em sua política, todas as grandes potências são unâ­nimes ao objetivar a defesa. É, todavia, evidente que cada uma destas potências está pronta, a cada minuto, para atacar as ou­tras. Eis o que causa uma desconfiança geral, bem como os es­forços sobre-humanos de cada Estado para superar em forças militares todos os outros: competem para apresentar no campo de batalha a multidão mais imponente.

Tanta rivalidade é por si só o maior perigo de guerra; os po­vos não podem prolongar ao infinito este estado de coisas e cedo ou tarde deverão preferir a guerra à tensão em que agora vivem e à destruição que os ameaça. Então o mais fútil pretexto bastará para acender o fogo da guerra em toda a Europa, de uma extre­midade à outra. E esperamos em vão salvar-nos, com a crise, das calamidades políticas e económicas que nos oprimem. A experiên­cia das últimas guerras nos demonstrou suficientemente que ca­da uma delas rendeu o mais profundo ódio entre os povos, o peso do militarismo mais insuportável e o estado político e económico da Europa mais triste e mais difícil.

Por sua vez escreve Enrico Fermi:

A Europa moderna tem um exército de nove milhões de ho­mens, e cerca de quinze milhões na reserva, e gasta quatro bilhões de libras por ano. Armando-se cada vez mais, esgota as fontes do bem-estar social e individual; e poderia facilmente ser compa­rada a um homem que, para conseguir armas, condena-se à ane­mia, perdendo as forças de que precisa para se servir das armas que conseguiu e sob cujo peso acaba por sucumbir.

O mesmo diz Charles Booth, em seu discurso lido em Lon­dres na Associação Pela Reforma e Codificação da Lei das Nacionalidades, a 26 de julho de 1887. Após haver mencio­nado a mesma cifra de nove milhões de homens no exército ativo e dezessete milhões na reserva, e as enormes despesas dos governos para a manutenção e o armamento destes exér­citos, ele acrescenta:

Estas cifras não representam senão uma ínfima parte da des­pesa real, porque, além destas despesas conhecidas do balanço de guerra das diversas nações, devemos também considerar as in­calculáveis perdas causadas à sociedade pela absorção de uma quantidade tão considerável de homens que, escolhidos entre os mais vigorosos, são tirados da indústria e de qualquer outro tra­balho, além dos enormes juros das quantias despendidas em pre­parativos militares que nada rendem. A inevitável consequência destas despesas de guerra e dos preparativos militares é o aumen­to progressivo dos débitos do Estado. A maior parte dos débitos dos Estados da Europa foi feita em previsão da guerra. Seu total soma quatro bilhões de libras esterlinas, ou cem bilhões de liras, e estes débitos aumentam a cada ano.

O mesmo Komarovsky diz, em outra parte:

Vivemos em tempos penosos. Ouvem-se por todos os lu­gares lamentações em torno da estagnação do comércio e da in­dústria, e em geral em torno da má situação económica: são evi­denciadas duras condições da vida das classes operárias e o em­pobrecimento das massas. Inventam-se, por toda a parte, no­vos impostos, e a opressão financeira das nações não tem limites.

Se examinarmos os balanços dos Estados da Europa durante os últimos cem anos, o que antes de tudo nos chama a atenção é seu aumento progressivo e rápido. Como podemos explicar este ex­traordinário fenómeno que mais cedo ou mais tarde ameaça os Estados de uma inevitável falência?

Isso provém certamente das despesas para a manutenção dos exércitos que absorvem a terça parte ou até mesmo a metade do balanço de todos os Estados da Europa. O mais triste é que não se vê o final deste aumento dos balanços e do empobrecimento das massas. O que é o socialismo senão um protesto contra esta situação extremamente anormal na qual se encontra a maior par­te da população de nosso continente?

Já Frédéric Passy, no último Congresso Universal da Paz, em Londres (1890), diz:

Arruinamo-nos para tomar parte nos loucos massacres do fu­turo, ou para pagar os juros dos débitos para nós deixados pelos loucos e criminosos massacres do passado. E, como dizia recen­temente um dos nossos poetas do jornalismo, 'morramos de fo­me para nos podermos matar'.

Falando mais sobre o modo como esta questão é consi­derada na França, acrescenta:

Acreditamos que, cem anos após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, chegou o tempo de reconhecer os di­reitos das nações e de renunciar para sempre a todas estas faça­nhas de mentira e violência que, sob o nome de conquistas, são verdadeiros crimes de lesa-humanidade e que, não obstante o que pensam a ambição dos soberanos e o orgulho dos povos, debili­tam até aqueles que triunfam.

Já Sir Wilfred Landon diz no mesmo congresso:

A educação religiosa do nosso país surpreende-me. O rapaz vai à escola dominical e lhe dizem: "Meu caro rapaz, deves amar os teus inimigos. Se um companheiro te bate, não te deves vin­gar, mas sim procurar reconduzi-lo, pela suavidade, a melhores sentimentos." Muito bem. O rapaz frequenta a escola dominical até os 14 ou 15 anos; depois os seus amigos fazem-no entrar para o exército. O que acontecerá? Ele deve, não amar o inimigo, mas, ao contrário, transpassá-lo com sua baioneta tão logo o encon­tre. Assim é a instrução religiosa neste país. Não creio que seja esta a melhor maneira de obedecer aos mandamentos da religião. jCreio que, se é bom para um rapaz amar seu inimigo, também é bom para um adulto...

E F. Wilson:

Existem na Europa 28 milhões de pessoas armadas para resolver as questões não pelo debate, mas pelo massacre. Esta é a rma de discutir, em uso, nas nações cristãs. Esta forma é, ao, ?smo tempo, muito dispendiosa, porque, segundo as estatísti­cas, por mim consultadas, as nações da Europa gastaram, de |1872] até hoje, a inacreditável soma de sessenta bilhões, unica-í mente para preparar a solução de suas questões por meio do mas4 sacre recíproco. Parece-me então que, nesta ordem de ideias, deva aceitar um dos dois finais para este dilema: ou o cristianis-j mo não deu certo (is afailure), ou aqueles que assumiram a mis-« são de interpretá-lo compreenderam-no mal. Até que nossosj encouraçados sejam desarmados e nossos exércitos dispensados,} não teremos o direito de nos chamar uma nação cristã.

Numa conversa a respeito da obrigação, para os pasto­res cristãos, da propaganda contra a guerra, G. D. Bartlett disse, entre outras coisas:

Se compreendo um pouco a Sagrada Escritura, afirmo que os homens não fazem outra coisa senão fingir sua fé no cristia­nismo, não levando em consideração a guerra. Entretanto, du­rante toda a minha existência, ouvi apenas meia dúzia de vezes nossos pastores pregarem a paz universal. Eu disse, há vinte anos, que a guerra é inconciliável com o cristianismo. Mas consideraram-me um fanático insensato. A ideia de que se possa viver sem guerra foi acolhida como uma imperdoável fraqueza, uma loucura.

O padre católico Defourny exprimiu-se no mesmo sentido:

Um dos primeiros preceitos da lei eterna, resplandecente na consciência dos homens, é o que proíbe tirar a vida ao próprio semelhante, espalhar o sangue humano sem causa justa, ou sem ser obrigado pela necessidade. É um dos preceitos mais profunda­mente impressos no coração do homem... Mas, tratando-se da guerra, isto é, do derramamento de torrentes de sangue humano, os homens de hoje não mais se importam com a justa causa. Os que dela tomam parte não mais pensam em se perguntar se estas inúmeras mortes são ou não justificáveis, ou seja, se as guerras, ou aquilo que se entende por este nome, sejam justas ou iníquas, legais ou ilegais, lícitas ou criminosas; se, ao manejar o fogo que consome os bens e a arma que destrói as vidas humanas, eles vio­lam ou não a lei primordial que proíbe o homicídio, a matança, o saque e o incêndio sem justa causa. Sua consciência emudece quanto a isto... A guerra deixou de ser, para eles, um ato depen­dente da moral. Eles não têm outra alegria, nas fadigas e nos pe­rigos dos campos, além de serem vencidos...

Muito tempo transcorreu desde que um génio poderoso vos dis­se essas palavras que se tornaram proverbiais: "Tirai a justiça, o que são os impérios, além de vastas sociedades de bandidos?" E as com­panhias de bandidos não são também estes pequenos impérios? Até os bandidos possuem certas leis ou convenções que os regem. Eles também se batem pela conquista da presa ou pelo ponto de honra da quadrilha... Assim, senhores, vos peço em grande confiança que adoteis o princípio da instituição proposta (trata-se da instituição de um tribunal de arbítrio internacional) a fim de que as nações eu­ropeias deixem de ser nações de ladrões, e os exércitos quadrilhas de bandidos e piratas; devo acrescentar: de escravos... Os exércitos são rebanhos de escravos, escravos de um ou dois governantes, de um ou dois ministros, que deles dispõem tiranicamente, sem qual­quer outra garantia além de uma responsabilidade puramente no­minal, como bem sabemos... O que caracteriza o escravo é que ele está nas mãos do seu patrão, como uma coisa, um utensílio, e não mais um homem. Assim acontece com o soldado, com o oficial, com o general, que marcham para o sangue e o fogo sem pensamento de justiça, pela vontade arbitrária dos ministros nas condições ex­postas. Assim existe a escravidão militar, e é a pior das escravidões, sobretudo hoje que põe, com o recrutamento, a corrente no pesco­ço de todos os homens livres e fortes da nação para deles fazer ins­trumentos de morte, homicidas por profissão, açougueiros de carne humana, porque este é o único opusservile em previsão do qual são acorrentados e adestrados.

Os governantes, em número de dois ou três, pouco mais ou pouco menos, reunidos num gabinete secreto, deliberando sem registros e sem processo verbal destinado à publicidade, falando sem responsabilidade possível... poderiam talvez ordenar assim massacres se a consciência não fosse apagada?

Também diz E.T. Moneta:

Os protestos contra os armamentos desastrosos para o po­vo não começaram em nossos tempos. Ouvi o que escreveu Mon-tesquieu em sua época: "A França (hoje poder-se-ia dizer a Euro­pa) perecerá devido ao militarismo. Uma nova doença espalhou-se pela Europa. Atacou os reis e obriga-os a manter inúmeros exér­citos. Esta doença é infecciosa e, em consequência, contagiosa, porque tão logo um estado aumenta o seu exército, os outros fa­zem o mesmo. De modo que não resulta senão na perda de to­dos. Cada governo mantém tantos soldados quantos poderia man­ter se seu povo fosse ameaçado de extermínio; e os homens chamam paz a este estado de tensão de todos contra todos. Por isso a Europa está tão arruinada que, se os desprovidos estives­sem na situação dos governos deste lado do mundo, os mais ricos entre eles não teriam do que viver. Somos pobres, possuindo as riquezas e o comércio do mundo inteiro!"

Isto foi escrito há quase 150 anos. O quadro parece ter sido feito hoje. Só o regime governamental mudou. Ao tempo de Montesquieu dizia-se que a causa da manutenção dos exércitos nume­rosos estava no absolutismo dos reis que guerreavam na esperança de aumentar, através das conquistas, suas propriedades privadas e sua glória.

Evidentemente a loucura dos soberanos tomou conta das clas­ses dirigentes. Agora não mais se guerreia porque um rei foi des cortês com a amante de um outro, como aconteceu na época de Luís XIV. Porém, exagerando o sentimento honrado e natural de dignidade nacional e do patriotismo, e exacerbando a opinião pú­blica de uma nação contra outra, chega-se ao ponto em que bas­tou dizer-se (embora a notícia fosse inexata) que o embaixador de nosso país não foi recebido pelo chefe de outro Estado, para que explodisse a mais terrível e mais assustadora guerra. A Euro­pa mantém agora em armas mais soldados do que durante as gran­des guerras de Napoleão.

Todos os cidadãos, salvo raras exceções, são obrigados, em nosso continente, a passar inúmeros anos de suas vidas nos quar­téis. Constroem-se fortalezas, arsenais, navios; fabricam-se continuamente armas que serão, em pouquíssimo tempo, substituídas por outras, porque a ciência, que deveria ter sempre como alvo o bem da humanidade, concorre desgraçadamente para a obra da destruição e sem cessar inventa novos meios de matar grandes quantidades de homens, no menor tempo possível.

E, para manter tantos soldados e fazer tão grandes prepara­tivos de carnificina, gastam-se a cada ano centenas de milhões, ou seja, somas que bastariam para a educação do povo e a reali­zação dos mais grandiosos trabalhos de utilidade pública e que gerariam a possibilidade de resolver pacificamente a questão social.

A Europa, por conseguinte, encontra-se, neste aspecto, não obstante todas as nossas conquistas científicas, na mesma situa­ção em que se encontrava nos piores e mais bárbaros dias da Ida­de Média. Todos se queixam deste estado que não é nem a guerra, nem a paz, e dele todos gostariam de sair. Os chefes de diversos Estados afirmam desejar a paz, e competem para fazer, solene­mente, declarações as mais pacíficas. Mas, no mesmo dia, ou no seguinte, apresentam aos parlamentares projeto de lei para o au­mento dos efetivos, dizendo tomarem medidas preventivas, pre­cisamente com o fim de garantir a paz.

