George Orwell

 

 

 

 

LUTANDO NA ESPANHA

 

 

PARTE I

PARTE II

PARTE III

PARTE IV

 

 

 

 

No Quartel Lênin em Barcelona, na véspera de meu ingresso na milícia, vi um miliciano italiano em frente à mesa dos oficiais.

Era um moço de seus vinte e cinco anos de idade, com expressão carrancuda, espadaúdo, cabelo meio avermelhado e louro. O quepe de couro, de bico, estava repuxado de modo feroz sobre um dos olhos, e de perfil para mim, tinha o queixo encostado ao peito, olhando com perplexidade um mapa que um dos oficiais abrira sobre a mesa. Alguma coisa, em sua expressão fisionômica, causou-me profunda emoção. Era o rosto de um homem que assassinaria outro, ou daria sua própria vida por um amigo, o tipo de rosto que se espera encontrar num anarquista, embora com toda a probabilidade ele fosse comunista. Encontravam-se, naquela expressão, candura e ferocidade ao mesmo tempo, bem como a reverência patética que os analfabetos possuem por aqueles que julgam seus superiores. Estava mais do que claro que ele não entendia patavina do mapa, cuja leitura e interpretação deviam, a seus olhos, constituir estupenda façanha intelectual. Eu não sei por que, mas poucas vezes vi alguém que me agradasse de modo tão imediato. Enquanto eles conversavam em torno da mesa alguma observação feita por um deles assinalou o fato de eu ser estrangeiro. O italiano ergueu a cabeça e perguntou imediatamente:

- Italiano?

- No, Inglês. Y tú? - retorqui, em meu fraco espanhol.

- Italiano.

Ao sairmos daquela sala, ele veio em minha direção e apanhou-me a mão com força. É estranha a afeição que podemos sentir por um desconhecido! Era como se o espírito dele e o meu conseguissem, por um instante, ultrapassar o obstáculo do idioma e das tradições diferentes, e se encontrassem na maior intimidade. Eu esperava que ele gostasse de mim tanto quanto eu gostava dele, mas também sabia que para conservar minha primeira impressão a seu respeito seria preciso não velo pela segunda vez, sendo desnecessário dizer que foi exatamente isso o que aconteceu. Sempre se estava fazendo tais tipos de contato e conhecimentos na Espanha.

Faço esta referência ao miliciano italiano porque ele ficou vivamente preso à minha lembrança. Com seu uniforme em mau estado e expressão fisionômica feroz e patética, ele constitui para mim a visão típica da atmosfera especial daquela época. Está entrelaçado a todas as minhas recordações daquele período da guerra, as bandeiras vermelhas em Barcelona, os trens descoloridos repletos de soldados mal trajados que rumavam para a frente de luta, as cidades pardacentas e assoladas pela guerra próxima, as trincheiras enlameadas e regeladas nas montanhas.

Isso foi em fins de dezembro de 1936, há menos de sete meses de quando escrevo e, no entanto, trata-se de período que já se esfumou em distância tremenda no tempo. Os acontecimentos subseqüentes apagaram tudo aquilo de modo muito mais completo do que obliteraram 1935, ou mesmo 1905, a bem da verdade. Eu chegara à Espanha com certa intenção de escrever artigos para a imprensa, mas ingressara na milícia quase em seguida à minha chegada, porque naquela época, e naquela atmosfera, isso pareceu ser a única coisa que podia fazer. Os anarquistas continuavam detentores do controle virtual da Catalunha, e a revolução prosseguia renhida. A qualquer pessoa que estivesse lá, desde o início desses acontecimentos, provavelmente pareceu, mesmo em dezembro ou janeiro, que o período revolucionário estava terminando; mas para uma pessoa que vinha da Inglaterra, o aspecto de Barcelona era alguma coisa de surpreendente e arrebatador. Pela primeira vez em minha vida eu estava numa cidade onde a classe trabalhadora se encontrava no poder. Praticamente todas as edificações, fosse qual fosse seu tamanho, foram tomadas pelos trabalhadores e encontravam-se ornamentadas com bandeiras vermelhas, ou com a bandeira vermelha e negra dos anarquistas, e em todas as paredes e muros viam-se a foice e o martelo, e as iniciais dos partidos revolucionários, enquanto quase todas as igrejas foram estripadas, e suas imagens queimadas. Aqui e ali, as igrejas estavam sendo sistematicamente demolidas por turmas de trabalhadores. Em todas as casas comerciais e cafés encontrava-se a inscrição dizendo que foram coletivizadas, e até mesmo os engraxates o foram, trazendo suas caixas de apetrechos nas cores preto e vermelho. Os garçons e lojistas encaravam as pessoas frente a frente e tratavam os fregueses como seus iguais. As formas servis e cerimoniosas de tratamento desapareceram temporariamente, e ninguém dizia mais "Señor", ou "Don", ou mesmo "Usted", e todos se chamavam "Camarada" e "Tu", dizendo "Salud!" ao invés de "Buenos dias". Dar gorjetas era proibido por lei, e uma de minhas primeiras experiências ao chegar fora receber uma sarabanda do gerente de hotel, por querer dar gorjeta ao ascensorista. Não havia automóveis particulares, e todos aqueles existentes tinham sido requisitados, enquanto bondes e táxis, bem como grande parte dos demais meios de transporte encontravam-se pintados de negro e vermelho. Os cartazes e faixas revolucionários estavam por toda a parte, estendendo-se das paredes em vermelhos e azuis vivos, que faziam os poucos anúncios restantes parecerem pequenas manchas de lama. Ao longo da Ramblas, a larga artéria central da cidade onde multidões andavam sem cessar, de um para outro lado, os alto-falantes berravam as canções revolucionárias por todo o dia e adentravam-se pela noite. Mas o aspecto proporcionado pelas multidões constituía o ponto mais estranho de todos. Em sua aparência exterior, tratava-se de cidade na qual haviam praticamente deixado de existir as classes ricas. Com exceção de pequeno número de mulheres e estrangeiros, não havia pessoas "bem vestidas", em absoluto. Virtualmente todos usavam roupas brutas de trabalhadores, ou macacões azuis, ou ainda alguma variação do uniforme miliciano. Tudo isso era estranho e' comovedor. Muita coisa eu não compreendia e, de certo modo, não me agradava, mas reconheci imediatamente a situação como um estado de coisas pelo qual valia a pena lutar. Eu acreditava, ao mesmo tempo, que as coisas eram aquilo que pareciam ser, que realmente se tratava de um Estado dos trabalhadores, e que toda a burguesia fugira, fora morta ou se passara voluntariamente para o lado dos trabalhadores, e não percebi que grande número dos burgueses, gente bem de vida, estava simplesmente dissimulado e disfarçado em proletários, enquanto perdurasse aquela situação.

Juntamente a isso havia certa parte da atmosfera ruim de guerra. A cidade apresentava aspecto sombrio e desarrumado, as ruas e edifícios encontravam-se em mau estado de conservação, à noite as ruas tinham pouca iluminação devido ao receio às incursões aéreas do inimigo, enquanto lojas e casas comerciais, em sua maior parte, permaneciam meio vazias e mal cuidadas. Faltava carne e o leite era praticamente impossível de conseguir, e a escassez estendia-se também ao carvão, açúcar e petróleo, sendo muito difícil achar pão. As filas de pão estendiam-se por centenas de metros, muitas vezes. Mas até onde se podia perceber o povo estava contente e esperançoso. Não existia desemprego, e o custo de vida mostrava-se ainda extremamente baixo, vendo-se poucas pessoas claramente destituídas, e mendigo nenhum, com exceção dos ciganos. Acima de tudo, prevalecia uma crença na revolução e no futuro, o sentimento de ter-se de repente entrado numa era de igualdade e liberdade. Os seres humanos procuravam comportar-se como tais, e não como engrenagens na máquina capitalista. Nas barbearias encontravam-se proclamações anarquistas (em sua maioria os barbeiros eram anarquistas), explicando de modo solene que aqueles profissionais não mais eram escravos. Nas ruas havia cartazes coloridos nos quais eram feitos apelos às prostitutas para que parassem com o exercício de seu oficio, e para qualquer pessoa vinda da civilização endurecida e escarninha das raças de fala inglesa existia alguma coisa bastante patética no caráter literal com que aqueles espanhóis idealistas acolhiam as frases corriqueiras de revolução. Naquela época, as baladas e canções revolucionárias do tipo mais ingênuo, todas falando na fraternidade proletária e na ruindade de Mussolíni, eram vendidas nas ruas por alguns cêntimos, e muitas vezes vi um miliciano analfabeto comprar uma, coletar com grande esforço as palavras e em seguida, apreendendo o sentido, começar a cantá-las com uma melodia apropriada.

Por todo esse tempo permaneci no Quartel Lênin, e oficialmente estava em treinamento para seguir depois para a linha de frente. Quando ingressei na milícia, disseram que eu seria enviado à linha de frente no dia seguinte, mas na verdade foi preciso esperar enquanto era treinada uma nova centúria. As milícias dos trabalhadores, apressadamente formadas pelos sindicatos ao início da guerra, ainda não tinham sido organizadas numa base comum de exército terrestre. As unidades de comando eram a "seção", com cerca de trinta homens, e a "coluna", o que na realidade significava qualquer número maior de homens. O Quartel Lênin era um quarteirão de magníficos edifícios de pedra, com uma escola de equitação e enormes pátios pavimentados com paralelepípedos, tendo sido quartel de cavalaria, capturado durante as lutas de julho. Minha centúria dormia num dos estábulos, debaixo dos cochos de pedra onde ainda estavam escritos os nomes dos cavalos. Todos esses animais foram mandados à linha de frente, mas o lugar continuava cheirando a urina e a aveia estragada. Fiquei naquele quartel perto de uma semana, e a recordação principal que guardei foram os cheiros cavalares, os toques inseguros das cometas (todos os nossos corneteiros eram amadores, e travei conhecimento com os toques espanhóis, pela primeira vez, ouvindo-os fora das linhas fascistas), a batida cadenciada das botinas ferradas no pátio do quartel, as prolongadas paradas matutinas ao sol de inverno, as renhidas partidas de futebol onde cinqüenta homens se empenhavam de cada lado, no saibro da escola de equitação. Talvez houvesse uns mil homens no quartel, e outras tantas mulheres, além das esposas dos milicianos, que se encarregavam de fazer a comida. Havia, ainda, mulheres servindo nas milícias, embora não muitas. Nas primeiras batalhas combateram lado a lado com os homens, como se fosse a atitude mais natural do mundo. É uma coisa que parece natural, em época de revolução. Mas as idéias já estavam em transformação. Os milicianos tinham de ser mantidos fora da escola de equitação, enquanto as mulheres recebiam treinamento, porque riam delas e as embaraçavam com sua galhofa. Alguns meses antes, ninguém teria achado graça alguma ao ver as mulheres empunhando armas.

Todo o quartel se encontrava naquele estado de sujeira e desordem ao qual a milícia levava todos os edifícios por ela ocupados, e que parece um dos subprodutos da revolução. Em qualquer canto onde se olhasse, estavam pilhas de móveis quebrados, selas inserviveis, capacetes metálicos de cavalarianos, bainhas vazias de sabres e alimento deteriorado. Havia um desperdício espantoso de alimentos, em especial o pão. Só de meu alojamento era jogada fora toda uma cesta de pão, a cada refeição, coisa verdadeiramente deplorável quando se sabia que esse gênero estava faltando à população civil. Comíamos em compridas armações de mesa, tendo por pratos um vasilhame permanentemente engordurado, e bebíamos um negócio horrível, chamado porrón. Um porrón é um tipo de garrafa com bico fino, do qual espirra um jato de vinho sempre que é virado, e assim pode-se beber à distância, sem tocá-la com os lábios, e passá-la de um a outro usuário. Entrei em greve e exigi uma caneca, assim que vi o porrón em uso. Para mim, era demasiada a semelhança entre aquele objeto e um urinol de doentes, ainda mais quando cheio de vinho branco.

Pouco a pouco os recrutas iam recebendo seus uniformes, e como estávamos na Espanha, tudo lhes era entregue sem qualquer método ou ordem, de modo que não se podia ter certeza de quem recebera o quê, e diversos artigos dos quais mais necessitávamos, como cinturões e cartucheiras, não foram distribuídos senão ao último instante, quando o trem já estava à nossa espera para levar-nos à linha de frente. Já falei sobre o "uniforme" da milícia, palavra essa que talvez proporcione uma impressão errônea. A coisa não era propriamente um uniforme, e a palavra "multiforme" poderia constituir descrição mais exata. As roupas de todos seguiam o mesmo plano geral, mas jamais se mostravam idênticas em dois homens, quaisquer que fossem eles. Praticamente todos, no exército, usavam culotes de belbute, mas terminava aí a uniformidade. Alguns usavam perneiras curtas, outros polainas de belbute, outros calçavam botas de cano alto e havia quem usasse perneiras compridas. Todos envergavam uma jaqueta fechada com zipper, mas algumas dessas jaquetas eram de couro, outras de lá, e de todas as cores imagináveis. Os tipos de cobertura para a cabeça eram quase tão numerosos quanto os homens. Era comum adornar a parte dianteira do que estava na cabeça com um distintivo do partido, e além disso quase todos usavam um lenço vermelho, ou vermelho e negro, em torno do pescoço. Naquela época, uma coluna revolucionária constituía uma malta de aspecto dos mais extraordinários. Mas as roupas tinham de ser fornecidas às tropas, assim que esta ou aquela fábrica as produzisse a toda pressa, e não eram de má qualidade, levando-se em conta as circunstâncias. As camisas e meias, no entanto, não passavam de autênticas porcarias em algodão, coisa de todo inútil contra o frio. Horroriza-me o pensamento do que os milicianos devem ter sofrido nos primeiros meses de luta, antes de ser possível organizar qualquer coisa. Recordo-me de ter encontrado um jornal de apenas dois meses antes, onde li que um dos lideres do P .O. U . M., depois de fazer uma visita à frente de batalha, declarara que ia procurar dar "a cada miliciano um cobertor". Eis uma frase que faz estremecer quem já tenha dormido numa trincheira.

Em meu segundo dia no quartel, teve início o que bem humoradamente era chamado "instrução". De começo, houve cenas da mais pavorosa bagunça. Em sua maioria os recrutas eram rapazinhos de 16 ou 17 anos, vindos das ruas pobres de Barcelona, cheios de ardor revolucionário mas inteiramente ignorantes quanto ao significado da guerra. Era impossível fazer com que se mantivessem em forma. Não havia qualquer disciplina, e quando um deles não gostava de determinada ordem saía das fileiras e ia discuti-la veementemente com o oficial. O tenente que nos proporcionava instrução era um rapaz forte e de expressão animada, que fora anteriormente oficial do Exército Regular e ainda o parecia ser, com seu uniforme impecável e porte marcial. Por curioso que pareça, era socialista sincero e ardoroso. Ainda mais do que os próprios homens, ele insistia na completa igualdade social entre todas as patentes. Lembro-me de sua surpresa dolorida, quando um recruta ignorante dirigiu-se a ele tratando-o como "Señor".

- O quê? Señor? Quem me chama de Señor? Pois não somos todos camaradas?

Duvido muito de que tal atitude lhe facilitasse o trabalho. Enquanto isso, os recrutas mais bisonhos não recebiam qualquer preparo que lhes pudesse ser útil. Disseram-me que os estrangeiros não estavam obrigados a comparecer à "instrução" (e notei que os espanhóis tinham a crença patética de que todos os estrangeiros conheciam melhor as coisas de milícia do que eles próprios), mas naturalmente apresentei-me com os demais. Estava ansioso por aprender como utilizar uma metralhadora, arma que jamais tivera a oportunidade de manejar. Para meu desalento, verifiquei que não nos ensinavam coisa alguma a respeito do uso de armas. A chamada "instrução" era apenas ordem unida, e do tipo mais antiquado e estúpido: direita-volver, esquerda-volver, meia-volta-volver, marchar em continência em coluna de três, e todo o resto de bobagens inúteis que eu aprendera aos quinze anos de idade. Era um tipo de treinamento bastante extraordinário a adotar, quando se tratava de preparar um exército para guerrilhas. Está claro que se há apenas alguns dias para treinar-se um soldado, é preciso ensinar-lhe as coisas de que mais necessitará: como se abrigar, como avançar em terreno descoberto, como montar guarda e construir um parapeito e, acima de tudo, como utilizar suas armas. Mas aquela montoeira de crianças entusiasmadas, que iam ser despejadas na linha de frente dentro de poucos dias, não aprendeu sequer a disparar um fuzil ou a tirar o pino de uma bomba. Naquela época eu não percebia que isso devia-se ao fato de não haver armas para distribuir aos homens. Na milícia do P .0. U. M. a escassez de fuzis era tão grande que os soldados recém-chegados à frente de luta tinham sempre de recebê-los dos homens aos quais iam substituir. Em todo o Quartel Lênin acredito que não houvesse outros fuzis além dos utilizados pelas sentinelas.

Depois de alguns dias, embora continuássemos a ser uma malta humana se comparada a qualquer padrão comum, éramos considerados prontos para ser vistos em público, e pelas manhãs marchávamos pelos jardins da cidade, no morro que fica por trás da Plaza de España. Era o terreno comum para exercícios de ordem unida de todas as milícias partidárias, e mais os carabineiros e os primeiros contingentes do Exército Popular que estava em formação. Naqueles jardins públicos tinha-se uma visão estranha e reconfortante. Por todos os seus caminhos e passeios, entre os canteiros de flores, escolas e companhias de homens marchavam, rígidas, de um para outro lado, estofando o peito e procurando desesperadamente assemelhar-se a soldados. Estavam todos desarmados e nenhum deles envergava uniforme completo, embora na maioria dos casos o uniforme da milícia estivesse a rasgar-se e estourar neste ou naquele ponto. O treinamento era sempre o mesmo. Por três horas marchávamos de um para o outro lado (o passo espanhol de marcha é muito curto e rápido), depois fazíamos alto, dava-se "fora de forma" e íamos em bando sedento a uma pequena mercearia que ficava na subida do morro e cujo dono estava fazendo um negócio dos mais prósperos, com a venda de vinho barato. Todos se mostravam meus amigos, e como inglês eu constituía algo assim como uma curiosidade, e os oficiais carabineiros prestavam-me grande deferência e pagavam-me a bebida. Enquanto isso, todas as vezes em que eu conseguia encurralar nosso tenente em um canto, bradava para que me instruíssem no uso da metralhadoras. Eu tirava o dicionário do bolso, e começava a falar-lhe, com meu espanhol dos mais infames:

- Yo sé manejar fusil. No sé manejar a metralladora. Quiero aprender ametralladora. Cuando vamos aprender a metralladora?

A resposta era invariável: um sorriso embaraçado e a promessa de que haveria instrução sobre metralhadoras mañana. Não é preciso dizer que esse mañana nunca chegou. Passaram-se diversos dias, os recrutas aprenderam a marchar com passo certo e ficar em "sentido" com pose quase marcial, mas quando muito sabiam o lado pelo qual saía a bala de um fuzil. Certo dia um carabineiro armado passou por nós enquanto estávamos parados, e deixou que examinássemos sua arma. Foi então que se viu que em toda a minha seção ninguém, a não ser eu, sabia sequer carregar a arma, e muito menos como fazer pontaria com ela.

Nesse período eu travava minhas batalhas costumeiras com o idioma espanhol. Além de mim havia apenas um inglês no quartel, e entre os oficiais não se achava um só que falasse qualquer coisa de francês As coisas não eram fáceis, para mim, pois quando meus companheiros falavam um com o outro faziam-no em catalão O único modo pelo qual eu conseguia tocar à frente era levar por toda a parte um pequeno dicionário, que arrancava do bolso nos momentos de crise. Mas era preferível ser estrangeiro na Espanha a selo na maioria dos outros países. Como é fácil fazer amigos na Espanha! Em um ou dois dias eram numerosos os milicianos a chamar-me pelo primeiro nome, ensinando-me os truques e peculiaridades do lugar e da vida, e arrebatando-me com sua hospitalidade. Não estou escrevendo um livro de propaganda, e não pretendo apresentar a milícia P.O.U.M. como uma coisa ideal. Todo o seu sistema apresentava falhas sérias, e os próprios homens formavam um bando bastante heterogêneo, pois a essa altura o recrutamento diminuía e muitos dos melhores elementos encontravam-se na linha de frente, ou já haviam morrido. Sempre existia entre nós uma certa percentagem inteiramente inútil. Rapazinhos de 15 anos eram levados a alistar-se pelos seus pais, e isso declaradamente devido às dez pesetas diárias que formavam o soldo do miliciano, bem como por causa do pão que a milícia recebia em quantidade e conseguia mandar para casa dos pais. Mas desafio qualquer um a que fosse lançado, como eu fui, em meio à classe trabalhadora espanhola - ou talvez devesse dizer classe trabalhadora catalã, pois à parte de alguns aragoneses e andaluzes eu só me dava com os catalães - e não ficasse impressionado por seu sentimento íntimo de decência e, acima de tudo, por sua franqueza e generosidade. A generosidade de uni espanhol, no sentido comum da palavra, mostra-se às vezes quase embaraçosa. Quando se lhe pede um cigarro, ele quer que aceitemos todo o maço, e além disso existe a generosidade num sentido mais profundo, uma verdadeira largueza de espírito que encontrei muitas vezes nas circunstâncias as mais desesperançadas. Alguns dos jornalistas e outros estrangeiros que viajaram pela Espanha durante a guerra declararam que, entre si e em segredo, os espanhóis se mostravam amargamente ressentidos com o auxilio recebido do exterior. Tudo quanto posso dizer é que jamais observei qualquer demonstração desse tipo. Recordo-me bem que alguns dias antes de deixar o quartel, chegaram da linha de frente, em licença, diversos combatentes, e falavam animadamente de suas experiências, mostrando-se cheios de entusiasmo por soldados franceses que estiveram a seu lado em Huesca. Os franceses eram muito valentes, diziam eles, e acrescentavam automaticamente: "Más valientes que nosotros". Está claro que exprimi dúvida, pelo que eles explicaram que os franceses conheciam melhor a arte da guerra, eram mais hábeis com as bombas, metralhadoras e assim por diante. Com tudo isso, seu comentário era significativo. Um inglês preferiria cortar a própria mão a dizer uma coisa dessas.