Mas esta não é a paz que preferimos, e as nações não se ilu­dem. A verdadeira paz baseia-se na confiança recíproca, enquan­to estes formidáveis armamentos revelam entre os Estados senão uma hostilidade declarada, ao menos uma desconfiança oculta. O que diremos de um homem que, querendo demonstrar seus sen­timentos amigáveis a seu vizinho, o convidasse a examinar as ques­tões que os dividem, com o revólver na mão?

E é esta flagrante contradição entre as declarações pacíficas e a política militar dos governos que todos os bons cidadãos gos­tariam de fazer cessar a qualquer custo.

As pessoas surpreendem-se que sessenta mil suicídios ocor­ram a cada ano na Europa, e esta cifra contém somente os casos conhecidos e registrados, excetuadas a Rússia e a Tur­quia. Seria antes preciso supreender-se por ocorrerem tão pou­cos. Cada homem de nosso tempo, se penetrarmos na con­tradição entre sua consciência e sua vida, encontra-se na mais cruel situação. Sem falar de todas as outras contradições en­tre a vida real e a cpnsciência que preenchem a existência do homem moderno, bastaria esse estado de paz permanente e sua religião cristã, para que o homem, desesperado, duvidas­se da razão humana e renunciasse à vida num mundo tão in­sensato e bárbaro. Esta contradição, requinte de todas as outras, é tão terrível que viver dela participando só é possível caso nela não pensemos, caso a esqueçamos. Mas como! Todos nós, cristãos, não só professamos o amor ao próximo, como também vivemos realmente uma vi­da comum, uma vida cujo pulso bate num só movimento; ajudando-nos mutuamente, ensinamos uns aos outros cada vez mais, para a felicidade comum, aproximamo-nos uns dos ou­tros com amor! — e nesta aproximação está o sentido da vida —, para amanhã algum chefe de Estado, fora de si, dizer uma tolice qualquer a que um outro responderá com uma outra to­lice, e iremos nos expor à morte e matar homens que não só nada nos fizeram, mas que amamos! — E esta não é uma pro­babilidade longínqua, mas uma inevitável certeza, para a qual todos nos preparamos.

Basta, de modo claro, ter consciência para enlouquecer ou suicidar-se. E é isto o que acontece, sobretudo entre os militares.

Basta voltar a si por um momento para sermos reduzi­dos à necessidade de um tal fim.

Só estas razões podem explicar a intensidade terrível com a qual o homem moderno procura embrutecer-se com o vi­nho, o fumo, o ópio, o jogo, a leitura dos jornais, com via­gens e com toda a espécie de prazeres e espetáculos. As pessoas abandonam-se a isso como a uma ocupação séria e importan­te, e de fato assim é. Se não houvesse um meio externo de em­brutecimento, a metade do género humano far-se-ia explodir imediatamente o cérebro, porque viver em contradição com a própria razão é a situação mais intolerável. E todos os ho­mens de nosso tempo encontram-se nesta situação; todos vi­vem numa contradição constante e flagrante entre sua cons­ciência e sua vida. Estas contradições são económicas e poéti­cas, mas a mais notável está na consciência da lei cristã da fra­ternidade dos homens e, ao mesmo tempo, da necessidade que aos homens impõe o serviço militar obrigatório, a necessida­de de ser preparado para o ódio, para a matança, de ser ao mesmo tempo cristão e gladiador.



















Capítulo VI

Os homens de nossa sociedade e a guerra


A solução das contradições entre a vida e a consciência é possível de duas maneiras. Mudar a vida ou mudar a cons­ciência. E não parece que possa existir dúvida na escolha.

O homem pode deixar de fazer aquilo que considere ruim, mas não pode deixar de achar ruim aquilo que é ruim.

Da mesma forma, toda a humanidade pode deixar de fa­zer aquilo que acha ruim, mas não pode não só mudar, mas nem mesmo deter por um momento o progresso da consciên­cia, cada dia mais lúcida e mais difundida, do que é ruim e, portanto, não deve existir. Por isso parece inevitável, para a humanidade cristã de nosso tempo, a necessidade de renegar as formas pagãs que condena e de tomar como base de sua vida os princípios cristãos que reconhece.

Assim seria se não existisse a lei da inércia, imutável, tanto na vida dos homens e dos povos, como nos objetos inanima­dos, e que se exprime nos homens pela lei psicológica tão bem formulada nas palavras do Evangelho: "E eles não caminha­ram para a luz, porque suas ações eram más." Esta lei existe devido ao que se segue: que a maior parte dos homens não pensa com a finalidade de conhecer a verdade; mas para persuadir-se de que vivem na verdade; para convencer-se de que a vida que vivem, acham agradável e à qual estão habituados é precisamente aquela que se harmoniza com a verdade.

A escravidão foi contrária a todos os princípios morais que pregavam Platão e Aristóteles, no entanto, nem um nem outro perceberam que a supressão da escravidão teria destruído todas as regras da vida à qual estavam acostumados. E o mes­mo acontece em nossos tempos.

A divisão dos homens em duas castas, como também a violência política e militar, é contrária a todos os princípios morais que nossa sociedade professa, entretanto os homens cultos de sua vanguarda não parecem percebê-lo.

Os homens modernos, cultos, senão todos, ao menos em sua maioria, esforçam-se inconscientemente para reter o anti­go conceito social da vida, que justifica sua posição, escon­dendo de si mesmo e dos outros a insuficiência deste conceito e, sobretudo, ocultando a necessidade de adotar o conceito cristão que destrói toda a ordem atual das coisas. Procuram manter o regime fundado no conceito social de vida, em que nem eles mesmos acreditam, porque isto é antigo e não se po­de mais acreditar.

Toda a literatura filosófica, política e artística de nosso tempo é característica, neste ponto. Que riquezas de ideias, de formas, de cores! Que erudição e que arte e, ao mesmo tem­po, que ausência de teses sérias, que timidez diante da ex­pressão de cada pensamento exato! Das sutilezas, das ale­gorias, das brincadeiras, os conceitos mais vastos, e nada de simples, de preciso, que se refira ao assunto tratado, ou seja, a questão da vida. E mais: escrevem-se e contam-se futilidades graciosas ou francas impudicícias, divulgam-se embus­tes, sustentam-se os paradoxos mais refinados, que recondu­zem o homem à selvageria primitiva, aos princípios da vida não só pagã, mas também animal, pela qual passamos há cin­co mil anos.

Aliás, não pode ser de outro modo. Dando as costas ao conceito cristão da vida que destrói a ordem apenas habitual para uns, habitual e vantajosa para outros, os homens não podem deixar de voltar ao conceito pagão e às doutrinas que dele derivam. Em nossos tempos prega-se não só o patriotis­mo e o aristocrafismo, como há dois mil anos, mas também o mais rude epicurismo, a bestialidade, com uma só diferen­ça: os homens que outrora pregavam assim acreditavam, en­quanto hoje os pregadores não acreditam no que dizem, e não podem acreditar, porque não faz mais sentido. Não se pode estar parado num lugar, quando o século se move: se não se vai adiante, volta-se atrás e — coisa estranha e terrível! — os homens cultos de nosso tempo, aqueles que caminham na van­guarda, com seus raciocínios especiais, arrastam para trás a sociedade, não para o estado pagão, mas para o estado das primitivas barbáries.

Não podem ser mais bem reveladas estas tendências dos homens cultos de nosso tempo do que por sua atitude em pre­sença do fenómeno pelo qual manifestou-se a insuficiência do conceito social da vida: a guerra, o armamento geral e o ser­viço militar obrigatório.

A falta de clareza — a menos que haja boa-fé — na ati­tude dos homens cultos em presença deste fenómeno é sur­preendente. Esta atitude manifesta-se de três maneiras: uns consideram este fenómeno como algo ocasional, produto da situação política da Europa, e suscetível de ser melhorado sem mudanças na ordem interna da vida dos povos, mas por meio de simples medidas externas, internacionais e diplomáticas; ou­tros vêem este fenómeno como algo terrível e atroz, mas ine­vitável e fatal como a doença ou a morte; outros ainda encaram a guerra com tranquilidade e sangue-frio, como um fenóme­no necessário, benéfico e, portanto, desejável.

Os homens tratam deste assunto de diversas formas, mas uns e outros falam de guerra como de um acontecimento que na verdade não depende da vontade dos homens, que, contu­do, dela participam, e, sendo assim, não admitem a pergunta que se apresenta naturalmente a qualquer pessoa que conser­va o próprio bom-senso: devo nisto tomar parte? Em sua opi­nião, este género de questões não existe e cada homem, qual­quer que seja sua opinião pessoal sobre a guerra, deve sutil-mente submeter-se às exigências do poder.

A atitude dos primeiros, dos que crêem na possibilidade de evitar a guerra com medidas internacionais e diplomáticas, está bem clara nas resoluções do último Congresso Universal da Paz, em Londres, em 1892, e nos artigos e cartas escritos sobre a guerra por escritores célebres e reunidos no número 8 da Revista das Revistas, de 1891. Eis os resultados do Con­gresso: havendo reunido de todos os pontos do globo as opi­niões verbais ou escritas dos doutos, o Congresso em seus trabalhos, iniciados com um serviço religioso na catedral e en­cerrados com um banquete seguido de diversos brindes, escu­tou durante cinco dias inúmeros discursos e chegou às seguintes resoluções:

1. O Congresso afirma que a fraternidade entre os homens implica, como consequência necessária, uma fraternidade entre as nações, na qual os verdadeiros interesses de cada uma sejam reconhecidos idênticos. O Congresso está convencido de que a ver­dadeira base de uma paz durável consiste na aplicação deste gran­de princípio por parte dos povos, em todas as suas relações mú­tuas.

2. O Congresso reconhece a importante influência que o cris­tianismo exerce sobre o progresso moral e político da humanida­de, e recorda, com insistência, aos ministros do Evangelho e as outras pessoas que se ocupam da educação religiosa a necessida­de de difundir estes princípios de paz e de boa vontade, que são a base dos ensinamentos de Jesus Cristo, dos filósofos e dos mo­ralistas; e o Congresso recomenda que a cada ano seja escolhido o terceiro domingo do mês de dezembro para ser feita uma espe­cial propagação destes princípios.

3. O Congresso emite a opinião de que os professores de His­tória deveriam chamar a atenção dos jovens sobre os terríveis ma­les infligidos à humanidade em todos os tempos de guerra e sobre o fato de que quase todas as guerras foram provocadas, em ge­ral, por razões absolutamente insignificantes.

4. O Congresso protesta contra o uso dos exercícios milita­res, dados como exercícios físicos nas escolas, e sugere a forma­ção de brigadas de salvamento, em vez das que possuam um ca-ráter quase militar. E insiste sobre a utilidade de inculcar às co­missões de examinadores encarregados de formular as perguntas para os exames a necessidade de dirigir a inteligência dos jovens para princípios da Paz.

5. O Congresso é de opinião que a doutrina dos direitos im­prescritíveis do homem exige que as raças indígenas e fracas se­jam defendidas, em seus territórios, em sua liberdade e em suas propriedades, contra qualquer injustiça e qualquer abuso quan­do em contato com povos civis, e que sejam protegidas dos vícios tão predominantes nas nações ditas adiantadas. Afirma, além dis­to, a convicção de que as nações deveriam agir de acordo para alcançar este objetivo. O Congresso deseja exprimir seu cordial apreço pelas conclusões da Conferência Antiescravagista, recém-realizada em Bruxelas, quanto à melhoria do estado das popula­ções africanas.

6. O Congresso está convencido de que os prejuízos milita­res e as tradições ainda profundamente enraizadas em certas na­ções, como as exageradas declarações que fazem, nas assembleias legislativas e nos órgãos de imprensa, certos condutores da opi­nião pública, são com muita frequência a causa indireta das guer­ras. O Congresso faz então votos para que sejam eliminados estes erros, publicando-se fatos exatos e informações que dissipem os mal-entendidos que se infiltram por entre as nações. O Congres­so recomenda também à Conferência Interparlamentar que exa­mine atentamente a conveniência de ser criado um jornal internacional, destinado a corresponder às necessidades acima ex­pressas.

7. O Congresso propõe à Conferência Interparlamentar que aconselha seus membros à defesa, frente a seus respectivos Par­lamentos, dos projetos de unificação dos pesos e medidas, das moedas, das diversas tarifas, dos regulamentos postais e telegrá­ficos, dos meios de transporte etc, devendo esta unificação cons­tituir uma verdadeira união comercial, industrial e científica dos povos.

8. O Congresso, considerando a enorme influência moral e social da mulher, conclama cada uma, como esposa, mãe, irmã, cidadã, a encorajar tudo o que tende a assegurar a Paz, porque, de outra forma, ela incorre em grande responsabilidade pela con­tinuação do Estado de guerra e de militarismo, que não só aflige como também corrompe a vida das nações. Para concentrar e apli­car esta influência de forma prática, o Congresso convida as mu­lheres a se unirem^ às sociedades para a propaganda da Paz universal.