Todos os estrangeiros que serviam na milícia passaram suas primeiras semanas aprendendo a amar os espanhóis e a ficar exasperados por algumas de suas características. Na linha de frente a minha própria impaciência atingia as raias da fúria, em determinadas ocasiões. Os espanhóis são bons em muitas coisas, mas não na guerra. Todos os estrangeiros ficam atônitos diante de sua ineficiência, e acima de tudo por sua impontualidade enlouquecedora. A palavra espanhola que nenhum estrangeiro consegue deixar de aprender é mañana - "amanhã" (em sentido literal, "o amanhecer"). Sempre que humanamente possível, os assuntos de hoje são transferidos para mañana. Isso é tão conhecido que os próprios espanhóis fazem piadas a respeito. Na Espanha não há coisa alguma, desde uma refeição até uma batalha, que tenha lugar à hora marcada. Via de regra as coisas acontecem tarde demais, mas somente de vez em quando - de modo que não se possa contar sequer com esse retardamento - acontecem cedo demais. Um trem que está de partida marcada para as oito horas sairá, em condições normais, em qualquer hora entre nove e dez, mas talvez uma vez por semana, graças à veneta pessoal do maquinista, ele saia às sete e meia. Essas coisas acabam um pouco chatas. Em teoria, eu admiro muito os espanhóis por não partilharem nossa setentrional neurose cronométrica, mas por desgraça também sofro dela.

Depois de boatos sem fim, muitos mañanas e retardamentos, recebemos de repente ordens para seguir rumo à linha de frente, com duas horas de antecedência, quando grande parte de nosso equipamento ainda estava por ser distribuída. Formaram-se tumultos tremendos no depósito do intendente, e ao final das coisas eram numerosos os que tinham de partir sem estarem com todo o seu equipamento. O quartel ficara logo repleto de mulheres que pareciam ter brotado do chão, e estavam ajudando seus homens a enrolar os cobertores e preparar suas bolsas. Para mim foi bastante humilhante ter de aprender como envergar minhas cartucheiras, e aprender com uma espanhola, a esposa de Williams, o outro miliciano inglês. Era uma criatura gentil, de olhos negros e intensamente feminina, com toda a aparência de que o único trabalho de sua vida estaria em embalar um berço, mas que na verdade lutara bravamente nas batalhas travadas nas ruas, em julho. A esta altura ela estava carregando uma criancinha nascida dez meses depois de iniciada a guerra, criança essa que talvez tivesse sido gerada atrás de uma barricada.

O trem deveria partir às Oito, e eram oito e dez quando os oficiais, vexados e suando em bicas, conseguiram reunir-nos na praça do quartel. Lembro-me com toda clareza daquela cena ocorrida à luz dos archotes - o clamor e a animação, as bandeiras vermelhas tremulando à luz dos archotes, as fileiras cerradas de milicianos com mochila às costas e os cobertores enrolados e atravessados no ombro à bandoleira, e mais os gritos e bater de botinas e vasilhas de estanho nas quais comíamos e, finalmente, o pedido hercúleo e vitorioso para que se fizesse silêncio. Foi quando algum comissário político, de pé sob uma imensa bandeira vermelha que drapejava, pronunciou um discurso em catalão. Depois disso marchamos até à estação, fazendo-o pelo caminho mais longo e que se estendia por uns sete quilômetros, de modo a sermos vistos por toda a cidade. Na Ramblas, fizeram-nos parar enquanto uma banda de música arrumada por empréstimo executava algumas peças revolucionárias. Mais uma vez veio aquela história de heroísmo e vencedores, gritos e entusiasmo, bandeiras vermelhas e bandeiras rubro-negras por toda a parte, multidões nas calçadas para poderem olhar, mulheres que acenavam das janelas... Como tudo pareceu natural naquela ocasião, e como parece distante e inacreditável agora! O trem ficou tão cheio de soldados que quase não se encontrava lugar no chão, quanto mais nos bancos. No último instante a esposa de Williams veio correndo pela plataforma e nos deu uma garrafa de vinho e um palmo daquela lingüiça vermelho-vivo que tem gosto de sabão e é formidável para causar diarréia. O trem seguiu lentamente pela Catalunha e chegou ao planalto de Aragón, desenvolvendo a velocidade normal de tempo de guerra, qualquer coisa abaixo de vinte quilômetros horários.

2

Barbatrio, embora muito longe da linha de frente, parecia desolada e surrada. Enxames de milicianos, envergando uniformes muito maltratados, andavam de uma a outra extremidade das ruas, procurando aquecer-se pelo exercício. Num muro arruinado encontrei um cartaz que datava do ano anterior e onde se anunciava que "seis belos touros" seriam mortos na arena, em tal ou qual dia. Como estavam desbotadas as suas cores! Onde se encontravam os belos touros e os belos toureiros, àquela altura? Parecia que até mesmo em Barcelona quase não havia corridas de touros, e por algum motivo misterioso acontecia que os melhores matadores eram fascistas.

Mandaram minha companhia em caminhão aberto para Sietamo, e dali para Alcubierre, em direção ao oeste, por trás da linha defrontando com Saragoça. Sietamo fora disputada três vezes até que os anarquistas finalmente a conquistaram em outubro, e partes da cidade foram reduzidas a escombros pelo fogo de artilharia, enquanto a maioria das casas exibia marcas de balas de fuzil. Estávamos agora 450 metros acima do nível do mar, e fazia um frio desgraçado, com nevoeiro espesso que vinha em turbilhões sei lá donde. Entre Sietamo e Alcubierre o motorista do caminhão perdeu a noção do caminho (isso foi um dos traços característicos da guerra) e ficamos rodando horas a fio naquele nevoeiro. Era bem tarde quando chegamos a Alcubierre, e alguém nos guiou por pântanos de lama até um estábulo de mulas, onde nos acomodamos na palha e logo começamos a dormir. A palha não é ruim para dormir quando está limpa; não é tão boa quanto o feno, mas é melhor do que o colmo. Foi somente de manhã, com a luz do dia, que descobri, no que fora nossa cama para a noite, grande quantidade de pedaços de pão, jornais rasgados, ossos, ratos mortos e latas de leite, vazias e amassadas.

Estávamos perto da linha de frente, e suficientemente perto para podermos sentir o cheiro característico da guerra, cheiro esse que, em minha experiência, é o de excrementos e alimentos deteriorados. Alcubierre jamais fora bombardeada pela artilharia, encontrando-se em melhor estado do que a maioria das aldeias situadas logo por trás da linha de batalha. Ainda assim, acredito que mesmo na paz não fosse possível viajar naquela região da Espanha sem se ficar impressionado pela miséria esquálida e própria das aldeias aragonesas. Elas são construídas como fortalezas, formando um amontoado de pequenas casas de barro e pedra ao redor da igreja, e mesmo na primavera é difícil encontrar uma flor por ali. As casas não têm jardim, apenas quintais onde aves domésticas descarnadas ciscam no meio de montes de estrume. O tempo estava horrível, alternando-se entre chuva e nevoeiro. Os estreitos caminhos de terra encontravam-se transformados em mar de lama, com buracos de dois palmos de profundidade em diversos pontos, e por ali os caminhões lutavam, com rodas a resvalar e os camponeses seguiam com seus carrinhos desajeitados, puxados por fileiras de mulas que às vezes eram até seis, sempre uma atrás da outra. O vaivém constante dos soldados reduzira a aldeia a um estado de sujeira indescritível. Ela não possuía então, e jamais possuíra antes, coisa tal como um banheiro ou esgoto de qualquer tipo, e não havia um só metro quadrado onde pisar sem ser preciso olhar antes. Desde muito a igreja local estava sendo usada como latrina, e o mesmo ocorria com todo o campo por boa distância ao redor. Jamais consigo pensar nos meus dois primeiros meses de guerra sem pensar também nos campos de restolho, com as beiras orladas de excrementos.

Passaram-se dois dias e não nos deram fuzis. Depois de se ter estado no Comitê de Guerra e examinado a carreira de buracos na parede - buracos de descargas de fuzil, pois diversos fascistas foram executados ali - já se tinha visto tudo quanto Alcubierre podia apresentar em matéria de paisagem. Na linha de frente era patente que as coisas andavam calmas, sendo muito pequeno o número de feridos que vinham de lá. A animação maior foi a chegada de desertores fascistas, trazidos sob guarda da linha de frente. Muitos dos homens que se opunham a nós naquela parte da linha de batalha não eram absolutamente fascistas, apenas pobres conscritos que faziam seu serviço militar quando a guerra irrompera e nada mais queriam do que fugir. De vez em quando pequenos grupos deles arriscavam-se a atravessar as linhas, vindo para nosso lado. Não há qualquer dúvida de que seu número seria maior, se os seus parentes não estivessem no território fascista. Esses desertores foram os primeiros fascistas "verdadeiros" que eu já vira até então, e verifiquei que eram indistinguíveis de nós mesmos, a não ser pelo fato de usarem macacões cáqui. Mostravam-se sempre tremendamente famintos ao chegar - o que era natural depois de um ou dois dias de fuga, andando pela "terra de ninguém", mas sempre alguém indicava isso de modo triunfante, como prova de que as tropas fascistas morriam à fome. Observei um deles recebendo comida numa casa de camponês. O espetáculo era triste. Moço alto, de seus vinte anos, o rosto acentuadamente ressecado pelo vento e as roupas em frangalhos, estava acocorado diante do fogo e enfiava o ensopado pela boca adentro em velocidade desesperada, e por todo esse tempo examinava nervosamente o círculo de milicianos que o observavam. Acho que ainda acreditava em que éramos "vermelhos" sedentos de sangue e que íamos fuzilá-lo assim que acabasse de comer. O homem armado que o guardava continuava a bater-lhe amistosamente no ombro e a emitir sons reconfortantes. Em certo dia memorável chegaram quinze desertores de uma vez, e foram levados pela aldeia em triunfo, com um homem montado em cavalo branco à frente. Consegui tirar uma fotografia bastante embaçada desse grupo triunfal, porém mais tarde roubaram-ma.

Em nossa terceira manhã em Alcubierre, chegaram os fuzis. Um sargento de cara abrutalhada e amarelo-escura estava a distribuí-los no curral das mulas. Quando vi a arma que me deram, veio o desalento. Tratava-se de um Mauser alemão de 1896, arma com mais de quarenta anos de existência! Estava enferrujada, o ferrolho endurecido, a guarda de madeira rachada. Bastou um olhar pelo cano para ver que estava corroído e além de qualquer esperança. A maioria dos fuzis encontrava-se em mau estado, alguns eram até piores, e nenhuma tentativa foi feita no sentido de entregar as armas melhores aos homens que soubessem como utilizá-las. O melhor fuzil de toda a partida, que tinha apenas dez anos de fabricação, foi dado a um bestinha amalucado e de 15 anos de idade, que todos conheciam como o maricón. O sargento proporcionou-nos uma "instrução" de cinco minutos, que consistiu em explicar como se carregava um fuzil e como se desmontava o ferrolho. Muitos dos milicianos jamais haviam tomado uma arma nas mãos antes, e pouquíssimos, a meu ver, sabiam para que serviam as alças de mira. Foram distribuídos cartuchos, cinqüenta a cada um, e depois disso entramos em forma, mochilas nas costas e partindo para a linha de frente, que ficava a uns cinco quilômetros de distância dali.

A centúria, oitenta homens e diversos cachorros, foi tocando vagarosamente pela estrada. Cada coluna miliciana tinha pelo menos um cachorro como mascote, e o animalão de péssimo aspecto que marchava conosco apresentava a sigla P.O.U.M. em letras grandes, marcadas a fogo em seu pêlo, e seguia de modo esquivo, como se tivesse consciência de que havia qualquer anormalidade em sua aparência. A testa da coluna, ao lado da bandeira vermelha, ia Georges Kopp, o robusto comandante belga, montado num cavalo preto, e pouco adiante um jovem pertencente à cavalaria miliciana, que parecia um bando de salteadores, fazia piruetas de um para outro lado, subindo em carreira todos os lances mais altos do caminho e fazendo poses pitorescas. Os magníficos animais da cavalaria espanhola foram capturados em grandes números durante a revolução, e entregues à milícia que, como era natural, estava tratando de utilizá-los até à morte.