9. O Congresso exprime a esperança de que a Associação pela Reforma Financeira e outras sociedades do género, na Eu­ropa e na América, se unam para convocar em futuro próximo uma Conferência que examine os melhores meios aptos a estabe­lecer relações comerciais equitativas entre os Estados, com a re­dução das taxas de importação, como um primeiro passo para o câmbio livre. O Congresso acredita poder afirmar que, manten­do a recíproca confiança, o mundo civil deseja a Paz, e espera com impaciência o momento de ver cessar os armamentos que, construídos a título de defesa, tornam-se por sua vez um perigo, e são simultaneamente a causa do mal-estar económico geral que impede a discussão, em condições satisfatórias, das questões que deveriam vir à frente de todas as outras, as do trabalho e da miséria.

10. O Congresso, reconhecendo que o desarmamento ge­ral seria a melhor garantia da Paz e conduziria à resolução, do ponto de vista dos interesses gerais, das questões que ago­ra dividem os Estados, emite o voto de que um congresso de representantes de todos os Estados da Europa seja reunido o mais depressa possível, para providenciar os meios de efetuar o desarmamento gradual geral, que já se vislumbra como pos­sível.

11. O Congresso, visto que a timidez de um só governo po­deria bastar para retardar indefinidamente a convocação do con­gresso acima mencionado, é de parecer que o governo que primeiro decidir mandar de volta ao lar um número considerável de solda­dos terá rendido um dos maiores serviços à Europa e à humani­dade, porque obrigará os outros governos, sensibilizados pela opinião pública, a seguir seu exemplo e, com a força moral deste fato consumado, terá aumentado, ao invés de diminuir, as con­dições de sua defesa nacional.

12. O Congresso, considerando que a questão do desarma­mento, como da Paz em geral, depende da opinião pública, reco­menda às sociedades da Paz, aqui representadas, e também a to­dos os amigos da Paz, que se dediquem a uma propaganda ativa junto ao público, especialmente durante os períodos de eleições parlamentares, a fim de que os eleitores dêem seus votos aos can­didatos que terão como parte de seu programa a Paz, o De­sarmamento e a Arbitragem.

13. O Congresso congratula-se com os amigos da Paz pela resolução adotada na Conferência Americana Internacional (ex-ceto os representantes do México), em Washington, no último mês de abril, na qual foi aconselhado que a Arbitragem se torne obri­gatória em todas as contestações relacionadas com privilégios di­plomáticos e consulares, fronteiras ou limites, territórios, indenização, direitos de navegação, ou concernentes à validade, à estipulação e à execução dos tratados e, em todos os outros ca­sos, quaisquer que sejam a origem, a natureza e a ocasião, exceto aqueles que, segundo o parecer de qualquer nação, parte interes­sada na controvérsia, poderiam colocar em perigo a independên­cia desta nação.

14. O Congresso respeitosamente recomenda esta resolução à atenção dos homens de Estado da Europa e da América e expri­me o ardente desejo de que tratados feitos em termos análogos sejam prontamente assinados pelas outras nações do mundo, de modo a prevenir qualquer causa de conflitos futuros entre eles e, ao mesmo tempo, para servir como exemplo aos outros Estados.

15.0 Congresso exprime sua satisfação pela adoção, por par­te do Senado espanhol, no dia 16 de junho passado, de um proje-to de lei que autoriza o governo a concluir tratados gerais ou especiais de Arbitragem, para a regulamentação de qualquer con­tenda, exceto as que se referem à independência ou administra­ção interna dos Estados em litígio. Exprime também sua satisfa­ção pela adoção de resoluções visando ao mesmo objetivo por parte do Storthing norueguês no dia 6 de março passado e por parte da Câmara italiana a 11 de julho corrente.

16.0 Congresso pede que se forme um Comité de cinco mem­bros para preparar, em seu nome, uma mensagem ou comunica­do às principais instituições religiosas, políticas, comerciais, do trabalho e da Paz, de todas as nações civis, para pedir-lhes que enviem petições aos governos de seus respectivos países solicitan­do que tomem as medidas necessárias à constituição de tribunais convenientes, chamados a solverem as questões internacionais, e assim evitarem recorrer à guerra.

17. Considerando: 1 ? que o fim ao qual aspiram todas as so­ciedades da Paz é a consolidação da ordem jurídica entre as na­ções; 2? que a neutralização garantida em tratados internacionais constitui um preparo para este Estado jurídico e diminui o núme­ro de lugares onde a guerra poderá ser feita; o Congresso reco­menda uma extensão sempre maior do regime de neutralização; e expressa em primeiro lugar que todos os tratados, que hoje as­seguram a certos estados as vantagens da neutralidade, permane­çam em vigor, ou, sendo o caso, sejam modificados de modo que garantam a neutralidade mais efetiva, seja estendendo a neutrali­zação à totalidade do Estado do qual apenas uma parte seja neu­tra, seja ordenando a demolição de fortalezas que constituem mais um perigo do que uma garantia de neutralidade; em segundo, que novos tratados, contanto que sejam conforme à vontade das po­pulações às quais se referem, sejam concluídos, para estabelecer a neutralidade de outros Estados.

18. A sessão do Comité propôs:

I. Que as ulteriores reuniões do Congresso da Paz sejam fi­xadas antes da mesma reunião da Conferência Internacional anual, ou logo após, e na mesma cidade;

II. Que a questão da escolha do emblema internacional da Paz seja adiada para data indeterminada;

III. Que sejam tomadas as seguintes resoluções:

a. Encaminhar testemunho de satisfação à igreja presbiteriana dos Estados Unidos por sua proposta oficial aos representantes superiores de cada sociedade religiosa de fé cristã, para que se reu­nam a fim de examinar, em comum, os meios adequados para substituir a guerra por uma Arbitragem internacional;

b. Encaminhar, em nome do Congresso, homenagem à me­mória de Aurélio Saffi, o grande jurista italiano, membro do co­mité da Liga Internacional da Paz e da Liberdade;

IV. Que os atos do Congresso, assinados pelo presidente, se­jam transmitidos, na medida do possível, aos chefes de todos os países civis, por delegações autorizadas;

V. Que o comité de organização seja autorizado a fazer as necessárias correções nos documentos e processos verbais adotados;

VI. Que sejam tomadas também as seguintes resoluções:

a. Exprimir o reconhecimento do Congresso aos presidentes de suas diversas sessões;

b. Ao presidente, aos secretários e aos membros de seu ga­binete;

c. Aos membros de suas diferentes sessões;

d. Ao reverendo Scott Holland, ao reverendo doutor Ruen Thomas e ao reverendo S. Morgan Gibbon por seus discursos an­tes da abertura do Congresso, como também ao clero da catedral de São Paulo, de City Temple e da igreja de Stamford Hill, por haver emprestado ao Congresso este edifício.

e. De apresentar carta de reconhecimento a Sua Majestade, por haver autorizado aos membros do Congresso a visita ao pa­lácio de Windsor;

f. De igualmente agradecer ao lord mayor e sua esposa, co­mo ao senhor Passamore Edwards e às outras pessoas que conce­deram sua hospitalidade aos membros do Congresso.

19. O Congresso exprime seu reconhecimento a Deus, pelo notável acordo que não deixou de reinar, durante as sessões, en­tre tantos homens e tantas mulheres de nacionalidades e credos diferentes, reunidos num esforço comum, para o final feliz dos trabalhos dos congressistas.

O Congresso exprime sua firme e tenaz confiança no triunfo final da Paz e nos princípios defendidos em suas sessões.

A ideia fundamental do Congresso foi a necessidade: em pri­meiro lugar, de propagar entre os homens, por todos os meios, a convicção de que a guerra é absolutamente contrária a seu inte­resse e de que a paz é um grande benefício; em segundo lugar, de agir sobre os governos para demonstrar-lhes as vantagens que oferecem, em comparação com as guerras, os tribunais de arbi­tragem e, então, o interesse e a necessidade do desarmamento.

Para atingir o primeiro objetivo, o Congresso dirigiu-se aos professores de História, às mulheres e ao clero, e aconselha-os a consagrar o terceiro domingo do mês de dezembro à pregação contra os males da guerra e a favor dos benefícios da paz. Para atingir o segundo objetivo, o Congresso dirigiu-se aos governos e propôs-lhes o desarmamento e a substituição da guerra pela ar­bitragem.

Pregar aos homens os males da guerra e os benefícios da paz! Mas eles conhecem tão bem estes males e estes benefícios que, des­de que existem, o melhor augúrio sempre foi: A paz esteja convosco!

Não só os cristãos, mas também todos os pagãos, há milhares de anos, conhecem os males da guerra e os benefícios da paz.

O cristão não pode deixar de pregá-los a cada dia de sua vi­da; e se os cristãos e os padres do cristianismo não o fazem, não é sem razão; e não o farão até que as razões já expostas não se­jam afastadas. O conselho dado aos governos para dispensar seus exércitos e substituí-los pela arbitragem internacional é ainda mais útil. Os governos não ignoram as dificuldades que apresentam o recrutamento e a manutenção das tropas; se, então, eles as orga­nizam e as mantêm sob as armas à custa de inauditos esforços, é porque, evidentemente, não podem fazer de outro modo, e os conselhos do Congresso não mudarão essa situação. Mas os dou­tos não querem perceber este fato e esperam sempre encontrar uma combinação que obrigue os governos a reduzir por si mesmos seu próprio poder.

"Pode-se exorcizar a guerra?" —- escreve um douto na Re­vista das Revistas. E continua:

Todos estão de acordo ao reconhecer que, acaso ela venha a eclodir na Europa, suas consequências serão talvez iguais às das grandes invasões. Comprometerá até mesmo a própria existência das nações e, por conseguinte, será sanguinolenta, implacável, atroz.

Assim, esta contradição, unida às dos terríveis instrumentos de destruição de que dispõe a Ciência moderna, talvez retarde a declaração e mantenha as coisas num estado que poderia ser le­vado a limites indefinidos, não fossem os enormes pesos que opri­mem as nações europeias e ameaçam, ao se prolongarem, conduzir a ruínas e desastres não maiores do que os produzidos pela pró­pria guerra.

Atingidos por estas ideias, pessoas de todos os países procu­raram meios práticos para deter ou, ao menos, atenuar os efeitos das espantosas carnificinas cuja ameaça paira sobre nossas ca­beças.

Tais são as questões, colocadas na ordem do dia da próxima abertura do Congresso Universal da Paz em Roma, publicação de um recente opúsculo sobre o Desarmamento.

Infelizmente, é também certo que, com a organização atual da maior parte dos Estados modernos, isolados uns dos outros, e guiados por interesses diversos, a supressão absoluta da guerra é uma ilusão na qual seria perigoso deixar-se levar. Porém, algumas leis ou alguns regulamentos mais sábios impostos aos duelos entre as nações teriam, ao menos, o resultado de circunscrever os erros.

É, ainda, bastante quimérico contar com os projetos de de­sarmamento, cuja execução se torna quase impossível considerar sob um caráter popular, presentes no espírito de nossos leitores. A opinião pública não está preparada para aceitá-los e, por ou­tro lado, as ligações internacionais estabelecidas entre os diver­sos povos são tais que impossibilitam esta aceitação. Um desarmamento imposto por um povo a um outro em condições perigosas para a sua segurança equivaleria a uma declaração de guerra.

Todavia, pode-se admitir que uma troca de ideias entre os povos interessados ajudará, de certo modo, o acordo in­ternacional indispensável a essa transação, e tornará possível uma sensível redução das despesas militares que oprimem as nações europeias, com graves danos das soluções sociais, cu­ja necessidade, entretanto, impõe-se a cada uma delas, indi­vidualmente, sob pena de ter, internamente, a guerra evitada no exterior.

Pode-se ao menos pedir a redução das enormes despesas que resultam da atual organização da guerra, com o fim de invadir um território em 24 horas e travar uma batalha decisiva na sema­na seguinte à sua declaração.

É preciso agir de tal modo que os Estados não se possam atacar entre si e, em 24 horas, apoderar-se de terras estran­geiras.

Esta ideia prática foi expressa por Maxime du Camp e forma a conclusão do seu artigo.

As propostas de Maxime du Camp são as seguintes:

1 — Um congresso diplomático, em que estejam represen­tadas as diversas potências, reunir-se-á a cada ano, em data e du­rante um tempo determinado, para examinar a situação dos povos entre si, para amainar as dificuldades e servir de árbitro em caso de conflito latente;

2 — Nenhuma guerra poderá ser declarada antes de dois me­ses depois do incidente que a terá provocado. No intervalo, o de­ver dos neutros será propor uma arbitragem;

3 — Nenhuma guerra será declarada antes de ser submeti­da, por plebiscito, à aprovação das nações que se preparam para ser beligerantes;

4 — As hostilidades não poderão ser abertas senão um mês após a declaração oficial de guerra.

Mas quem poderia impedir que as hostilidades começas­sem? Quem obrigará os homens a fazer isto ou aquilo? Quem forçará os governos a esperar os períodos fixados? — Todos os outros Estados. Mas todos os outros Estados são também potências, as quais é preciso moderar e forçar. E quem força­ria e como? — A opinião pública. Mas, se existe uma opinião pública que pode forçar a potência a respeitar os períodos fi­xados, a mesma opinião pública pode forçar a potência a de fato não declarar a guerra.

Mas, objeta-se, é possível obter tal ponderação de for­ças, que impeça as potências de sair da reserva. Isto já não foi, talvez, tentado e não o é ainda? A Santa Aliança não era senão isto, a Liga da Paz não é outra coisa etc. etc.

Mas, se todos entram em acordo?, responde-se. Se todos entram em acordo, a guerra não mais existirá e todos os tri­bunais de arbitragem tornam-se inúteis.

"O Tribunal de Arbitragem! A arbitragem substituirá a guerra. As questões serão resolvidas pela arbitragem. A ques­tão Alabama* foi resolvida por um tribunal de arbitragem, a das Ilhas Carolinas foi submetida à arbitragem do papa. A Suíça, a Bélgica, a Dinamarca, a Holanda, todas declararam preferir a arbitragem à guerra."

*Litígio entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, durante a Guerra de Secessão, provo­cado pelo navio-pirata Alabama, que foi arbitrado por um tribunal internacional em Genebra, contra a GrãcBretanha, obrigando-a a uma indenização de 15.500.000 dó­lares em favor dos Estados Unidos. (N. do E.)


Estou convencido de que também Mónaco expressou o mesmo desejo.

Falta apenas uma pequena coisa, que é esta: que nem a Alemanha, nem a Rússia, nem a Áustria, nem a França fize­ram até agora a mesma declaração.

Como os homens zombam facilmente de si mesmos quan­do têm interesse!

Os governos consentiram em resolver suas discórdias com a arbitragem e a dispensar seus exércitos.

As contestações entre a Rússia e a Polónia, entre a Ingla­terra e a Irlanda, entre a Áustria e a Boémia, entre a Turquia e os Eslavos, entre a França e a Alemanha serão amainadas por meio de conciliação, amigavelmente.

Seria, nem mais nem menos, como se fosse proposto aos negociantes e aos banqueiros que nada vendessem acima do pre­ço de compra, que se ocupassem sem benefício da distribuição de riquezas e que suprimissem o dinheiro, tornado inútil.

Mas, como o comércio e as operações bancárias consis­tem unicamente em venda mais cara do que o preço de com­pra, esta proposta equivaleria a um convite de suicídio. Assim é para os governos. A proposta de não usar a força, mas re­solver seus mal-entendidos com justiça, é um conselho de sui­cídio. É pouco provável que consintam.

Os cientistas se grupam em sociedades (destas existem mais de cem), em congressos (ocorreram recentemente em Paris, em Londres, em Ruão); pronunciam discursos, se reúnem em banquetes, fazem brindes, publicam revistas e assim demons­tram por todos os meios que os povos, obrigados a manter milhões de homens no exército, não aguentam mais e que es­tes armamentos estão em oposição ao progresso, aos interes­ses e aos desejos das populações; mas que, sujando muito papel, gastando muitas palavras, poder-se-ia colocar todos os homens de acordo e fazer com que não tenham mais interes­ses opostos, e então, que não haja mais guerra.

Quando eu era criança, fizeram-me crer que, para captu­rar um pássaro, bastava colocar-lhe um grão de sal na cauda. Tentei então aproximar-me de um pássaro com o sal, mas lo­go me convenci de que se eu tivesse podido colocar-lhe sal na cauda, ter-me-ia sido igualmente fácil pegá-lo, e compreendi que me haviam enganado.

Os homens que lêem os artigos e livros sobre arbitragem e desarmamento devem também perceber que alguém está zom­bando deles.

Se é possível colocar um grão de sal na cauda de um pás­saro, é porque ele não voa e é fácil capturá-lo. Se tem asas e não quer ser preso, não deixa que lhe ponham sal na cauda, que a qualidade própria do pássaro é voar. Do mesmo modo, a qualidade própria do governo é comandar e não obedecer. Sempre tende a isso e nunca abandonará o poder voluntaria­mente. Ora, já que o poder lhe é dado pelo exército, ele nun­ca renunciará ao exército e a sua razão de ser — a guerra.

Daí o erro: doutos juristas — enganando-se e enganando os outros — afirmam em seus livros que o governo não é o que é: uma reunião de homens que exploram os outros, mas, segundo a ciência, a representação do conjunto de cidadãos. Afirmaram-no por tanto tempo que acabaram acreditando eles mesmos; persuadiram-se, assim, que a justiça pode ser obri­gatória para os governos. Mas a História demonstra que, de César a Napoleão, e deste a Bismark, o governo é sempre, em sua essência, uma força que viola a justiça e que não pode ser diferente. A justiça não pode ser obrigatória para aquele ou aqueles que dispõem de homens enganados e treinados na vio­lência — os soldados — e que, graças a eles, dominam os ou­tros. Por isso os governos não podem consentir em diminuir o número desses homens treinados e obedientes que consti­tuem toda sua força e influência.

Este é o modo de ver de uma parte dos doutos quanto à contradição que pesa sobre nossa sociedade, e tais são seus meios para resolvê-la. Digam a estes que a solução depende unicamente da atitude pessoal de cada homem em presença da questão moral e religiosa hoje colocada — isto é: a legiti­midade ou ilegitimidade do serviço militar obrigatório — es­tes doutos nada farão além de erguer os ombros e sequer se dignarão a responder.

Não vêem nesta questão senão uma ocasião para pronun­ciar discursos, publicar livros, nomear presidentes, vice-presi-dentes, secretários; uma ocasião para se reunir ou falar nesta ou naquela cidade. Segundo eles, toda esta tagarelice, escrita ou falada, deve provocar este resultado: os governos deixarão de recrutar soldados, base de sua força, e, seguindo seus conselhos, dispensarão os exércitos e ficarão sem defesas, não só diante deseus vizinhos, como também diante de seus súditos. Seria co­mo uma quadrilha de bandidos que, tendo amarrado fortemente alguns homens desarmados, para roubá-los, se deixassem en­ternecer por discursos sobre sofrimento causado a suas vítimas pela corda que as amarra, e se apressassem a cortá-la.

Existem, todavia, pessoas que acreditam em tudo isto, que se dedicam aos congressos de paz, pronunciam discursos e escrevem livros: os governos, compreende-se, dão a eles muitas provas de simpatia e fingem encorajá-los, como fingem proteger a sociedade de repressões, enquanto, em sua maioria, vivem apenas graças à embriaguez dos povos; como fingem proteger a instrução, enquanto sua força tem por base preci­samente a ignorância; como fingem garantir a liberdade e a constituição, enquanto seu poder mantém-se graças à ausên­cia de liberdade; como fingem cuidar da melhoria da vida dos trabalhadores, enquanto sua existência repousa sobre a opres­são do operário; como fingem sustentar o cristianismo, enquanto o cristianismo destrói qualquer governo.

Nossa sociedade incumbe-se da repressão, mas de modo que este cuidado não possa diminuir a embriaguez; da instru­ção, mas de modo que, longe de destruir a ignorância, não faz senão aumentá-la; da liberdade e da constituição, mas de modo que não se impeça o despotismo; da sorte dos operá­rios, mas de modo que não sejam alforriados da escravidão; do cristianismo, mas do cristianismo oficial que sustenta os governos, em vez de destruí-los.

Existe agora um novo cuidado: a paz.

Os soberanos que hoje se aconselham com seus ministros decidem, apenas por sua vontade, se o grande massacre co­meçará este ano, ou no próximo ano. Sabem muito bem que todos os discursos deste mundo não impedirão, quando as­sim decidirem, de mandar milhões de homens para o mata­douro. Escutam com prazer semelhantes dissertações pacíficas, encorajam-nas e delas participam.

Longe de serem nocivas, estas são, pelo contrário, úteis aos governos, porque desviam a atenção dos povos e os afas­tam da questão principal, essencial: Deve-se ou não submeter-se à obrigatoriedade do serviço militar?

"A Paz será dentro em pouco organizada, graças às alian­ças, aos congressos, aos livros e aos opúsculos. Neste ínterim, enverguem seus uniformes e fiquem prontos a, por nós, come­ter e a sofrer violências", dizem os governos; e os doutos or­ganizadores de congressos e os autores de memórias pela paz aprovam integralmente.

Assim agem e assim pensam os cientistas desta primeira categoria. Sua atitude é que mais proveito traz aos governos e portanto a que mais os encoraja.

O ponto de vista de uma segunda categoria é mais trági­co. É o dos homens aos quais parece que o amor pela paz e a necessidade da guerra são uma terrível contradição, mas des­tino do homem. São, em sua maioria, homens de talento, de natureza impressionável, que vêem e compreendem todo o hor­ror, toda a imbecilidade e toda a barbárie da guerra; mas, por uma estranha aberração, não vêem e não procuram nenhuma saída para esta desoladora situação da humanidade, como se deliberadamente quisessem revolver a chaga.

Eis um excelente exemplo, tirado do célebre escritor fran­cês Guy de Maupassant. Observando de seu iate as manobras e os exercícios de tiro dos soldados franceses, ocorreram-lhe as seguintes reflexões:

Quando penso somente nesta palavra guerra, me assalta um desânimo, como se me falassem de bruxaria, de inquisição, de algo longínquo, fundo, abominável, monstruoso, contra a natureza.

Quando se fala de antropófagos, sorrimos com orgulho, pro­clamando a nossa superioridade sobre aqueles selvagens. Quais são os selvagens, os verdadeiros selvagens? Aqueles que se batem para comer os vencidos ou aqueles que se batem para matar, com o único intuito de matar?

Os soldados de infantaria que correm ao longe estão desti­nados à morte, como o rebanho de carneiros que um açougueiro vislumbra diante de si na estrada. Cairão numa planície, com a cabeça quebrada por um golpe de espada ou com o peito perfu­rado por uma bala; e são jovens que poderiam trabalhar, produ­zir, ser úteis. Seus pais são velhos e pobres, e suas mães, que du­rante vinte anos os amaram, adoraram como adoram as mães, saberão dentro de seis meses, ou talvez de um ano, que seu filho, o menino, o menino grande educado com tanto sacrifício, com tanto dinheiro, com tanto amor, foi jogado numa fossa, como um cachorro, depois de ser estripado por um tiro de canhão e pi­soteado, amassado, moído pelas cargas de cavalaria. Por que ma­taram seu filhinho, seu lindo filhinho, sua única esperança, seu orgulho, sua vida? Ela não sabe. Sim, por quê?

A guerra!... lutar!... degolar!... massacrar os homens!... e temos hoje, em nosso tempo, com a nossa civilização, com a vas­tidão da ciência e com o grau de filosofia ao qual o ser humano acredita haver chegado, escolas onde se aprende a matar, e ma­tar a distância, com perfeição, muita gente ao mesmo tempo, a matar pobres diabos de homens inocentes, arrimos de família e sem antecedentes criminais.

E o mais assombroso é que o povo não se volte contra os governos. Que diferença há, então, entre as monarquias e as re­públicas? O mais assombroso é que a sociedade inteira não se re­bele contra esta palavra guerra.

Ah! Viveremos sempre sob o peso dos velhos e odiosos cos­tumes dos preconceitos criminosos, das ideias ferozes dos nossos antepassados bárbaros, porque somos bestas e continuaremos bes­tas que o instinto domina e nada muda. Talvez não houvesse sido condenado ao desterro um outro que não fosse Victor Hugo, quan­do lançou aquele grito de libertação e de verdade? Hoje, a força chama-se violência e começa a ser julgada; a guerra é posta em cheque. A civilização, por denúncia do género humano, instrui o processo e reúne a grande documentação criminal dos conquis­tadores e dos capitães. Os povos começam a compreender que o engrandecimento criminal de um delito não pode ser a diminui­ção; que se o ato de matar é um delito, matar muito não pode ser uma circunstância atenuante; que se o ato de roubar é uma vergonha, invadir não pode ser uma glória! Ah! proclamemos estas verdades absolutas, desonremos a guerra!

Cóleras vãs, ira de poeta. A guerra é mais venerada do que nunca.

Um hábil artista neste setor, um massacrador talentoso, o senhor Moltke, respondeu um dia, aos delegados da paz, com es­tas estranhas palavras:

"A guerra é santa, instituiu-a Deus; é uma das leis sagradas do mundo; mantém nos homens todos os grandes e nobres senti­mentos: a honra, ofcdesinteresse, a virtude, a coragem, e impede-os, numa palavra, de cair no mais horrível materialismo."

Assim, reunir-se em rebanhos de quatrocentos mil homens, marchar dia e noite sem repouso, em nada pensar, nada estudar, nada aprender, nada ler, a ninguém ser útil, dormir emporcalha­dos na lama, viver como brutos em contínuo hebetismo, saquear cidades, incendiar vilarejos, arruinar povos, bater-se então com outra aglomeração de carne humana, cair sobre ela, fazer lagos de sangue, planícies de carne massacrada misturada à terra enla­meada e avermelhada por pilhas de cadáveres; ter arrancados bra­ços ou pernas, despedaçado o cérebro sem proveito para ninguém, ou explodir num campo enquanto seus velhos pais, sua mulher e seus filhos morrem de fome: eis o que se chama não cair no mais horrível materialismo!