A estrada serpenteava entre terrenos agrestes e amarelados, intocados desde a colheita do ano anterior. A nossa frente encontrava-se a sierra baixa que se estende entre Alcubierre e Saragoça. Estávamos chegando à linha de frente e às suas bombas, metralhadoras e lama. No íntimo, eu tinha medo. Sabia que a linha estava calma naquele instante, mas, diversamente da maioria dos companheiros, tinha idade bastante para lembrar-me da Grande Guerra, embora não fosse velho a ponto de ter lutado nela. Para mim a guerra significava projéteis ensurdecedores, fragmentos de aço a espalhar-se para todos os lados. Acima de tudo, representava lama, piolhos, fome e frio. É curioso, mas eu receava muito mais o frio do que o inimigo. O pensamento estivera a atormentar-me desde Barcelona, e impedira-me o sono diversas vezes, fazendo-me imaginar o frio nas trincheiras, as vigílias nas madrugadas geladas, as longas horas de sentinela com um fuzil regelado, a lama desgraçadamente fria que entraria pelo cano das botas. Reconheço, também, que sentia certo tipo de horror ao olhar aqueles em meio aos quais estava marchando. Não é possível fazer idéia do aspecto de ralé que apresentávamos. Seguíamos à frente com muito menos coesão do que um rebanho de carneiros e, antes de havermos percorrido três quilômetros, a retaguarda da coluna já se perdera de vista. E metade dos chamados homens ali presentes era formada de meninos, mas meninos mesmo, com dezesseis anos de idade quando muito. Ainda assim, mostravam-se todos felizes e animados diante da possibilidade de chegarem finalmente à frente de luta. Ao nos aproximarmos da linha, os meninos em torno da bandeira vermelha começaram a dar gritos de "Visca P.O.U.M.!", e "Fascistas maricones!" e assim por diante, gritos que pretendiam ter um som guerreiro e ameaçador mas que, vindos daquelas gargantas infantis, pareciam tão indefesos quanto miados de gatinhos. Era horrível que os defensores da República fossem aquele bando de meninos maltrapilhos, armados de fuzis gastos que não sabiam utilizar. Lembro-me que fiquei imaginando o que aconteceria se um aeroplano fascista passasse por ali - se o tripulante sequer se daria ao trabalho de mergulhar e brindar-nos com uma rajada de sua metralhadora. Até mesmo do ar ele certamente veria que não éramos soldados de verdade.

Chegados à sierra, entramos à direita e subimos um estreito caminho de mulas que fazia a volta pela encosta da montanha. Naquela parte da Espanha os morros são uma formação bizarra, em formato de ferraduras com topos achatados e lados muito íngremes que vão dar a barrancos imensos. Nas encostas mais altas nada cresce, a não ser arbustos, esmirradas urzes, com as pedras calcarias brancas aparecendo por toda a parte como um esqueleto. A linha de frente, naquele lugar, não era uma linha contínua de trincheiras, o que seria impossível em terreno tão acidentado, mas apenas uma cadeia de postos fortificados, sempre conhecidos como "posições", encarapitados no alto de cada elevação. Da distância podíamos ver nossa "posição" no centro da ferradura: era uma barricada irregular de sacos de areia, uma bandeira vermelha a tremular, a fumaça de fogueiras feitas ao ar livre - Um pouco mais perto, e dava para sentir uma catinga pavorosamente adocicada, que esteve residindo em minhas ventas por semanas a fio. Na fenda existente logo atrás da posição fora despejado todo o lixo de meses seguidos, e lá estava um amontoado de pedaços de pão, excrementos e latas enferrujadas.

A companhia que estávamos substituindo preparava seus pertences. Estivera três meses na linha de frente, e seus uniformes apresentavam bolos endurecidos de lama, as botas estavam aos pedaços, a maioria dos homens barbada. O capitão que comandava a posição, chamado Levinski mas conhecido de todos como Benjamin e judeu polonês de nascimento mas falando francês como se fosse sua língua materna, saiu do abrigo e veio nos receber. Era um rapaz de baixa estatura e seus vinte e cinco anos de idade, com cabelo negro e duro e um rosto pálido e animado que, a essa altura da guerra, estava sempre muito sujo. Algumas balas perdidas estalavam por cima de nós. A posição era um cercado semicircular com perto de cinqüenta metros de largura, com um parapeito parcialmente formado de sacos de areia e montes de pedras calcárias. Havia trinta ou quarenta buracos pelo chão, como buracos de rato. Williams, seu cunhado espanhol e eu tratamos logo de apoderar-nos do buraco desocupado mais próximo, que nos pareceu habitável. Em alguma parte à nossa frente disparavam um fuzil de vez em quando, o que causava curiosos ecos nas encostas de pedras. Mal havíamos descarregado nossas mochilas e saíamos do abrigo quando se ouviu outro disparo e um dos meninos de nossa companhia voltou correndo do parapeito, com o rosto ensangüentado. Disparara seu fuzil e conseguira fazer explodir o ferrolho. Seu couro cabeludo estava esfrangalhado pelos fragmentos do cartucho explodido e aquela era nossa primeira baixa que, de modo característico, fora auto-infligida.

A tarde fizemos nossa primeira ronda de guarda e Benjamin nos mostrou a posição. Diante do parapeito estendia-se um sistema de trincheiras estreitas escavadas na rocha, com seteiras extremamente primitivas, feitas com pilhas de pedras de calcário. Havia doze postos de vigia, situados em pontos diversos na trincheira e por trás do parapeito interno. A frente da trincheira encontrava-se o arame farpado, e depois disso a encosta do morro descia até uma ravina aparentemente sem fundo. Do outro lado havia morros pelados, em alguns lugares apenas penhascos, tudo isso acinzentado e em hibernação, sem mostrar em ponto algum o menor sinal de vida, nem mesmo um passarinho. Olhei cuidadosamente por uma seteira, procurando a trincheira fascista.

- Onde está o inimigo?

Benjamín sacudiu a mão de modo expansivo e respondeu em inglês, em seu inglês horribilíssimo:

- Para lá.

- Mas onde?

Em conformidade com minhas noções sobre guerra de trincheiras, os fascistas estariam a uns cinqüenta ou cem metros de distância. Mas nada conseguia ver, e parecia que suas trincheiras estavam muito bem escondidas. Foi então, com uma onda de desalento, que vi para onde Benjamin apontava: no outro morro à frente, além da ravina, a setecentos metros de distância pelo menos, via-se o esboço minúsculo de um parapeito e uma bandeira vermelha e amarela - a posição fascista. Fiquei tremendamente desapontado. Não estávamos perto deles coisa alguma! Naquela distância toda, nossos fuzis eram inteiramente inúteis. Mas nesse momento ouvimos um grito de animação. Dois fascistas, figurinhas cinzentas na distância, estavam escalando a encosta do morro à nossa frente. Benjamín passou a mão no fuzil do homem mais próximo, fez mira e puxou o gatilho. Click! O cartucho não detonou, e eu encarei isso como presságio muito mau.

As novas sentinelas mal acabavam de tomar seus postos na trincheira e deram inicio a uma fuzilaria terrível, disparando sem ter nada em mira. Eu podia ver os fascistas, pequeninos como formigas, esquivando-se de um para outro lado em seu parapeito, e às vezes um pontinho negro que era a cabeça de um deles parava por instante, expondo-se com toda a impudência. Tornava-se óbvio que de nada valia disparar as armas, mas logo a sentinela à minha esquerda, deixando seu posto à moda típica espanhola, veio ter comigo e começou a instar para que eu fizesse fogo. Tentei explicar que àquela distância, e com fuzis daquele jeito, não se conseguiria atingir um homem senão por acidente. Mas o companheiro era um simples menino, e continuou a fazer gestos com sua arma em direção aos pontinhos distantes, rindo como um cachorro que espera atirarmos uma pedra. Finalmente acertei a alça de mira para setecentos e mandei fogo. O pontinho desapareceu. Espero que tenha atingido lugar bastante próximo para fazer o homem pular. Era a primeira vez em minha vida que eu disparara uma arma contra um ser humano.

Agora que vira a linha de frente, sentia-me profundamente desgostoso. E chamavam aquilo de guerra! E mal estávamos em contato com o inimigo! Não fiz qualquer tentativa de abaixar a cabeça além do nível da trincheira. Pouco depois, no entanto, uma bala passava por minha orelha com um ruído perverso e batia no anteparo da trincheira, atrás de mim. Céus! Eu me abaixei. Por toda a vida eu jurara a mim mesmo que não me abaixaria na primeira vez em que uma bala passasse por cima, mas o movimento parece ser instintivo, e quase todos o fazem pelo menos uma vez.

3

Na guerra de trincheiras existem cinco coisas importantes: lenha, comida, fumo, velas e o inimigo. No inverno que passamos frente de Saragoça elas se mostraram importantes pela ordem enunciada, ficando o inimigo em quinto lugar e por muito favor. A não ser à noite, quando era sempre concebível um ataque de surpresa, ninguém se incomodava com o inimigo. Eram simplesmente insetos escuros e distantes que víamos, de vez em quando, a pular de um para outro lado. A preocupação verdadeira de ambos os exércitos estava em fugir ao frio.

Ainda que de passagem, devo dizer que por todo o tempo de minha permanência na Espanha vi pouquíssima luta. Estive na frente de Aragón de janeiro a maio, e entre janeiro e a parte final de março pouca coisa ou nada aconteceu ali, a não ser em Teruel. Em março travou-se luta cerrada ao redor de Huesca mas eu, pessoalmente, tive pouca participação nela. Mais tarde, em junho, ocorreu o ataque desastroso a Huesca, no qual diversos milhares de homens foram mortos num só dia, mas eu fora ferido e posto fora de combate antes disso acontecer. As coisas em que normalmente se pensa como os horrores da guerra raras vezes aconteceram comigo. Nenhum aeroplano deixou cair uma bomba em qualquer parte próxima de mim, e não acredito que alguma granada tenha explodido a menos de cinqüenta metros de distância, e só uma vez estive em luta corpo-a-corpo (e posso assegurar que uma vez já é demais). Está claro que muitas vezes estive sob forte fogo de metralhadora, mas em geral eram disparos feitos de longe. Até mesmo em Huesca estava-se razoavelmente a salvo, desde que tomadas algumas precauções.

Ali, nos morros ao redor de Saragoça, havia apenas a mistura do tédio e desconforto na guerra estacionária. A vida. transcorria tão destituída de acontecimentos quanto a de um caixeiro na cidade, e demonstrava regularidade quase idêntica. Sentinela, patrulhas, cavar o chão; cavoucar, patrulhas, sentinela. No topo de cada morro, fascistas ou legalistas, um punhado de homens andrajosos e sujos a tiritar de frio em torno da bandeira, procurando aquecer-se. E por toda a noite e o dia aquelas balas malucas e sem sentido, percorrendo trajetórias nos vales vazios e atingindo um corpo humano somente por probabilidade muito remota.