Os homens de guerra são o flagelo do mundo. Lutamos contra a natureza e a ignorância, contra obstáculos de toda es­pécie, para tornar menos dura a nossa mísera vida. Existem ho­mens, benfeitores, cientistas, que consomem sua existência a tra­balhar, a procurar o que pode ajudar, o que pode socorrer, o que pode servir de alívio a seus irmãos. Continuamente imersos em sua útil tarefa, acumulam descobertas, ampliam os horizon­tes da mente humana, enriquecem o património da Ciência, de­dicam à sua pátria, a cada dia, bem-estar, abundância, força.

Vem a guerra. Em seis meses, os generais destruíram vinte anos de esforços, paciência e génio.

Eis o que se chama não cair no mais horrível materialismo.

Nós vimos a guerra. Vimos os homens, embrutecidos, fora de si, matar por prazer, por terror, por bravata, por ostentação. Quando o direito não mais existe, quando a lei está morta, quan­do desaparece qualquer noção de justiça, vimos fuzilar inocentes encontrados pela estrada e transformados em suspeitos porque tinham medo. Vimos matar cães acorrentados defronte às portas de seus patrões, para experimentar revólveres novos; vimos me­tralhar por prazer vacas deitadas num campo, sem qualquer ra­zão, para tirar as balas dos fuzis, assim, de brincadeira.

Eis o que se chama não cair no mais horrível materialismo.

Entrar numa aldeia, trucidar o homem que defende sua ca­sa, porque veste uma camisa e não traz na cabeça um quepe, quei­mar habitações de miseráveis que não têm mais pão, arrebentar móveis, roubar outros, beber o vinho encontrado nas cantinas, violar as mulheres encontradas nas estradas, queimar milhares de liras e deixar atrás de si a miséria e a cólera.

Eis o que sé chama não cair no mais horrível materialismo.

O que fizeram então para dar provas de um pouco de inteli­gência os homens de guerra? Nada. O que inventaram? Canhões e fuzis. Eis tudo.

O inventor do carrinho de mão não fez mais pelo homem com esta simples e prática ideia de aplicar uma roda a dois bastões do que o inventor das modernas fortificações?

O que resta da Grécia? Livros, mármores. Será grande, tal­vez, porque venceu? Ou porque produziu?

Foi a invasão dos persas o que os impediu de cair no mais horrível materialismo?

Foram as invasões dos bárbaros que salvaram Roma e a re­generaram?

Napoleão I continuou, talvez, o grande movimento intelec­tual iniciado pelos filósofos no fim do século passado?

Pois bem, já que os governos desta forma se atribuem o di­reito de morte sobre os povos, não é de admirar que os povos se atribuam o direito de morte sobre os governos.

Eles defendem-se. Têm razão. Ninguém tem o direito abso­luto de governar os outros. Não se pode fazê-lo senão para o bem daqueles que dirigem. Qualquer governo tem o dever de evitar a guerra, como um capitão de navio tem o de evitar o naufrágio.

Quando um capitão perde sua embarcação, é julgado e con­denado, se reconhecido culpado de negligência ou mesmo de in­capacidade.

Por que não se deveria julgar um governo após cada guerra declarada? Se os povos compreendessem isto, se julgassem por si mesmos os poderes assassinos, se não admitissem deixar mor­rer sem razão, se empregassem suas armas contra aqueles de quem as receberam para matar, nesse dia a guerra estaria morta... Mas esse dia nunca chegará.

Sobre a Água

Guy de Maupassant vê todo o horror da guerra, vê que é causada por governos que, enganando os povos, induzem-nos a se degolarem reciprocamente sem utilidade alguma; vê, ainda, que os cidadãos que compõem os exércitos poderiam voltar suas armas contra os governos e fazê-los pagar; mas pensa que isto nunc^ acontecerá e que, em consequência, não há saída possível.

"Penso que a obra de guerra é terrível mas inevitável; que a obrigatoriedade do serviço militar é inevitável como a mor­te e, uma vez que os governos sempre a desejarão, a guerra sempre existirá."

Assim escreve este escritor de talento, sincero, dotado da faculdade de penetrar no âmago do argumento, que constitui a essência do dom poético. Ele nos mostra toda a crueldade da contradição entre a consciência dos homens e suas ações, mas não tenta resolvê-la e parece reconhecer que esta contra­dição deve existir e que contém em si a tragédia poética da vida.

Um outro escritor, não menos brilhante, Edouard Rod, pinta com cores até mais vivas as barbáries e a loucura da si­tuação atual, mas também com o único intuito de constatar seu caráter trágico, e sem propor qualquer saída.

Para que agir? Para que empreender o que quer quer seja? E como amar os homens, nesta época conturbada na qual o ama­nhã não é senão uma ameaça!... Tudo isto que começamos, nos­sas ideias que amadurecem, nossas obras vislumbradas, aquele pouco de bem que teríamos podido fazer, não será carregado pe­la tempestade que se prepara?... Por toda parte o terreno treme sob nossos pés, e nosso horizonte vai-se cobrindo de nuvens que não nos serão benéficas.

Ah! Se não fosse preciso temer a revolução da qual se fez um espectro!... Incapaz de imaginar uma sociedade mais detes­tável do que a nossa, tenho pela que a sucederá mais desconfian­ça que temor. Se devesse sofrer com a transformação, consolar-me-ia pensando que os verdugos do dia são as vítimas da vigília e que a expectativa do melhor faria suportar o pior. Mas não é este perigo longínquo que me assombra: vejo um outro, mais perto e sobretudo mais cruel; mais cruel porque não tem qualquer des­culpa, porque é absurdo, porque não pode resultar em bem al­gum: a cada dia pensam-se as probabilidades de guerra do amanhã, e elas, dia-a-dia, tornam-se mais cruéis.

O pensamento retrocede diante de uma catástrofe que apa­rece no pináculo do século como o término do progresso de nos­sa era e contudo, é preciso habituar-se: há vinte anos todas as forças do saber exaurem-se para inventar instrumentos de destrui­ção e dentro em pouco bastarão alguns tipos de canhão para abater um exército; colocam-se em armas, não mais, como antes, mi­lhares de pobres diabos cujo sangue era pago, mas povos inteiros que estão a ponto de se estrangularem mutuamente; rouba-se de­les o tempo (obrigando-os a servir) para roubar-lhes mais segura­mente a vida; a fim de prepará-los para o massacre, atiça-se seu ódio, persuadindo-os de que são odiados; e homens dóceis deixam-se lograr, e logo se verão atirando-se uns sobre os outros, com ferocidade de bestas, turbas furibundas de pacíficos cidadãos a quem uma ordem inábil colocará nas mãos o fuzil, sabe Deus por que ridículo incidente de fronteira ou por que mercantis interes­ses coloniais!... Marcharão, como ovelhas ao matadouro, mas, sabendo aonde vão, sabendo que deixam suas mulheres, sabendo que seus filhos sofrerão fome, ansiosos e ébrios, pelas sonoras e mentirosas palavras trombetadas em seus ouvidos. Marcharão sem se rebelar, passivos e resignados, enquanto são a massa e a força, e poderiam, se soubessem entender, estabelecer o bom senso e a fraternidade em lugar das selvagens práticas da diplomacia. Marcharão, tão enganados, tão iludidos, que acreditarão ser o massacre um dever e pedirão a Deus para abençoar seus apetites sanguinários. Marcharão, pisoteando as colheitas que semearam, incendiando as cidades que construíram, com cantos de entusias­mo, com gritos de alegria, com músicas de festa. E seus filhos erigirão estátuas àqueles que melhor tiverem massacrado!...

A sorte de toda uma geração depende da hora em que algum fúnebre homem político der o sinal, que será seguido. Sabemos que os melhores de nós serão forçados e que nossa obra será des­truída. Sabemos e trememos de cólera, e nada podemos. Ficamos presos na rede dos gabinetes e das papeladas, cuja destruição pro­vocaria uma agitação por demais violenta. Pertencemos às leis que fizemos para nos proteger e que nos oprimem. Nada somos além de coisas dessa contraditória abstração, o Estado, que torna ca-da indivíduo escravo em nome da vontade de todos, que toma­dos isoladamente, desejariam exatamente o oposto do que serão obrigados a fazer.

Se a geração que deverá ser sacrificada fosse ao menos ape­nas uma! Mas existem outros interesses em jogo.

Os oradores assalariados, os ambiciosos aproveitadores das más inclinações das multidões e os pobres de espírito, a quem a sonoridade das palavras engana, têm a tal ponto exacerbado os ódios nacionais que a guerra de amanhã colocará em perigo a exis­tência de uma raça: um dos elementos que constituíram o mundo moderno está ameaçado, aquele que será vencido deverá moral­mente desaparecer e, qualquer que seja este, ver-se-á uma força aniquilada — como se, para o bem, houvesse uma a mais! — ver-se-á formar-se uma Europa nova, sobre tais bases, tão injustas, tão brutais, tão sanguinolentas, embrutecida por tão monstruosa mancha, que não pode ser ainda pior do que a de hoje, mais ini-qua, mais bárbara e mais violenta.

Assim, cada qual sente pesar sobre si um imenso desencoraja-mento. Agitamo-nos num caminho sem saída, com fuzis apontados para nós de todos os telhados. Nosso trabalho parece o dos mari­nheiros que executam a última manobra quando o navio começa a afundar. Nossos prazeres assemelham-se aos do condenado a quem se oferece uma iguaria de seu agrado, quinze minutos antes do suplício. A angústia paralisa nosso pensamento, e o mais belo esfor­ço de que seja capaz de calcular, soletrando os vagos discursos dos ministros, alterando o sentido das palavras dos soberanos, mudando as palavras atribuídas aos diplomatas e que os jornais divulgam de­sordenadamente — se será amanhã ou depois de amanhã, este ano ou próximo que nos degolarão. De modo que em vão se buscaria na História uma época mais incerta e mais repleta de angústias...

O Sentido da Vida, p. 208-213.

Destas linhas resulta que a força está nas mãos daqueles que se perdem por si mesmos, nas mãos de indivíduos isola­dos que compõem a massa, e que a fonte do mal está no Esta­do. Parece evidente que a contradição entre a consciência e a vida tenha atingido limites que não poderiam ser ultrapas­sados, e nos quais a solução se impõe.

Mas o autor não é deste parecer. Ele vê o caráter trágico da vida humana e, após haver mostrado todo o horror da si­tuação, conclui que a vida humana deve transcorrer neste erro.

A terceira categoria é dos homens que perderam a cons­ciência e, portanto, o bom senso e qualquer sentimento hu­mano.

A essa categoria pertence Moltke, cuja opinião foi cita­da por Maupassant, como também a maior parte dos milita­res, educados nesta cruel superstição que os faz viver e, com frequência, ingenuamente convencidos de que a guerra é uma instituição não §ó inevitável, mas necessária e útil.

Alguns burgueses, ditos doutos e civis, têm a mesma opinião.

Eis o que escreve, no número da Revista das Revistas em que estão reunidas as cartas sobre a guerra, o célebre acadé­mico Camille Doucet:

PREZADO SENHOR,

Quando perguntais ao menos belicoso dos académicos se ele é partidário da guerra, a sua resposta é dada por antecipa­ção.

Desventuradamente, senhor, vós mesmos qualificais de so­nho o pensamento no qual se inspiram hoje vossos generosos com­patriotas.

Desde que estou no mundo, sempre ouvi muita gente hones­ta protestar contra o horrível hábito de massacre internacional que o mundo reconhece como mau e deplora; mas como remediá-lo?

Com frequência fomos também tentados a suprimir o due­lo, e parecia fácil, mas não! Jamais o que se fez com este nobre fim trouxe ou trará qualquer benefício.

Todos os congressos dos dois mundos em vão votarão con­tra a guerra e contra o duelo; acima de todos os compromissos, de todas as convenções, de todas as legislações, existirão eter­namente:

A honra dos homens, que sempre quis o duelo;

e o interesse dos povos, que sempre desejará a guerra.

Não desejo menos, e de todo o coração faço votos que o Con­gresso da Paz Universal consiga enfim realizar sua honorabilíssi-ma tentativa.

Recebei, senhor, os protestos etc...

CAMILLE DOUCET.

O sentido desta carta é que a honra dos homens quer que eles se batam entre si e que o interesse dos povos exige que se arruinem e se massacrem reciprocamente. Quanto às tentativas para suprimir a guerra, nada merecem além de um sorriso.

Deste mesmo género é a opinião de outro académico, Jules Claretie:

PREZADO SENHOR,

Não pode existir senão uma única opinião, para um homem sensato, sobre a questão de paz ou de guerra.

A humanidade é feita para viver, para viver com liberdade de aperfeiçoar e melhorar sua sorte mediante um trabalho pacífi­co. O acordo geral pregado pelo The Universal Peace Congress talvez seja um belo sonho, mas é sem dúvida o mais belo dos so­nhos. O homem tem sempre diante dos olhos a Terra prometida, e sobre essa terra do futuro as colheitas deverão amadurecer sem medo de serem trituradas por granadas, nem amassadas por ro­das de canhões. Só que... Ah! Só que, como os filósofos e os ben­feitores da humanidade não são os patrões, será bom que os nossos soldados vigiem a fronteira e os arredores dos lares, e suas ar­mas, bem carregadas e bem manejadas, talvez sejam as mais se­guras garantias da paz que todos amamos.

Não se dá a paz senão aos resolutos e aos fortes.

Aceitai, prezado senhor, meus mais sinceros e distintos sen­timentos.

JULES CLARETIE.

O sentido dessa carta é que nada impede que se fale do que ninguém tem intenção nem dever de fazer. Mas, quando se trata da prática, é preciso lutar.

Eis agora a opinião recentemente expressa sobre o assunto pelo mais popular romancista da Europa, Émile Zola:

Considero a guerra como uma necessidade fatal que parece inevitável devido a suas íntimas ligações com a natureza humana e com todo o Universo. Gostaria de adiar a guerra o mais longo tempo possível. Chega, contudo, um momento no qual somos obrigados a lutar. Neste momento coloco-me sob o ponto de vis­ta universal, e de modo algum faço alusão à nossa discórdia com a Alemanha, que nada é além de um insignificante incidente na História da humanidade. Disse que a guerra é necessária e útil, porque aparece como uma condição de existência para a humani­dade. Encontramos a guerra por toda parte, não apenas entre as diversas raças e os diversos povos, mas também na vida familiar e na vida privada. Ela é um dos elementos principais do progres­so, e cada passo à frente dado até agora pela humanidade foi da­do sobre o sangue.

Falou-se e fala-se ainda do desarmamento. O desarmamento é, entretanto, algo impossível, e ainda que fosse possível, dever-se-ia re­jeitá-lo. Só um povo armado é poderoso e grande. Estou convencido de que o desarmamento geral teria como resultado uma espécie de de­cadência moral que se manifestaria pelo enfraquecimento geral e re­teria o caminho progressivo da humanidade. Uma nação guerreira goza sempre de uma saúde florescente. A arte militar traz consigo o desenvolvimento de todas as outras artes. A História é testemu­nha. Assim, em Atenas e em Roma, o comércio, a indústria e a lite­ratura jamais alcançaram tão grande desenvolvimento quanto na época em que estas cidades dominavam pela força das armas o mun­do então conhecido. Para tomar um exemplo em tempos mais recen­tes, recordemos o século de Luís XIV. As guerras do grande rei não só não impediam o progresso das artes e das ciências, mas, pelo con­trário, parecem havê-las ativado e favorecido seus desenvolvimentos.

A guerra, obra útil!

Mas a opinião mais característica neste sentido é do aca­démico de Vogue, o mais dotado entre os escritores desta ten­dência. Eis o que ele escreve — num artigo sobre a seção militar da Exposição de 1889:

Na esplanada dos Invalides, no centro dos acampamentos exóticos e coloniais, um edifício mais severo domina o pitoresco bazar; todos estes fragmentos do globo vieram agregar-se ao pa­lácio da guerra, nossos hóspedes submissos montam guarda em turnos, defronte à casa-mãe, sem a qual não estariam aqui. Belo tema de antítese para a retórica humanitária; quem não desiste de se lamentar por estas aproximações e de afirmar que uma coi­sa matará a outra1 e que a fusão dos povos, graças à ciência e ao trabalho, vencerá o instinto militar. Deixemo-la acalentar a quimera de uma idade de ouro que chegaria em breve, caso se pu­desse efetivar numa idade de lama. Toda a história nos ensina que uma coisa é criada por outra, que é preciso sangue para apressar e cimentar a fusão dos povos. As ciências da natureza têm ratifi­cado, em nossos dias, a lei misteriosa, revelada a Joseph de Maistre pela intuição de seu génio e pela meditação sobre os dogmas pri­mordiais; ele via o mundo resgatar-se de suas decadências here­ditárias por meio do sacrifício; as ciências o mostram aperfeiçoando-se pela luta e pela seleção violenta; as duas partes dão a constatação do mesmo decreto, redigido em terminologia diferen­te. A constatação é desagradável, sem dúvida; mas as leis do mun­do não são feitas para nosso deleite, são feitas para o nosso aperfeiçoamento. Entremos então neste inevitável, neste necessá­rio palácio da guerra; teremos ocasião de observar como o mais te­naz de nossos instintos, sem jamais perder parte de seu vigor, transforma-se e dobra-se às diversas exigências dos momentos his­tóricos.

lCeci tuera cela; palavras tiradas do romance de Victor Hugo: Notre-Dame de Paris.


A necessidade da guerra é provada pelo senhor De Vo­gue, por duas expressões de dois grandes pensadores, Joseph de Maistre e Darwin, e estas expressões agradam-no tanto que ele as recorda novamente em sua carta ao diretor da Revista das Revistas:

Senhor,

Vós me perguntais meu sentimento quanto ao possível sucesso do Congresso Universal da Paz. Creio, como Darwin, que a luta violenta é uma lei da natureza que rege todos os seres; creio, como Joseph de Maistre, que é uma lei divina: duas maneiras diferen­tes de nomear a mesma coisa. Se, por um acaso impossível, uma fração da sociedade humana — tomemos todo o Ocidente civil — conseguisse suspender o efeito desta lei, as raças mais instinti­vas encarregar-se-iam de aplicá-la contra nós: estas raças dariam razão à natureza contra a razão humana; e teriam sucesso, por­que a certeza da paz — não digo a paz, digo a certeza da paz — geraria, antes de meio século, uma corrupção e uma decadência mais destrutivas para o homem do que a pior das guerras. Avalio que é preciso fazer pela guerra, lei criminal da humanidade, o que deve­mos fazer por todas as nossas leis criminais, mitigá-las, tornar sua aplicação a mais rara possível, usar de todas as nossas forças para que se tornem inúteis. Mas toda a experiência da História nos en­sina que não poderemos suprimi-las enquanto existirem na Terra dois homens, o pão, o dinheiro e uma mulher entre eles.

Ficaria gratíssimo se o Congresso me desmentisse. Duvido que ele desminta a História, a Natureza, Deus.

Dignai-vos aceitar, senhor, os protestos da minha distinta con­sideração.

M. DE VOGÚÉ.

O sentido desta carta é que a História, a natureza do ho­mem e Deus nos mostram que a guerra subsistirá enquanto exis­tirem dois homens e entre eles o pão, o dinheiro e a mulher. Isto significa que nenhum progresso induzirá os homens a abandonar o selvagem conceito da vida que não admite, sem luta, a divisão do pão, do dinheiro (o que está fazendo aqui o dinheiro?) e da mulher.

São realmente estranhos estes homens que se reúnem em congressos, pronunciam discursos para ensinar como se captura um pássaro colocando-lhe um grão de sal na cauda, mesmo sa­bendo que isto é impossível. São estranhos também aqueles que, como Maupassant, Rod e outros, vêem claramente todo o hor­ror da guerra, toda a contradição disto resultante: que os ho­mens não fazem o que é preciso fazer e que lhes seria proveitoso, que lamentam as trágicas fatalidades da vida e não vêem que estas fatalidades cessarão tão logo os homens, renunciando ra­ciocinar sobre assuntos inúteis, se decidissem não mais fazer o que lhes parece penoso e repugnante.

Estes homens são surpreendentes; mas aqueles que, como o De Vogue e outros, adotando a lei da evolução que considera a guerra não só inevitável como também útil e, portanto, dese­jável, estes homens são terríveis, pavorosos em suas aberrações morais. Os primeiros dizem, ao menos, que odeiam o mal e amam o bem, enquanto estes últimos declaram abertamente que não existe o bem ou o mal. Todas as dissertações sobre a possi­bilidade de estabelecer a paz em lugar da guerra eterna não é senão sentimentalismo nocivo de faladores. Existe uma lei da evolução da qual resulta que devo viver e agir mal; o que fazer? Sou um homem culto, conheço a lei da evolução e, em conse­quência, agirei mal. "Entremos no palácio da guerra!' Existe uma lei da evolução e, em consequência, não há bem ou mal, e não é preciso viver senão para o próprio interesse pessoal, aban­donando o resto à lei da evolução. Tudo isto é a última expres­são da cultura refinada, o conjunto do obscurecimento da cons­ciência que distingue as classes esclarecidas de nosso tempo.

O desejo das classes esclarecidas de conservar por todos os meios suas ideias prediletas e a existência que lhes é conseqüente atinge o paroxismo. Estes homens mentem, enganam a si próprios e aos outros, da forma mais refinada, para conseguir ape­nas obscurecer e ofuscar a consciência.

Em vez de mudar seu modo de viver, segundo as indica­ções de sua consciência, eles procuram, por todos os meios, sufocar-lhes a voz. Mas a luz brilha na escuridão, e é assim que a verdade começa a resplandecer por entre as trevas de nossos tempos.

































Capítulo VII

Significado do serviço militar obrigatório


Os homens cultos das classes superiores procuram escon­der a necessidade, cada vez mais evidente, de uma mudança na ordem natural das coisas, mas a vida, que continua a se desen­volver e a se complicar sem mudar sua direção, aumenta as con­tradições e os sofrimentos dos homens e os conduz ao limite extremo, que não pode ser ultrapassado. Este último limite da contradição é o serviço militar obrigatório para todos.

Acredita-se, em geral, que o serviço militar obrigatório e o aumento dos armamentos dele resultante, como também o aumento dos impostos e dos débitos de Estado em todos os povos, são um fenómeno passageiro, produzido por determi­nada situação política da Europa, e que determinadas conven­ções internacionais poderiam fazer desaparecer, sem que seja para isso necessário modificar a ordem atual das coisas.

Isto é absolutamente falso. O serviço militar obrigatório é uma contradição interna que penetrou por inteiro no con­ceito social da vida, e que não se tornou evidente a não ser porque alcança os extremos limites num momento de desen­volvimento material bastante grande.

O conceito social da vida consiste, como é sabido, em que o sentido da vida foi transferido do indivíduo para o grupo, em seus diversos graus: família, tribo, raça, Estado.

Segundo este conceito, é evidente que, como o sentido da vida reside no agrupamento dos indivíduos, estes indivíduos sa­crificam voluntariamente seus interesses aos do grupo. Isto de fato ocorreu e ainda ocorre em determinados tipos de agrupa­mento, na família e na tribo, na raça e também no Estado pa­triarcal como consequência dos costumes transmitidos pela educação e confirmados pela sugestão religiosa, os indivíduos subordinavam seus interesses aos do grupo e sacrificavam-nos à comunidade sem a isto serem obrigados. Porém, mais as so­ciedades tornavam-se grandes, mais crescia o número de novos membros para a conquista, e mais se afirmava a tendência dos indivíduos a perseguir seu interesse pessoal em prejuízo do in­teresse geral; e mais ainda devia o poder recorrer à violência para dominar estes indivíduos insubordinados. Os defensores do con­ceito social procuram em geral confundir a noção do poder, ou seja, a violência, com a noção da influência moral, mas esta con­fusão é absolutamente impossível.

A influência moral age sobre os próprios desejos do ho­mem e modifica-os no sentido do que lhe é solicitado. O ho­mem que sofre a influência moral age de acordo com seus desejos. Entretanto, o significado usual da palavra é um meio para forçar o homem a agir contrariamente a seus desejos. O homem submisso ao poder age não como quer, mas como é obrigado; e é somente através da violência física, isto é, da pri­são, da tortura, da mutilação, ou da ameaça destes castigos, que se pode forçar o homem a fazer aquilo que não quer. Nis­to consiste e sempre consistiu o poder.

Apesar dos contínuos esforços dos governos para escondê-lo e para dar ao poder um outro significado, ele é para o ho­mem uma corda, uma corrente, com a qual será amarrado e arrastado, o knut com o qual será flagelado, a faca ou o ma­chado que lhe cortarão os braços, as pernas, o nariz, as ore­lhas, a cabeça; isto acontecia na época de Nero e Gengis Khãn; e isto acontece ainda hoje, no governo mais liberal, no da re­pública americana e no da república francesa. O pagamento dos impostos, o cumprimento dos deveres sociais, a submis­são às punições, tudo isto que parece voluntário traz sempre, no fundo, o temor de uma violência.

A base do poder é a violência física; e a possibilidade de submeter os homens a uma violência física é sobretudo devida a indivíduos mal organizados, de modo que agem de acordo, embora submetendo-se a uma só vontade. E, reunidos, indiví­duos armados que obedecem a uma vontade única formam o exército. O poder encontra-se sempre nas mãos dos que coman­dam o exército, e sempre todos os chefes do poder — dos cé­sares romanos aos imperadores russos e alemães — preocupam-se com o exército mais do que com qualquer outra coisa, e so­mente a ele adula, sabendo que, se ele está do seu lado, seu poder está assegurado.

Esta composição e esta força do exército, necessárias pa­ra a garantia do poder, são justamente as que introduziram no conceito social da vida o germe corruptor.

O objetivo do poder e sua razão de ser estão na limitação da liberdade dos homens que gostariam de colocar seus inte­resses pessoais acima dos interesses da sociedade. Mas, quer o poder seja adquirido pelo exército, por herança ou por elei­ção, os homens que o possuem em nada se diferenciam dos outros homens e, como eles, estão inclinados a não subordi­nar o próprio interesse ao interesse geral; muito pelo contrá­rio. Quaisquer que sejam os meios usados, não foi possível, até hoje, concretizar o ideal de só confiar o poder a homens infalíveis, ou de ao menos remover daqueles que o possuem a possibilidade de subordinar a seus interesses os interesses da sociedade.