Muitas vezes lancei o olhar ao redor, examinando aquela paisagem de inverno e pensando na futilidade de tudo aquilo. Que guerra mais sem decisão! Em época anterior, por volta de outubro, houvera lutas selvagens pela posse daqueles morros e depois, por falta de homens e armas, principalmente artilharia, que tornavam impossível qualquer operação em larga escala, cada exército cavara para si um sistema de abrigos e se estabelecera nos topos de morros conquistados. A nossa direita encontrava-se pequeno posto adiantado, também do P .0. U. M., e no esporão à nossa esquerda, em plano mais baixo, uma posição do P .S . U . C. fazia frente a um esporão mais alto com diversos pontinhos fascistas em seu cimo. A chamada linha de frente ziguezagueava de um para outro lado, numa conformação que seria de todo ininteligível, não houvesse cada posição hasteado sua bandeira. As bandeiras do P.O.U.M. e P.S.U.C. eram vermelhas, as dos anarquistas rubro-negras. Via de regra os fascistas hasteavam a bandeira monarquista (vermelho, amarelo e vermelho), mas de vez em quando exibiam a bandeira da República (vermelho, amarelo e púrpura). O cenário era estupendo, para quem pudesse esquecer que em cada cimo de morro havia soldados e se achava, portanto, semeado com latas vazias e emplastrado com bosta. A nossa direita a sierra tomava o rumo sul-leste e abria caminho para o vale amplo e cheio de veias que se estendia até Huesca. Em meio àquela planície alguns cubos pequeninos estavam como dados atirados à mesa: era a cidade de Robres, que se achava em poder dos legalistas. Muitas vezes, de manhã, o vale se encontrava oculto por ondas de nuvens, das quais emergiam morros achatados e azuis, dando à paisagem grande semelhança a um negativo fotográfico. Além de Huesca viam-se mais morros da mesma formação que o nosso, com faixas de neve que modificavam-se a cada dia. Mais além viam-se os picos monstruosos dos Pirineus, onde a neve jamais se derrete, e que pareciam flutuar em cima de coisa nenhuma. Até mesmo lá embaixo na planície tudo parecia morto e nu. Os morros à nossa frente eram cinzentos e enrugados como a pele de elefantes e o céu estava quase sempre desprovido de pássaros. Não acredito conhecer outro país onde seja menor o número de aves no céu. As únicas que pude ver em qualquer ocasião eram um tipo de pega, e os bandos de perdizes que assustavam a gente de noite, com seu ruído repentino e, rarissimas vezes, os vôos de águias que adejavam lentamente lá em cima, sendo em geral acompanhadas pelos disparos de fuzis, aos quais não se dignavam prestar qualquer atenção.

A noite e com tempo enevoado eram mandadas patrulhas ao vale entre nós e os fascistas. Essa missão não desfrutava grande simpatia, pois fazia frio demasiado e era facílimo perder-se o caminho, e logo verifiquei que podia obter folga para sair em patrulha tantas vezes quantas quisesse. Naquelas ravinas imensas e de traçado irregular não havia trilhas ou rastos de qualquer tipo, e só se podia seguir caminho fazendo jornadas sucessivas e anotando os pontos observáveis de cada vez. Em linha reta, o posto fascista mais próximo estava a setecentos metros do nosso, mas essa distância estendia-se por 2.400 metros pela única passagem praticável. Era bastante divertido andar pelos vales escuros, com as balas perdidas passando muito acima da cabeça, como um escocês de saiote a assoviar. Melhor ainda do que à noite era fazê-lo durante o nevoeiro espesso, que muitas vezes durava todo o dia e costumava ficar preso em volta dos topos de morro, deixando os vales bem claros. Quando se estava nas proximidades das linhas fascistas, era preciso andar em passo de cágado, sendo bem difícil mover-se em silêncio naquelas encostas, entre os arbustos quebradiços e pedras que faziam ruído se pisadas. Foi apenas na terceira ou quarta tentativa que consegui achar o caminho para as linhas fascistas. O nevoeiro estava bem denso, e subi até ao arame farpado para escutar. Dava para ouvir os fascistas conversando e cantando lá dentro. Depois disso, descobri com alarme que diversos deles vinham descendo o morro em minha direção. Encolhi-me atrás de um arbusto que repentinamente parecera tornar-se pequeno demais, e procurei engatilhar o fuzil sem barulho. Mas eles tomaram outro rumo e não chegaram a um ponto do qual pudessem me descobrir. Por trás do arbusto onde me escondera, encontrei diversos remanescentes da luta anterior - uma pilha de cartuchos vazios, um boné de couro furado por bala e uma bandeira vermelha, que evidentemente era das nossas. Levei-a de volta à posição, onde foi sem-cerimoniosamente transformada em trapos para limpar as coisas.

Eu fora promovido a cabo, assim que chegamos à linha de frente, e estava no comando de uma guarda de doze homens. Não se tratava de sinecura, principalmente no início. A centúria era um agrupamento sem treinamento, composto principalmente de adolescentes. Aqui e ali, na milícia, achavam-se meninos de onze ou doze anos de idade, em geral refugiados do território fascista que se alistaram como milicianos por ser o meio mais fácil de sobreviver. Via de regra eram empregados no trabalho mais leve da retaguarda, mas às vezes conseguiam chegar à linha de frente, onde constituíam um perigo para todos. Lembro-me de um jovem animalzinho que atirou uma granada de mão à fogueira do abrigo "só para divertir-se". Em Monte Focero não creio que houvesse qualquer elemento com menos de quinze anos de idade, mas a idade média deve ter orçado bem abaixo dos vinte anos. Os rapazes dessa idade jamais deveriam ser mandados à linha de frente, pois não conseguem agüentar a falta de sono que constitui traço inseparável da guerra de trincheiras. De inicio foi quase impossível manter nossa posição com guarda adequada à noite. Os meninos de minha seção só podiam ser tirados do sono quando os puxávamos para fora do abrigo pelos pés, e assim que lhes voltávamos as costas eles largavam os postos e regressavam ao abrigo, e conseguiam até mesmo encostar-se na parede da trincheira e ferrar no sono, a despeito do frio horrível. Felizmente o inimigo não era gente das mais empreendedoras, e houve noites nas quais acredito que nossa posição poderia ter sido tomada por vinte escoteiros armados com espingardas de ar comprimido, ou vinte bandeirantes armadas com raquetes.

Naquela altura, e por muito tempo depois disso, as milícias catalãs encontravam-se ainda em base muito parecida àquela em que estiveram no início da guerra. Nos primeiros dias da revolta de Franco as milícias foram apressadamente formadas pelos diversos sindicatos e partidos políticos, e cada qual era, em sua essência, uma organização política, devendo obediência tanto a seu partido quanto ao Governo central. Quando o Exército Popular, que era um exército "não-político" organizado em linhas mais ou menos comuns, se formou ao início de 1937, as milícias partidárias ficaram teoricamente incorporadas a ele. Mas por muito tempo as únicas transformações que tiveram lugar ocorreram apenas no papel, e os soldados do novo Exército Popular não chegaram à frente de Aragón senão em junho, e até então o sistema de milícias continuou inalterado. O ponto essencial do sistema era a igualdade social entre oficiais e soldados. Todos, de general a soldado raso, recebiam o mesmo soldo, comiam a mesma comida, usavam as mesmas roupas e misturavam-se em pé de absoluta igualdade. Quem quisesse dar um tapa nas costas do general comandante da divisão e pedir-lhe um cigarro podia fazê-lo, e ninguém achava isso fora do comum. Em teoria, pelo menos, cada milícia era uma democracia e não uma hierarquia. Entendia-se que as ordens eram para ser obedecidas, mas entendia-se também que quando se dava uma ordem, dava-se como um camarada a outro, e não como superior ao inferior. Havia oficiais e graduados, mas não a hierarquia militar no sentido comum, nem títulos, distintivos, bater de calcanhares e continências. Procuraram criar, dentro das milícias, um tipo de modelo operante e temporário da sociedade sem classes. Está claro que não existia uma igualdade perfeita, mas uma aproximação a isso, a maior aproximação que eu já vira até então, ou pensara ser possível em tempo de guerra.

Estou pronto a reconhecer, entretanto, que à primeira vista o estado de coisas na linha de frente causou-me horror. Com todos os demônios, como seria possível ganhar a guerra com um exército daquele tipo? Era o que todos indagavam na época, e embora fosse verdade era também pouco razoável dizê-lo, pois nas circunstâncias de então as milícias não poderiam ter sido muito melhores do que eram. Um moderno exército mecanizado não brota do chão, e se o Governo houvesse aguardado até dispor de tropas treinadas, jamais seria oferecida qualquer resistência a Franco. Mais tarde tornava-se moda denegrir as milícias e fazer de conta, portanto, que as falhas devidas à falta de treinamento e armas eram o resultado do sistema igualitário. Na verdade, uma nova conscrição de milicianos não passava de uma malta indisciplinada, não porque os oficiais chamassem aos soldados "carriarada", mas porque soldados bisonhos são sempre uma malta de indisciplinados. Na prática, o tipo "revolucionário" democrático de disciplina merece mais fé do que seria de esperar-se. Num exército de trabalhadores a disciplina é, teoricamente, voluntária. Ela se baseia na fidelidade à classe, enquanto que a disciplina de um exército burguês de conscritos baseia-se, em instância suprema, no medo. (O Exército Popular que substituiu as milícias situava-se em algum ponto intermediário entre os dois tipos.) Nas milícias as afrontas e abusos que têm lugar num exército comum jamais seriam toleradas um só instante. Existiam as punições militares normais, mas somente eram invocadas por transgressões muito graves. Quando um homem se recusava a obedecer a uma ordem, não se promovia imediatamente seu castigo; fazia-se-lhe primeiramente um apelo em nome da camaradagem. As pessoas cínicas e que não tenham qualquer experiência com o trato de homens dirão logo que isso jamais daria resultado, mas a bem da verdade dá resultado, sim, a longo prazo. A disciplina das piores turmas de milicianos melhorou visivelmente ao passar do tempo. Em janeiro, a tarefa de manter uma dúzia de recrutas bisonhos em linha quase fez meu cabelo encanecer. Em maio, por algum tempo, fui o tenente-interino comandando perto de trinta homens, espanhóis e ingleses. Todos estivéramos sob fogo meses seguidos, e jamais encontrei a menor dificuldade em que obedecessem às minhas ordens, ou em obter homens como voluntários para uma missão perigosa. A disciplina "revolucionária" depende da consciência política, de uma compreensão do motivo pelo qual as ordens devem ser obedecidas. Leva tempo para isso ser apreendido, mas também leva tempo a transformação de um homem num autômato, no quartel militar comum. Os jornalistas que zombavam do sistema de milícias raramente se lembravam de que elas tiveram de agüentar a linha de frente enquanto o Exército Popular era treinado na retaguarda, e o fato de que as milícias tenham continuado na luta constitui titulo honroso ao vigor da disciplina "revolucionária", pois até arredores de junho de 1937 nada havia para obrigá-las a ficar ali, a não ser sua fidelidade à classe. Os desertores individuais podiam ser fuzilados - e o eram, de vez em quando - mas se mil homens resolvessem abandonar a linha de frente ao mesmo tempo não haveria força que os detivesse. Um exército de conscritos, colocado nas mesmas circunstâncias - sendo retirada sua polícia de batalha - ter-se-ia derretido. Ainda assim as milícias sustentaram a linha de frente, embora Deus saiba que foram pouquíssimas as suas vitórias, e até as deserções individuais não se mostraram comuns. Em quatro dos cinco meses que passei na milícia do P.O.U.M. só ouvi falar em quatro homens que desertaram, e dois deles eram quase certamente espiões que se alistaram a fim de obter informações. De início, a bagunça aparente, a falta geral de treinamento e o fato de que muitas vezes precisava discutir cinco minutos antes de ver uma ordem obedecida, causavam-me espanto e fúria. Eu trazia idéias do Exército Britânico, e certamente as milícias espanholas eram coisa muito diferente daquele exército. Mas levando em conta as circunstâncias, elas eram formadas por soldados muito melhores do que se poderia esperar.