Todos os procedimentos conhecidos, o direito divino, a eleição, a herança, produzem os mesmos resultados negativos.

Todos sabem que nenhum destes procedimentos é capaz de assegurar a transmissão do poder aos infalíveis, ou ainda de impedir o abuso do poder. Todos sabem que, ao contrário, os que o possuem — sejam soberanos, ministros, prefeitos ou guardas municipais — são sempre, por deterem o poder, mais inclinados à imoralidade, ou seja, a subordinar os interesses gerais aos interesses próprios, do que aqueles que não detêm o poder. Aliás, não pode ser de outro modo.

O conceito social só podia ser justificado enquanto os ho­mens sacrificavam voluntariamente o interesse próprio aos interesses gerais; mas tão logo surgiram alguns que não sacrifi­cavam voluntariamente o próprio interesse, sentiu-se a neces­sidade do poder, isto é, da violência, para limitar-lhe a liberdade e, então, entrou no conceito social e no ordenamento dele re­sultante o germe corruptor do poder, isto é, a violência de uns sobre outros.

Para que o domínio de uns sobre outros alcançasse seu objetivo, para que pudesse limitar a liberdade daqueles que pas­sam seus interesses pessoais à frente dos da sociedade, o po­der deveria se encontrar nas mãos de infalíveis, como supõem os chineses, ou como se acreditava na Idade Média, e como crêem hoje aqueles que têm fé na graça da unção. Somente nestas condições a ordem social pode ser compreendida.

Posto que tal não existe, mas, ao contrário, os homens que detêm o poder passam sempre ao largo da santidade, exatamente por terem o poder, já não se pode justificar o ordena­mento social com base na autoridade.

Se existiu, todavia, um tempo em que, após aviltamento do nível moral e da disposição dos homens à violência com a existência do poder ofereceu alguma vantagem, a violência da autoridade sendo menor do que a pessoal, é fato evidente que esta vantagem não poderia ser eterna. Quanto mais dimi­nuía a tendência dos indivíduos à violência, mais os costumes se suavizavam, mais o poder se corrompia em consequência de sua liberdade de ação, mais desaparecia esta vantagem.

Esta mudança da relação entre o desenvolvimento moral das massas e a desmoralização dos governos é toda a História dos últimos dois mil anos.

Eis simplesmente como tudo ocorreu:

Os homens viviam em família, em tribos, em raças, pro­vocando-se, violentando-se, roubando-se, matando-se recipro­camente. Estas violências eram cometidas em grande e peque­na escala: indivíduo contra indivíduo, família contra família, tribo contra tribo, raça contra raça, povo contra povo. O gru­po mais numeroso, mais forte, apoderava-se do mais fraco e, mais este se fortalecia, mais diminuíam as violências internas, e mais pareciam asseguradas a duração e a vida do grupo.

Os membros da família ou da tribo, reunidos em um só grupo, são menos hostis uns aos outros, e a família, ou a tri­bo, não morre como o indivíduo isolado. Entre os membros de um Estado, submetidos a uma só autoridade, a luta entre os indivíduos parece também mais fraca, e a duração do Esta­do mais indubitável.

Estas reuniões em grupos sempre maiores ocorreram não porque os homens tivessem consciência de daí obter alguma vantagem, como se narra na lenda russa, do chamado dos varegos, mas devido ao aumento das populações e, portanto, das lutas e conquistas.

Depois da conquista, de fato, o poder do conquistador faz desaparecer as discórdias internas e o conceito social da vida recebe sua justificativa. Mas esta justificativa é temporá­ria. As discórdias internas, reprimidas pelo poder, renascem do próprio poder. Este encontra-se nas mãos de homens que, como todos os outros, estão inclinados a sacrificar o bem ge­ral a seu bem pessoal, com a diferença que os violentados não lhes podem resistir e sofrem a influência corruptora do poder. Por isso o mal da violência, passando para o poder, não cessa de aumentar e torna-se maior do que aquele para o qual o po­der foi um remédio. E isso acontece enquanto, entre os mem­bros da sociedade, as tendências à violência enfraquecem cada vez mais, e enquanto a violência do poder, em consequência, torna-se cada vez menos necessária.

O poder governamental, mesmo que faça desaparecer as violências internas, sempre introduz na vida dos homens no­vas violências, cada vez maiores em razão de sua duração e de sua força. De modo que, se a violência do poder é menos evidente do que a dos particulares, porque se manifesta não pela luta, mas pela opressão, ela, não obstante, existe, e com maior frequência num grau mais elevado.

E não pode ser diferente, porque além do fato de que o poder corrompe os homens, os cálculos ou a tendência cons­tante daqueles que o detêm terão sempre por objetivo o máxi­mo enfraquecimento possível dos violentados já que, quanto mais estes estão fracos, menos esforços são necessários para dominá-los.

Por isso a viofência aumenta sempre até o extremo limite que pode alcançar, sem matar a galinha dos ovos de ouro. E se esta galinha não põe mais ovos, como os índios da Améri­ca, como os habitantes da Terra do Fogo, como os negros da África, mata-se a galinha, apesar dos sinceros protestos dos filantropos.

A melhor confirmação de tudo isto é a situação dos ope­rários de nosso tempo, que, para dizer a verdade, nada são além de servos.

Apesar de todos os supostos esforços das classes superio­res para melhorar a sorte dos trabalhadores, estes são subme­tidos a uma imutável lei de ferro, que lhes dá apenas o abso­lutamente necessário, a fim de que sejam sempre obrigados ao trabalho, embora conservando força suficiente para trabalhar em proveito de seus patrões, cujo domínio lembra o dos con­quistadores antigos.

Sempre foi assim. Sempre, à medida do aumento e da du­ração do poder, as vantagens para aqueles que lhe eram sub­missos diminuíam, e os inconvenientes aumentavam.

Isto aconteceu e acontece, independentemente das formas de governo sob as quais vivem os povos; com uma só diferen­ça: que, na forma autocrática, o poder está concentrado nas mãos de um pequeno número de violentos, e a forma das vio­lências é mais sensível, enquanto nas monarquias constitucio­nais e na república, como na França e na América, o poder é dividido entre um número maior de violentos, e a forma em que se traduz a violência é menos sensível; mas seu resultado — as desvantagens do governo maiores que as vantagens — e seu modo de agir — enfraquecimento dos oprimidos — são sempre os mesmos.

Assim foi e é a situação dos oprimidos, mas até agora es­tes ignoravam e, em sua maioria, acreditavam ingenuamente que o governo existisse para seu bem; que sem governo esta­riam perdidos; que não se pode, sem sacrilégio, exprimir a ideia de viver sem governo; que seria uma terrível doutrina — por quê? — de anarquia e que se apresenta acompanhada por um cortejo de calamidades.

Acreditava-se, como em algo absolutamente provado, que, já que até agora fodos os povos se desenvolveram sob a forma

de Estados, esta forma permanece para sempre a condição es­sencial do desenvolvimento da humanidade.

Tudo isto continuou assim por centenas e milhares de anos, e os governos sempre se esforçaram e esforçam-se ainda para manter os povos neste erro.

Assim era na época dos imperadores romanos, e assim é em nossos dias, embora a ideia da inutilidade e dos inconve­nientes do poder penetre cada vez mais na consciência das mas­sas; e seria eternamente assim, se os governos não se achassem na obrigação de aumentar continuamente seus exércitos para manter sua autoridade.

Acredita-se, em geral, que os governos aumentam os exér­citos unicamente para a defesa externa do país, enquanto, na realidade, os exércitos lhes são necessários, principalmente, para sua própria defesa contra os súditos oprimidos e reduzidos à escravidão.

Isto sempre foi e torna-se cada vez mais necessário à me­dida que se propaga a instrução, à medida que as relações en­tre os povos e os habitantes de um mesmo país se tornem mais fáceis, e sobretudo devido ao movimento comunista, socialis­ta, anarquista e o operário. Os governos compreendem e au­mentam a força de seus exércitos1.

'O fato de que os abusos do poder existem na América, malgrado o restrito número de soldados, não só não contradiz este dado, mas até o confirma. Existem menos soldados nos Estados Unidos do que em outras nações. Por isso não existe em lugar algum uma opressão menor das classes trabalhadoras e não se prevê em lugar algum um tão próximo desaparecimento dos abusos governamentais e do próprio governo. Nestes últimos tempos, à medida que os trabalhadores mais se unem, vozes cada vez mais frequentes pedem o aumento do exército, embora nenhuma agressão externa amea­ce a República.

As classes dirigentes sabem que, dentro em breve, cinquenta mil soldados não mais serão suficientes e, não mais contando com o exército de Pinkerton, compreen­dem que a garantia de seus privilégios reside apenas num aumento de forças militares.


Recentemente, no Reichstag alemão, respondendo à inter­pelação que perguntava por que eram necessários capitais pa­ra aumentar o soldo dos suboficiais, o chanceler declarou francamente que precisava ter suboficiais seguros, para lutar contra o socialismo. O senhor De Caprivi nada fez além de dizer em voz alta aquilo que todos sabem no mundo político, mas que é cuidadosamente escondido do povo. Pelo mesmo motivo formavam-se guardas suíças e escocesas para o rei de França e para os papas e ainda hoje, na Rússia, misturam-se com tanto cuidado os recrutas de modo que os regimentos des­tinados às guarnições do centro sejam compostos por solda­dos pertencentes às províncias de fronteira e vice-versa. -—P O sentido do discurso do senhor De Caprivi, traduzido em língua vulgar, é que o dinheiro é necessário não contra o inimigo externo, mas para comprar suboficiais, prontos a mar­char contra os trabalhadores oprimidos.

Caprivi disse, involuntariamente, aquilo que todos bem sabem ou que sentem aqueles que não o sabem, ou seja: que a ordem atual é tal, não porque deva ser naturalmente assim, não porque o povo quer que assim seja, mas porque o gover­no a mantém assim pela violência, apoiado no exército com seus suboficiais e seus generais comprados.

Se o trabalhador não tem terra, se ele é privado do direito mais natural, o de extrair do solo seu sustento e de sua família, não é porque o povo assim queira, mas porque determinada clas­se, os proprietários fundiários, tem o direito de contratar ou não o trabalhador. E esta ordem de coisas contra a natureza é man­tida pelo exército. Se as imensas riquezas acumuladas pelo tra­balho são consideradas pertencentes não a todos, mas a alguns; se o pagamento dos impostos e seu uso são abandonados ao ca­pricho de alguns indivíduos; se as greves dos operários são re­primidas, e as dos capitalistas protegidas; se determinados homens podem escolher as formas de educação (religiosa ou lei­ga) dos jovens; se certos homens têm o privilégio de fazer leis às quais todos os outros se devem submeter, e de assim dispor dos bens e da vida de cada um; tudo isto acontece não porque o povo queira e porque deve acontecer naturalmente, mas por­que os governos e as classes dirigentes assim querem para seu proveito e o impõem por meio de uma violência material.

Todos sabem disso, ou, se não sabem, saberão à primeira tentativa de insubordinação ou mudança nesta ordem de coisas.

Mas não existe um só governo. Junto a ele existem outros que dominam igualmente pela violência e estão sempre pron­tos a tirar do vizinho o produto de seus súditos já reduzidos à escravidão. Por isso cada um deles precisa de um exército, não só para se manter internamente, mas também para defen­der sua presa dos vizinhos ladrões. Os Estados são então leva­dos a competir no aumento de seus exércitos e este aumento é contagioso, como observou Montesquieu há 150 anos.

Cada aumento de efetivos, dirigido por um Estado con­tra seus súditos, torna-se inquietante para o estado vizinho e obriga-o, por sua vez, a reforçar seu próprio exército.

Se os exércitos hoje em dia totalizam milhões de homens, não é somente porque cada Estado sentiu a ameaça de seus vi­zinhos, mas sobretudo porque teve que reprimir tentativas de revoltas internas. Um é resultado do outro; o despotismo dos governos aumenta com sua força e seu sucesso externo, e suas disposições agressivas aumentam com o despotismo interno.

Esta rivalidade nos armamentos conduziu os governos eu­ropeus à necessidade de estabelecerem o serviço militar obriga­tório, que busca o maior número de soldados com as menores despesas possíveis.

A Alemanha foi a primeira a ter esta ideia e as outras nações imitaram-na. E, então, todos os cidadãos foram chamados às armas para manter as injustiças que entre eles eram cometidas, de modo que os cidadãos se tornaram seus próprios tiranos.

No serviço militar obrigatório esta contradição ficou evi­dente. De fato, o sentido do conceito social consiste em que o homem, tendo consciência da barbárie da luta entre indiví­duos e da falta de segurança, transportou o sentido de sua vi­da para a associação dos indivíduos. Com o serviço militar obrigatório, os homens, tendo feito todos os sacrifícios possí­veis para evitar as crueldades da luta e a instabilidade da vida, são vergonhosamente chamados a correr todos os perigos que acreditavam evitar e que, ademais, a associação — Estado — por que sacrificaram seus interesses pessoais corre os mesmos perigos de morte que ameaçavam o indivíduo isolado.