Enquanto isso, lenha - sempre a lenha! Por todo aquele período provavelmente não existe qualquer lançamento em meu diário que não faça referência à lenha, ou melhor, à falta dela. Estávamos entre seiscentos e novecentos metros de altitude, em meio ao inverno, e o frio era indescritível. A temperatura não se mostrava excepcionalmente baixa, em muitas noites nem sequer nos regelávamos, e muitas vezes o sol de inverno brilhava por toda uma hora no meio do dia, mas ainda quando não fazia frio posso garantir que parecia fazer. As vezes vinham ventos uivantes que nos arrancavam o quepe da cabeça e embaralhavam o cabelo em todas as direções, de outras eram nevoeiros que se derramavam na trincheira como se fossem um líquido que penetrava até aos 05505 da gente. Chovia com freqüência, e a precipitação de quinze minutos bastava para tornar as coisas intoleráveis. A camada fina de terra sobre o calcário transformava-se rapidamente numa graxa escorregadia, e como sempre se estava andando numa encosta, era impossível manter o equilíbrio. Nas noites escuras não foi raro eu cair meia dúzia de vezes enquanto andava vinte metros e isso era perigoso, pois significava que o ferrolho do fuzil ficava entupido de lama. Por dias seguidos as roupas, botas, cobertores e fuzis mantinham-se mais ou menos cobertos de lama. Eu trouxera comigo tantas peças pesadas de roupa quantas pudera, mas muitos dos homens estavam pessimamente protegidos. Para o total da guarnição, uns cem homens, havia apenas doze sobretudos, que tinham de ser passados de uma sentinela a outra, e a maioria possuía apenas um cobertor. Em certa noite frígida fiz uma lista, em meu diário, relacionando as peças de roupa que trajava no momento. A anotação serve para mostrar que quantidade de roupas o corpo humano pode envergar ao mesmo tempo. Estava com camiseta e calças grossas, uma camisa de flanela, dois suéteres, jaqueta de lã, jaqueta de couro de porco, culotes de belbute, polainas, meias grossas, botinas, um forte capote impermeável, cachenê, luvas de couro forrado e um gorro de lã. Ainda assim, tremia como geléia. Mas devo reconhecer que tenho sensibilidade incomum ao frio.

A lenha era a única coisa de verdadeira importância. A questão, nesse particular, é que praticamente não existia lenha alguma. Aquela nossa montanha miserável nem sequer apresentava muita vegetação, quando em seu melhor estado possível, e por meses a fio fora varrida por milicianos enregelados, e o resultado era que tudo que fosse mais grosso do que o dedo mínimo já fora queimado. Quando não estávamos comendo, dormindo, em guarda ou descanso, estávamos no vale por trás da posição, procurando combustível. Todas as minhas recordações dessa época são as de subir e descer as encostas quase perpendiculares, por cima das pedras calcárias que estraçalhavam as botas, arrecadando com ansiedade pequenos gravetos. Três homens procurando lenha por duas horas conseguiam juntar combustível suficiente para manter a fogueira do abrigo acesa por uma hora. A ansiedade de nossa busca de lenha transformou-nos, a todos, em botânicos. Classificávamos de acordo com suas propriedades de queimar todas as plantas que cresciam na encosta do morro. as diversas urzes e gramas que serviam para acender um fogo mas queimavam em poucos minutos, o alecrim bravo e o tojo pequenino que queimavam quando o fogo já se acendera bem, o carvalho retorcido e menor do que um arbusto de groselha, que se mostrava praticamente incomburente. Havia um tipo de caniço seco muito bom para iniciar a fogueira, mas só crescia no alto do morro à esquerda da posição. e era preciso enfrentar as balas do inimigo para apanhá-lo. Se os metralhadores fascistas nos vissem, dedicavam todo um tambor de munição ao intimorato. Em geral atiravam muito para cima e as balas cantavam no alto como pássaros. mas às vezes pipocavam e arrancavam lascas do calcário em distância pequena demais, com o que era preciso o cidadão jogar-se de cara no chão. Mas continuávamos recolhendo caniço assim mesmo, pois nada mais importava tanto quanto a lenha.

Tirante o frio, os outros desconfortos pareciam coisa de somenos. Está claro que estávamos todos em estado de sujeira permanente. Nossa água, como os alimentos, vinha em lombo de mula desde Alcubierre, e a parte de cada um dava perto de um litro por dia. Era um líquido repugnante, pouco mais transparente do que o leite. Em teoria, destinava-se exclusivamente a ser bebido, mas sempre consegui furtar uma vasilha cheia para poder lavar-me de manhã. Eu costumava lavar-me num dia e barbear-me no outro, pois nunca houve água suficiente para fazer ambas as coisas. Nossa posição exalava um fedor abominável, e fora do pequeno espaço da barricada havia fezes por toda a parte. Alguns dos milicianos tinham por hábito defecar na trincheira, procedimento dos mais repelentes quando era preciso andar por ali na escuridão, dando voltas para não enfiar o pé na coisa. Mas a sujeira nunca me preocupou. A bem da verdade, a sujidade é coisa pela qual as pessoas costumam fazer barulho demasiado. É surpreendente a rapidez com que a gente se habitua a viver sem um lenço, e a comer em vasilha de estanho onde também se faz a higiene. Tampouco era difícil dormir com as roupas no corpo, depois de um ou dois dias. Impossível, naturalmente, era tirar as roupas e em especial as botinas à noite, pois precisava-se estar pronto para agir instantaneamente no caso de que fôssemos atacados. Em oitenta noites passadas ali, tirei a roupa apenas três vezes, embora conseguisse de quando em vez despi-las durante o dia. Fazia frio demasiado para que os piolhos pudessem fazer seu aparecimento, mas não faltavam ratos e camundongos. Há quem diga que não se encontram ratos e camundongos juntos no mesmo lugar, mas isso é tolice, quando existe comida suficiente para ambas as espécies roedoras.

Nos demais aspectos, não estávamos mal. A comida era boa e havia vinho suficiente. Os cigarros continuavam sendo distribuídos na proporção de um maço por dia, fósforos eram dados dia-sim dia-não, e distribuíam até mesmo velas. Eram velas muito finas, como as utilizadas em bolos de Natal, acreditando-se que tinham sido tiradas das igrejas. Todo abrigo recebia diariamente três polegadas de vela, que ficavam acesas perto de vinte minutos. Naquela época ainda era possível comprar velas, e eu trouxera alguns quilogramas comigo. Mais tarde a escassez de fósforos e velas tornou a vida uma coisa horrível. A gente não percebe a importância dessas coisas senão quando elas faltam. Num alarme noturno, por exemplo, quando todos no abrigo estão procurando freneticamente seu fuzil e pisando na cara dos outros, o poder acender uma luz pode representar a diferença entre a vida e a morte. Cada miliciano possuía uma binga e alguns metros de pavio amarelo, e depois de seu fuzil esse artigo constituía sua posse mais importante. As bingas apresentam a grande vantagem de poderem ser acendidas no vento, mas formam apenas uma brasa, de modo que não serviam para acender um fogo. Quando a escassez de fósforos se achava em sua pior fase, nosso único meio de produzir chama era tirar o chumbo de um cartucho e fazer a cordite disparar, usando para isso a binga.

Era uma vida extraordinária a que vivíamos, um modo extraordinário de estar na guerra, se pudermos chamar aquilo de guerra. Toda a milícia reclamava contra a inatividade e pedia sempre uma explicação do motivo pelo qual não nos davam licença para atacar o inimigo. Mas já se tornara inteiramente óbvio que não haveria qualquer batalha por muito tempo ainda, a menos que o inimigo a empreendesse. Georges Kopp, em suas visitas periódicas de inspeção, mostrou-se bastante franco conosco.

- Isto não é uma guerra - costumava dizer. - uma ópera cômica, com alguém morrendo de vez em quando.

Na verdade a estagnação na frente de Aragón tinha causas políticas das quais eu nada sabia na ocasião, mas as dificuldades de natureza puramente militar - bem à parte da falta de reservas de homens - estavam à vista de todos.

Para começar, havia a natureza do terreno. A linha de frente, tanto a nossa quanto a dos fascistas, passava por posições dotadas de imensa força natural, que via de regra só podiam ser atacadas por um lado. Desde que algumas trincheiras fossem cavadas, lugares como aqueles não poderiam ser tomados pela infantaria, a não ser com esmagadora superioridade numérica. Em nossa própria posição, ou na maioria das que estavam mais próximas, uma dúzia de homens com duas metralhadoras poderia manter à distância todo um batalhão. Encarapitados no topo dos morros como estávamos devíamos ser alvos formidáveis para a artilharia, mas não existia artilharia em cena. Às vezes eu examinava a paisagem e ficava ansiando - e com quanto fervor! - por algumas baterias. Podia-se destruir as posições inimigas uma por uma com tanta facilidade quanto o quebrar nozes com um martelo. Mas no nosso lado simplesmente não havia canhões. Os fascistas, de vez em quando, conseguiam trazer um canhão ou dois de Saragoça e disparar algumas granadas, tão poucas que jamais acertavam o alcance dos disparos, e iam cair inofensivamente nas ravinas vazias. Contra o fogo de metralhadoras e sem se dispor de artilharia, só restam três coisas a fazer: cavar um abrigo no chão, em distância suficiente - uns quatrocentos metros -, atacar pelo campo aberto e ser massacrado, ou fazer ataques noturnos de pequena escala, que não modificam a situação geral. As alternativas a isso, de um ponto de vista prático, são a estagnação ou o suicídio.

Prevalecia, além disso, uma falta completa de material bélico de todos os tipos. E preciso fazer esforço para compreender como as milícias se encontravam mal armadas naquela altura. Qualquer centro de preparação de oficiais, funcionando em anexo a uma escola pública na Inglaterra, mostra-se muito mais moderno, como exército, do que éramos na milícia. A má qualidade de nosso armamento chegava a ponto tão espantoso que merece registro com pormenores.

Para aquele setor da frente toda nossa artilharia consistia de quatro morteiros de trincheira com quinze petardos por peça. Está claro que eram artigos preciosos demais para disparar, e os morteiros ficavam em Alcubierre. Havia metralhadoras na proporção de uma por cinqüenta homens, armas de modelo antigo mas bastante precisas até 300 ou 400 metros. Além disso tínhamos apenas os fuzis, e a maioria dos mesmos não passava de ferro velho. Eram de três tipos. O primeiro, um fuzil Mauser comprido, raramente com menos de vinte anos de fabricação e as alças de mira tão inúteis quanto um velocímetro quebrado,' na maioria deles, a alma do tubo estava corroída por completo, mas ainda assim um fuzil em cada dez não era mau. Vinha em seguida o Mauser curto, ou mousqueton, que na verdade era arma de cavalaria. Desfrutava de mais simpatia do que os outros, por ser mais leve para carregar e constituindo embaraço ou estorvo menor numa trincheira, e também porque eram comparativamente novos e pareciam eficientes. Na verdade, mostravam-se quase inúteis. Eram feitos de peças remontadas, nenhum dos ferrolhos pertencia à arma onde estava, e podia-se contar que em quatro deles três engasgavam depois de cinco disparos. Havia também algumas carabinas Winchester', boas para atirar, porém, doidamente imprecisas, e como seus cartuchos não tinham pentes, só podiam ser disparadas na base de um tiro de cada vez. A munição era coisa tão rara que cada homem chegado à linha de frente recebia apenas cinqüenta balas, em sua maioria de péssima qualidade. Os cartuchos feitos na Espanha eram apanhados vazios e reenchidos, e conseguiam fazer engasgar até os melhores fuzis. Já os cartuchos de fabricação mexicana eram melhores, e por isso ficavam reservados para as metralhadoras. A melhor de todas era a munição alemã, mas só se conseguia por meio dos prisioneiros e desertores, sendo pequena sua quantidade. Sempre guardei um pente de munição alemã ou mexicana no bolso para poder usá-la numa emergência, mas na prática, quando essa emergência aparecia, eu raramente disparava meu fuzil, apavorado com a idéia de que aquela porcaria engasgasse e ansioso demais para reservar ao menos uma bala que não falhasse.

Não tínhamos capacetes de metal ou baionetas, pouquíssimos eram os revólveres ou pistolas, e existia apenas uma bomba para cada grupo de quatro ou cinco homens. A bomba utilizada naquela época era um objeto assustador, conhecido por "bomba F.A.I.", produzida pelos anarquistas nos primeiros dias da guerra. Funcionava conforme o princípio pelo qual funciona uma bomba Milis, mas a trava era segura não por pino metálico, e sim - por um pedaço de fita. Rompia-se a fita e quem o fizesse tratava logo de arremessar o petardo o mais depressa possível. A respeito desses petardos dizia-se então que eles tinham o dom da "imparcialidade", pois matavam não só o homem em quem eram atirados, mas também aquele que os lançava. Existiam diversos outros tipos, ainda mais primitivos porém provavelmente menos perigosos - para o lançador, naturalmente. Não foi senão no final do mês de março que vi uma bomba que valia a pena arremessar.

Ao lado desses problemas com o armamento, havia uma escassez de todos os artigos menores que são necessários numa guerra. Não dispúnhamos de mapas, por exemplo. A Espanha jamais fora inteiramente cartografada, e os únicos mapas detalhados existentes para aquela região eram os velhos mapas militares, quase todos em poder dos fascistas. Não tínhamos telêmetros, telescópios, periscópios ou binóculos, exceto os particulares pertencentes a este ou aquele camarada, e tampouco havia foguetes ou sinais luminosos, alicates para cortar arame farpado, ferramentas de armeiro e pouquíssimo era o material para limpar as armas. Parece que os espanhóis jamais ouviram falar em pull-through (cordão com bucha para limpar o cano das armas, por dentro), e muitos ficaram olhando boquiabertos quando fabriquei um dispositivo desses. Quem quisesse limpar o fuzil levava-o ao sargento, possuidor de uma longa vareta de latão que estava sempre dobrada e, portanto, arranhava a alma do cano. Não existia sequer algum óleo para limpeza de armas, que eram engraxadas com azeite, quando havia algum. Em ocasiões diferentes, untei minha arma com vaselina, creme frio e até mesmo com gordura de porco. Além disso, não tínhamos lanternas ou lanternas elétricas - e naquela época acredito que não existisse coisa tal como uma lanterna elétrica em todo o nosso setor da linha de frente, e não se podia comprar uma senão em Barcelona, e assim mesmo com grande dificuldade.

Ao correr do tempo e enquanto os disparos desencontrados ecoavam pelos morros, comecei a cogitar com crescente ceticismo se alguma coisa viria trazer um pouquinho de vida, ou melhor, um pouquinho de morte, àquela guerra disparatada. Estávamos lutando contra a pneumonia, e não contra. homens. Quando as trincheiras se acham distanciadas uns quinhentos metros, ninguém é atingido senão por acidente. Está claro que havia baixas, mas a maioria das mesmas era auto-infligida. Se me lembro bem, os cinco primeiros homens que vi feridos na Espanha tinham-no sido por suas próprias armas, não intencionalmente, mas devido a acidentes ou falta de cuidado. Nossos fuzis estragados eram um autêntico perigo. Alguns apresentavam a característica idiota de disparar se a coronha fosse batida no chão, e vi um homem ter a mão atravessada por bala devido a isso. E na escuridão os recrutas novatos estavam sempre abrindo fogo um contra o outro. Certa noite, quando nem sequer o crepúsculo se formara, uma sentinela disparou contra mim de uma distância de vinte metros, e errou-me por um metro. Deus sabe quantas vezes o padrão de mira espanhol salvou minha vida. De outra feita eu saíra em patrulha no nevoeiro e prevenira cuidadosamente o comandante da guarda antes de partir. Mas ao voltar tropecei num arbusto, a sentinela assustada gritou que os fascistas estavam avançando, e tive o inefável prazer de ouvir o comandante da guarda ordenar a todos que abrissem fogo rápido em minha direção. Está claro que deitei-me ao chão e as balas passaram inofensivamente por cima. Nada consegue convencer um espanhol, ou pelo menos um espanhol jovem, de que as armas de fogo são coisas perigosas. Em outra ocasião, bem depois dessa, eu estava fotografando alguns metralhadores com sua peça, que tinham apontado diretamente para mim.

- Não disparem isso! - alertei em tom meio sério e meio patusco, enquanto acertava o foco da máquina fotográfica.

- Ora, não! Não vamos disparar!

No momento seguinte ouvi um estrondo assustador, e um jato de balas passou tão perto de meu rosto que fiquei com a face crivada de grãos de cordite. A coisa não fora intencionalmente feita, mas os metralhadores acharam imensa graça no caso. Poucos dias antes, no entanto, tinham visto um tropeiro ser acidentalmente baleado por um delegado político que estava brincando com uma pistola automática e que pusera cinco balas nos pulmões do tropeiro.

As senhas difíceis que o exército utilizava nessa época constituíam outra fonte de perigo, embora menor. Eram aquelas senhas duplas cansativas, nas quais uma palavra devia ser respondida por outra. Via de regra senha e contra-senha eram palavras de calibre elevado e revolucionário, tais como Cultura - progresso, ou Seremos - invencibles, e muitas vezes mostrava-se impossível fazer com que as sentinelas analfabetas recordassem tais expressões altissonantes. Certa noite, ainda me lembro, a senha era Cataluña e a contra-senha eroica, e um rapaz do campo, chamado Jaime Domenech, aproximou-se de mim com expressão perplexa e pediu explicações.

- Eroica... Que quer dizer eroica?

Disse-lhe que a palavra tinha o mesmo significado que valiente, e pouco depois disso ele tropeçava na trincheira, em meio à escuridão, e a sentinela bradava:

- Alto! Cataluña!

- Valiente! - berrou Jaime, crente que estava dizendo a coisa certa.

Bang!

Mas a sentinela errou o tiro. Naquela guerra todos erravam os outros, sempre que humanamente possível.

4

Já fazia perto de três semanas que eu estava na linha de frente, quando chegou a Alcubierre um contingente de vinte ou trinta homens, enviados da Inglaterra pela I. L. P., e a fim de juntar todos os ingleses naquela frente de luta Williams e eu fomos mandados para sua companhia. Nossa nova posição era em Monte Oscuro, alguns quilômetros para o oeste, e dali dava para ver a cidade de Saragoça.

A posição encontrava-se numa espécie de muro de calcário, com os abrigos feitos em horizontal no barranco, como ninhos de andorinha. Entravam pelo chão por distâncias prodigiosas, e lá dentro era tão escuro e baixo que nem sequer podíamos ficar de joelhos, quanto mais em pé. Nos picos de elevações à nossa esquerda havia outras duas posições do P .0. U . M., uma das quais constituía ponto de fascínio para todos os homens na linha, pois ali estavam três mulheres milicianas, encarregadas de preparar a comida. Não que essas mulheres fossem tão belas assim, mas tornou-se preciso declarar aquela posição como terreno proibido ao acesso dos demais homens das outras companhias. A meio quilômetro à nossa direita havia um posto do P. S. U. C., na virada da estrada de Alcubierre. Era exatamente ali que a estrada mudava de donos. A noite podíamos ver as luzes de nossos caminhões de abastecimento, que vinham de Alcubierre e, si multaneamente, os dos fascistas, vindos de Saragoça. Dava para ver a própria cidade, uma linha estreita de luzes, parecendo-se aos portalós de navio, a uns vinte quilômetros para o sudoeste. As tropas do Governo olhavam-na àquela distância desde agosto de 1936, e continuam a fazê-lo hoje.

Havia cerca de trinta homens em nossa posição, inclusive um espanhol (Ramón, cunhado de Williams), bem como uma dúzia de metralhadores espanhóis. Com exceção de uma ou duas pragas - pois é sabido que a guerra atrai a gentalha - os ingleses formavam uma turma excepcionalmente boa, tanto física quanto mentalmente. Talvez o melhor de toda essa turma fosse Bob Smillie - o neto do famoso dirigente dos mineiros - que mais tarde iria ter morte tão ruim e sem sentido em Valência. Muita coisa fica revelada a respeito do caráter espanhol, no fato de que ingleses e espanhóis sempre se davam bem juntos, a despeito das dificuldades causadas pela diferença de idiomas. Todos os espanhóis, conforme descobrimos, conheciam duas expressões em inglês, Uma era "O.K., baby", e a outra uma palavra utilizada pelas meretrizes de Barcelona em seus entendimentos com os marinheiros britânicos, e receio que os revisores não a deixassem imprimir aqui.

Também ali nada acontecia em toda a linha de frente. Tínhamos apenas o estampido irregular dos disparos e, muito raramente, o estrondo de um morteiro fascista que mandava todos correndo para a trincheira de cima para ver em que morro os petardos estavam explodindo. O inimigo achava-se um tanto mais próximo de nós naquela parte, a uns 300 ou 400 metros. Sua posição mais adiantada ficava exatamente em frente à nossa, com um ninho de metralhadora cujas seteiras constituíam uma tentação constante a que desperdiçássemos as balas. Raramente os fascistas se davam ao trabalho de disparar fuzis, mas mandavam de lá rajadas bem precisas sobre qualquer um que se expusesse. Ainda assim, passaram-se dez dias ou mais ate que tivéssemos nossa primeira baixa. Os soldados inimigos à nossa frente eram espanhóis. mas pelas informações prestadas por alguns desertores havia alguns graduados alemães em seu meio. Em alguma época anterior havia mouros ali - pobres coitados, como devem ter sofrido com o frio! - pois lá na terra de ninguém encontrava-se um mouro morto, que constituía uma das coisas a serem vistas na localidade - A dois ou três quilômetros para a esquerda, a linha deixava de ser continua e existia uma faixa de campo, mais baixa e densamente coberta de vegetação, que não pertencia aos fascistas nem a nós. Tanto nós quanto eles costumávamos fazer patrulhas por lá, durante o dia. Não deixava de ter sua graça. à escoteira, embora eu jamais visse uma patrulha fascista a distância menor do que diversas centenas de metros. Mediante muito rastejamento podia-se passar em parte pelas linhas fascistas e até mesmo ver a casa de fazenda onde estava içada a bandeira monarquista, e que servia de quartel-general local dos inimigos. De vez em quando sapecávamos-lhe uma saraivada de fuzis e tratávamos de procurar abrigo antes que as metralhadoras nos localizassem. Espero que tenhamos arrebentado algumas janelas, mas o edifício ficava a uns oitocentos metros de distância, e com nossas armas não podíamos ter certeza sequer de acertar uma casa tão longe.