Os governos tentam poupar aos homens a luta entre indi­víduos, dando-lhes a certeza da inviolabilidade do regime adotado; porém, expõem o indivíduo aos mesmos perigos, porquanto, evitando a luta entre indivíduos do mesmo grupo, preparam-nos para uma luta entre grupos.

A criação do serviço militar obrigatório faz pensar num homem que, para que sua casa não desabe, enche-a de esco­ras, vigas, traves, tábuas, de tal forma que só consegue mantê-la de pé tornando-a absolutamente inabitável.

Do mesmo modo o serviço militar obrigatório torna nu­las todas as vantagens da vida social que é chamado a defender.

As vantagens da vida social consistem na segurança da propriedade e do trabalho, e na possibilidade de um melhora­mento geral das condições de vida. Ora, o serviço militar destrói tudo isto.

Os impostos recolhidos para as despesas militares absor­vem a maior parte do produto do trabalho que o exército deve defender.

A incorporação de todos os homens válidos ao exército compromete a própria possibilidade de trabalho. As ameaças de guerra, sempre prontas a eclodir, tornam inúteis e vãos to­dos os melhoramentos das condições da vida social.

Se em tempos idos fosse dito a um homem que sem o Es­tado ele estaria exposto às agressões dos malfeitores, dos ini­migos internos ou externos, que deveria se defender sozinho contra todos, que sua vida seria ameaçada, que, em consequên­cia, seria vantajoso para ele submeter-se a algumas privações para evitar estes males, o homem teria podido acreditar, já que o sacrifício que fazia ao Estado dava-lhe a esperança de uma vida tranquila e uma ordem de coisas que não podia desapa­recer. Mas hoje, que os seus sacrifícios desapareceram, é natu­ral que cada um pergunte a si mesmo se a submissão ao Estado não é absolutamente inútil.

Mas não reside neste fato o fatal significado deste serviço militar, como manifestação da contradição que encerra o concei­to social. A principal manifestação desta contradição consiste em que, com o serviço militar obrigatório, cada cidadão se trans­forma no sustentáculo da ordem atual das coisas e participa de todos os atos do Estado, sem lhe reconhecer a legitimidade.

Os governos afirmam que os exércitos são necessários, por toda parte, para a defesa externa. É falso. São principalmente necessários contra os próprios cidadãos, e cada soldado par­ticipa a sua revelia das violências do Estado sobre os cidadãos.

Para convencer-se desta verdade basta lembrar o que se comete em cada Estado, em nome da ordem e da tranquilida­de do povo, servindo-se sempre do exército como instrumen­to. Todas as brigas internas de dinastias ou de partidos, todas as execuções capitais que acompanham estas agitações, todas as repressões de revoltas, todas as intervenções da força arma­da para dissipar os grupos ou para impedir greves, todas as extorsões de impostos, todos os obstáculos à liberdade do tra­balho, tudo isto é feito, ou diretamente com a ajuda do exérci­to, ou da polícia, apoiada pelo exército. Cada homem que cumpre o serviço militar participa de todas estas pressões que, às vezes, lhe parecem ambíguas, mas, na maior parte do tem­po, absolutamente contrárias a sua consciência.

Assim alguns homens se recusam a abandonar a terra que cultivam de pai para filho há muitas gerações, outros não que­rem circular como pretende a autoridade, outros não querem pagar os impostos, outros não querem reconhecer como obri­gatórias certas leis que não fizeram, outros não querem per­der sua nacionalidade e eu, que estou cumprindo as obrigações do serviço militar, sou obrigado a atacar aquela gente? Eu não posso, tomando parte nestas repressões, deixar de perguntar a mim mesmo se são justas ou injustas e se devo concorrer pa­ra sua execução.

O serviço militar obrigatório é o último grau de violência necessária à manutenção da organização social, é o limite ex­tremo que pode atingir a submissão de todos, é a mola mestra cuja queda determinará a de todo o edifício. |

Com os crescentes abusos dos governos e com seu anta­gonismo, chegou-se a pretender dos governados não só sacri­fícios materiais, mas também tais sacrifícios morais, que cada um pergunta a si mesmo: Posso obedecer? Em nome de quem devo fazer sacrifícios? E estes sacrifícios são pedidos em no­me do Estado. Em nome do Estado pedem-me que sacrifique tudo o que pode ser caro ao homem: a felicidade, a família, a segurança, a dignidade humana. Mas o que é então este Es­tado que pretende sacrifícios tão terríveis? Por que ele nos é, então, tão necessário?

O Estado, dizem-nos, é necessário, em primeiro lugar, porque, sem o Estado, você e eu, todos nós ficaremos sem defesa contra a violência dos malvados; depois, porque sem o Esta­do permaneceríamos selvagens e não teríamos tido nem reli­gião, nem instrução, nem educação, nem indústria, nem co­mércio, nem meios de comunicação, nem outras instituições sociais e, enfim, porque sem o Estado teríamos corrido o ris­co de ser conquistados por povos vizinhos.

"Sem o Estado, dizem-nos, teríamos corrido o perigo de sofrer as violências dos malvados em nossa própria pátria!'

Mas quem são estes malvados de cuja maldade e de cuja violência nos preservam nosso Estado e o nosso exército? Há três ou quatro séculos, quando nos orgulhávamos de nossa ha­bilidade militar e de nossas armas, quando matar era uma ação gloriosa, existiram homens deste tipo, mas hoje não mais exis­tem, e os homens de nosso tempo não portam mais armas, e cada um prega leis de humanidade, de piedade pelo próximo e dese­ja aquilo que desejamos nós, isto é, a possibilidade de uma vi­da tranquila e estável significa que não existem mais malfeitores dos quais o Estado nos deva proteger. E, se o Estado nos deve defender dos homens considerados criminosos, sabemos que não são homens de uma outra natureza, como as bestas ferozes en­tre as ovelhas, mas homens como todos nós, que não encontram, mais do que nós, satisfação em cometer delitos. Sabemos, ho­je, que as ameaças e os castigos não podem fazer diminuir o nú­mero destes homens, e que este não diminuirá senão pela mudança do ambiente e da influência moral. De modo que a proteção do Estado contra os violentos, se era necessária há três ou quatro séculos, não o é hoje. Agora, o oposto é bem mais verdadeiro: a ação do governo com seus cruéis métodos de coer­ção, atrasados para estágio de nossa civilização, como as pri­sões, a forca, a guilhotina, concorre muito mais para a barbárie dos costumes do que para sua suavização e, em consequência, cresce, mais do que diminui, o número dos violentos.

"Sem Estado, dizem-nos, não teremos religião, educação, indústria, comércio, meios de comunicação, ou outras insti­tuições sociais!'

Sem o Estado, não teríamos podido organizar as institui­ções que são necessárias a todos. Mas este assunto teria podido ter algum valor há alguns séculos. Houve um tempo em que os homens se comunicavam tão pouco e em que os meios de aproximação e de troca de ideias eram tão precários, que não era possível haver acordos comerciais, industriais e eco­nómicos, sem um centro de Estado. Estes obstáculos, hoje, de­sapareceram. Os meios de comunicação tão amplamente de­senvolvidos e a troca de ideias fizeram com que, para a for­mação das sociedades, corporações, congressos, instituições económicas e políticas, os homens de nosso tempo não só pos­sam prescindir dos governos mas, também, na maioria das ve­zes, sejam coibidos pelo Estado que, em lugar de ajudá-los, os contraria na efetivação de seus projetos.

A começar de fins do século passado, quase todos os pas­sos da humanidade, em lugar de serem encorajados, foram con­trariados pelos governos. Assim aconteceu pela supressão das penas corporais, da tortura, da escravidão, pela instituição da liberdade de imprensa e da liberdade de reuniões. Não só o governo não ajuda, como até se opõe a cada movimento, que daria início a novas formas de vida. A solução das questões operárias, agrárias, políticas, religiosas, longe de ser encora­jada, é contrariada pela autoridade governamental.

"Sem o Estado e sem o governo, o povo teria sido con­quistado por povos vizinhos!'

Inútil responder a este argumento; ele responde por si. Dizem-nos que o governo e o seu exército nos são necessários para nos defender dos povos vizinhos, que nos poderiam su­jeitar: mas o que se diz de todos os governos e em todas as nações, e que, portanto, sabemos muito bem, é que todos os povos da Europa exaltam os princípios da liberdade e da fra­ternidade. Não deveriam, então, se defender uns aos outros. Mas, ao se falar dos bárbaros, a milésima parte das tropas que neste momento compõem o exército bastaria para mantê-los a distância. Vemos, portanto, precisamente o contrário daqui­lo que nos dizem. Não só o exagero das forças militares não nos preserva das agressões de nossos vizinhos, mas, ao con­trário, poderia ser o motivo desta agressão.

Em consequência disto, cada homem, induzido pelo serviço militar obrigatórios refletir sobre o governo em cujo nome lhe é pedido o sacrifício do próprio repouso, da própria segurança e da vida, fica claro que nada justifica, hoje, este sacrifício.

Não só é evidente que os sacrifícios pedidos pelo governo não têm, em teoria, nenhuma razão de ser, mas também na prá­tica, isto é, na presença das penosas condições em que o homem se encontre por culpa do Estado, cada um vê necessariamente que satisfazer as exigências do governo e submeter-se ao recrutamento militar é, às vezes, mais desvantajoso do que a rebelião.

Se a maioria prefere submeter-se, não é por madura refle­xão sobre o bem e o mal que isto pode resultar, mas porque está, por assim dizer, hipnotizada. Obedecendo, os homens submetem-se simplesmente às ordens que lhes são dadas, sem refletir e sem fazer um esforço de vontade. Para não obedecer, é preciso refletir com independência, e isto se constitui num esforço de que nem todos são capazes. Mas, caso fosse afasta­do o significado moral da sujeição ou da rebelião e considera­das apenas as vantagens materiais, ver-se-ia que a rebelião é, em geral, mais proveitosa do que a submissão.

Quem quer que eu seja, pertença eu à classe abastada e opressora ou à classe operária e oprimida, em ambos os casos as vantagens da rebelião serão maiores do que as da obediência.

Se pertenço à classe opressora, a menos numerosa, mi­nha recusa a obedecer ao governo terá o inconveniente de fazer-me processar como rebelde, e o que me pode acontecer de me­lhor é que me absolvam, ou seja, como se faz entre nós com os menonitas, que me obriguem a fazer meu tempo de serviço nos trabalhos civis. Mas me podem condenar à deportação ou à prisão por dois ou três anos (falo dos casos que acontece­ram na Rússia) ou talvez por um período mais longo. Podem-me até condenar à morte, embora tal condenação seja impro­vável. Eis os inconvenientes da recusa a obedecer. Os inconvenientes da submissão são os seguintes: no caso mais favorável, não me mandarão matar homens, não me fa­rão correr o risco de ser mutilado ou morto, mas me submete­rão à escravidão militar! Serei vestido com um uniforme de palhaço, cada um daqueles que tiver um posto me comandará, do soldado raso ao marechal-de-campo, cada um me obrigará a contorcer meu corpo a seu bel-prazer e, depois de me terem feito servir de um a cinco anos, deixar-me-ão ainda por dez anos» na condição de ser a qualquer instante chamado para executar as ordens que toda aquela gente me dará. No caso menos favo­ravel acontecerá que, além desta escravidão, me mandarão pa­ra a guerra, onde serei obrigado a matar homens de países estrangeiros que nada me fizeram, onde posso ser aleijado ou morto, ou mandado para uma morte certa como em Sebastopol ou, o que é ainda mais cruel, posso ser conduzido contra meus próprios compatriotas e ser obrigado a matar meus irmãos, por interesses dinásticos ou governamentais, que me são de to­do estranhos. Tais são os respectivos inconvenientes. Quanto às vantagens da obediência ou da rebelião, ei-los: aquele que não se recusou ao serviço militar, passou por todas estas humilhações e executou toda esta crueldade pode, se não estiver morto, receber em sua veste de palhaço ornamentos ver­melhos ou dourados; pode, no caso mais afortunado, coman­dar centenas de milhares de homens embrutecidos como ele e ser chamado de marechal-de-campo, e ganhar muito dinheiro.

O recalcitrante terá as vantagens de conservar sua digni­dade de homem, de ser estimado por gente honrada e, sobre­tudo, de ter consciência de realizar uma obra de Deus, ou seja, uma obra útil aos homens.

Tais são as vantagens e os inconvenientes, nos dois casos, para um homem da classe abastada e opressora. Quanto ao homem da classe operária pobre, as vantagens e os inconve­nientes serão os mesmos, mas com um notável aumento dos inconvenientes; além disso, participando do serviço militar, con­solida com seu apoio a opressão à qual é submetido.

Mas a questão da necessidade de um governo não se po­de resolver com reflexões sobre a maior ou menor utilidade do Estado ao qual os homens prestam apoio, participando do serviço militar, e muito menos com reflexões sobre as vanta­gens ou os danos da submissão ou da revolta.

Esta questão só pode ser resolvida de modo definitivo, apelando-se à consciência de cada homem a quem se apresen­ta, sem que ele o deseje, o serviço militar obrigatório.