Na maior parte os dias eram claros e frios, às vezes ensolarados por volta das doze horas, mas sempre frios. Aqui e ali, no terreno das encostas, achávamos as pontas verdes de açafrão ou íris a se estender. Era evidente a aproximação da primavera, mas em marcha bem lenta. As noites mostravam-se mais frias do que nunca, e ao sair da guarda, de madrugada, costumávamos juntar o que restara do fogo na cozinha a ficar de pé nas brasas quentes. Isso não podia ser pior para as botinas, mas era ótimo para os pés. Havia manhãs, todavia, em que a visão da alvorada entre os picos de montanhas chegava quase a compensar o fato de estar fora da cama naquelas horas doidas. Eu detesto montanhas, mesmo quando situadas em ponto de vista espetacular, mas às vezes a aurora raiando atrás dos picos à nossa retaguarda, as primeiras faixas estreitas de luz dourada, como espadas a cortar a treva, e depois disso a luz brilhante e os oceanos de nuvens carmesins a estender-se por distâncias inconcebíveis, valiam a pena observar, mesmo quando se estivera de pé a noite inteira, quando as pernas adormeciam do joelho para baixo e éramos assaltados pelo pensamento sombrio de que não se comeria coisa alguma senão dali a três horas. Vi o raiar da aurora mais vezes, naquela campanha, do que durante todo o resto de minha vida - ou durante a parte que, espero, ainda virá.

Nosso efetivo era reduzido ali, o que representava guardas mais longas e faxinas maiores. Eu começava a sofrer um pouco a falta de sono inevitável até mesmo no tipo de guerra mais calma. Além da guarda e patrulha, surgiam alarmes e prontidões constantes à noite, e de qualquer forma ninguém consegue dormir direito num buraco infernal, cavado no chão, os pés doendo de tanto frio - Em meus três ou quatro primeiros meses na linha de frente acredito que não tenha tido mais de doze períodos de vinte e quatro horas inteiramente sem dormir. Por outro lado, é certo que não tive noites de sono completo. Dormir vinte ou trinta horas numa semana era coisa de todo normal. Os efeitos disso não são tão ruins quanto seria de esperar, pois ficava-se estúpido à beça e a tarefa de subir e descer os morros tornava-se mais difícil ao invés de mais fácil, mas eu me sentia bem e estava quase constantemente com fome - céus, que fome! Toda a comida parecia-me boa, até mesmo o eterno feijão que todos, na Espanha, acabavam finalmente aprendendo a odiar. Nossa água vinha de quilômetros além, nas costas de mulas ou de pobres e perseguidos burros. Por algum motivo que me escapa, os camponeses de Aragón tratavam suas mulas bem, mas quanto aos burros, dispensavam-lhes um tratamento abominável. Se um burro empacasse, era comuníssimo que o tropeiro lhe desferisse bom pontapé nos testículos. Cessara a distribuição de velas, e os fósforos começavam a escassear. Os espanhóis nos ensinaram como fazer lamparinas de azeite com uma lata de leite condensado, um pente de balas (vazio) e um pouco de trapos. Quando havia azeite, o que nem sempre ocorria, aquelas coisas queimavam com uma chamazinha fraca e fumacenta, produzindo luz de um quarto de vela, apenas o suficiente para encontrar-se o fuzil na escuridão.

Não parecia haver esperança alguma de qualquer luta verdadeira. Quando deixamos Monte Pocero, eu contara meus cartuchos e descobrira que em perto de três semanas disparara apenas três tiros contra o inimigo Dizem que são precisas mil balas para matar um homem, e naquela batida seriam precisos vinte anos até eu poder matar meu primeiro fascista. Em Monte Oscuro as linhas estavam mais próximas e fazia-se número maior de disparos, mas tenho razoável certeza de que não acertei pessoa alguma. A bem da verdade, naquela linha de frente e nesse período da guerra a arma verdadeira não era o fuzil, mas o megafone. Não se podendo matar o inimigo, gritava-se para ele tudo quanto era desaforo e provocação. Tal método de guerra é coisa tão extraordinária, que merece explicação.

Sempre que as linhas se encontravam em distância que a voz humana alcançasse, travava-se intenso intercâmbio de uma trincheira para a outra De nós partiam os gritos:

- Fascistas - maricones!

E, vindo deles:

- Viva España! Viva Franco!

Ou então, quando sabiam que havia ingleses no nosso lado, gritavam em espanhol:

- Voltem pra casa, seus ingleses! Não queremos estrangeiros aqui!

No lado do Governo, as milícias partidárias, o grito de frases de propaganda destinadas a solapar o moral do inimigo já se transformara em técnica regular. Em toda posição que se prestasse a isso havia homens, em especial os metralhadores que eram dispensados para o trabalho de gritar, e que recebiam megafones para isso. Via de regra eles berravam uma frase feita, cheia de sentimentos revolucionários que visavam fazer os soldados fascistas compreenderem que não passavam de cachorrinhos do capitalismo internacional, que estavam lutando contra sua própria classe, etc. etc. e instavam para que se bandeassem para nosso lado. Isso era repetido continuamente por turmas que se revezavam na tarefa, e às vezes adentrava-se pela noite afora. Não há dúvida de que o trabalho apresentava efeitos, e todos concordavam em que o gotejamento de desertores fascistas devia-se a isso, em parte. Pensando bem no assunto dá para ver que quando um pobre coitado designado como sentinela - e muito provavelmente membro de sindicato socialista ou anarquista, apanhado pelo recrutamento contra sua vontade - está enregelado em seu posto, o refrão "Não lute contra sua própria classe!" a ecoar repetidamente na escuridão acaba por causar certa impressão. Podia até representar exatamente a diferença entre desertar e não desertar. Está claro que tal método não se ajusta à concepção britânica de como fazer a guerra e reconheço ter ficado espantado e escandalizado quando, pela primeira vez, vi fazerem isso. Que idéia estapafúrdia, essa de querer converter o inimigo, ao invés de abrir fogo sobre ele! Já agora acredito que, de qualquer ponto de vista pelo qual se encare a questão, era um recurso legítimo. Na guerra comum de trincheira, quando não existe artilharia, mostra-se extremamente difícil infligir baixas ao inimigo sem que se receba número idêntico das mesmas. Se for possível imobilizar certo número de homens no lado oposto, fazendo com que desertem, tanto melhor, e os desertores têm mais valor do que cadáveres, pois prestam informações. Mas inicialmente tal sistema nos desalentou, levando-nos a crer que os espanhóis não estavam encarando aquela guerra muito a sério. O homem que se encarregava da gritaria destinada ao inimigo, no posto do P. S. U . C. lá embaixo à nossa direita, era um verdadeiro artista no assunto. As vezes, ao invés de gritar refrões revolucionários, ele simplesmente contava aos fascistas que estávamos muito mais bem alimentados do que eles. Sua descrição das rações que recebíamos do Governo tendia, na verdade, a mostrar-se um tanto imaginativa.

- Torrada com manteiga! - dava para ouvir no eco que reverberava pelo vale afora. - Estamos aqui sentados e comendo torradas com manteiga! Pedacinhos lindos de torrada com bastante manteiga!

Não duvido que, como nós, ele não visse manteiga já desde semanas ou meses atrás, mas naquelas noites geladas as noticias de torradas imersas em manteiga provavelmente puseram muitas bocas fascistas cheias de água. Até a minha ficava, embora eu soubesse que ele mentia descaradamente.

Certo dia, em fevereiro, vimos um aeroplano fascista a aproximar-se. Como de costume, a metralhadora foi levada para o descoberto e seu cano virado para cima, enquanto todos se deitavam de costas para fazer boa mira. Nossas posições isoladas não valiam o lançamento de uma bomba, e via de regra os poucos aviões fascistas que passavam por ali faziam círculos para evitar o fogo das metralhadoras. Mas daquela feita o aeroplano veio diretamente para nós, alto demais para que se pudesse abrir fogo, e dele vieram caindo não bombas, mas coisas brancas e brilhantes que revoluteavam no ar. Algumas chegaram até nossa posição. Eram exemplares de um jornal fascista, o Heraldo de Aragân anunciando a queda de Málaga.

Aquela noite os fascistas na posição em frente desferiram um tipo de ataque abortivo. Eu acabava de alojar-me para dormir, meio morto de sono, quando estrugiu uma torrente forte de balas por cima e alguém gritou no abrigo:

- Estão atacando!

Passei a mão no fuzil e deslizei até meu posto, na parte de cima da posição e ao lado da metralhadora. Reinavam uma escuridão completa e barulheira infernal. O fogo de umas cinco metralhadoras caía sobre nós, e houve uma série de estrondos fortes causados pelo arremesso de bombas fascistas por sobre seu próprio parapeito, em manobra das mais idiotas. A treva da noite parecia impenetrável e lá embaixo no vale, à nossa esquerda, pude ver o brilho esverdeado de fuzis onde um pequeno número de fascistas, provavelmente em patrulha, metia-se no brinquedo. As balas voavam em torno de nós no escuro, com seus ruídos característicos. Algumas granadas passaram pelo alto assoviando, mas não caíram perto de nós e (como era comum nessa guerra) a maioria deixou de explodir. Tive um instante de aperto quando outra metralhadora abriu fogo do alto do morro atrás da gente - na verdade fora arma trazida ali para nos dar apoio, mas no momento pareceu estarmos cercados. Logo em seguida a nossa própria metralhadora engasgava, como sempre acontecia por utilizar aqueles cartuchos do diabo, e a vareta de desentupi-la foi perdida na escuridão impenetrável. Parecia que nada mais nos restava, senão ficar quietos e servir de alvos. Os metralhadores espanhóis, em sinal de desdém, não procuraram abrigo e, na verdade, expuseram-se deliberadamente, de modo que tive de fazer o mesmo. Por insignificante que fosse, todo aquele acontecimento mostrou-se interessantíssimo. Era a primeira em que eu estivera, a rigor, sob fogo inimigo e, para minha humilhação, verifiquei estar apavorado. Sempre se sente o mesmo, pelo que observei, quando sob fogo pesado. O medo não é tanto a ser atingido quanto se deve a não sabermos onde vamos sé-lo. Fica-se ali imaginando todo o tempo, pensando em que ponto exato a bala vai nos pegar, e isso confere a todas as partes do corpo uma sensibilidade das mais desagradáveis.

Depois de uma ou duas horas os disparos diminuiram e cessaram, e por todo esse tempo tivemos uma única baixa. Os fascistas avançaram com duas metralhadoras até à terra de ninguém, mas guardando uma boa distância e sem fazerem qualquer tentativa no sentido de chegar ao nosso parapeito. Na verdade não estavam atacando, e apenas gastavam cartuchos e faziam uma barulheira dos diabos a fim de comemorar a tomada de Málaga. A importância principal do caso foi que isso ensinou-me a ler as noticias da guerra nos jornais com espírito mais precavido e incrédulo, pois um Ou dois dias mais tarde os jornais e o rádio divulgavam relatórios de um ataque tremendo que fora desferido com cavalaria e tanques (como se pudessem escalar uma encosta perpendicular!) e que os heróicos ingleses repeliram.

Quando os fascistas nos disseram que Málaga caíra em suas mãos, achamos ser mentira deles, mas no dia seguinte surgiam boatos mais convincentes e deve ter passado um dia, ou dois, para o acontecimento ser oficialmente reconhecido. Gradualmente toda a história deplorável foi surgindo - como a cidade fora evacuada sem se disparar um tiro, e como a fúria dos italianos recaíra não sobre as tropas, que partiram dali, mas sobre a pobre população civil, partes da qual foram perseguidas e metralhadas por grande distância. As notícias causaram um calafrio na espinha, em todos nós, pois qualquer que tenha sido a verdade, todos os homens na milícia acreditavam que a queda de Málaga devia-se a traição. Era a primeira vez que eu ouvia falar em traição ou metas divergentes, e isso veio a formar em meu espírito as primeiras dúvidas vagas a respeito daquela guerra que, até então, apresentara as coisas certas e as erradas com maravilhosa simplicidade.

Em meados de fevereiro deixamos Monte Oscuro e fomos mandados, juntamente com todas as tropas do P.O.U.M. naquele setor, tomar parte no exército que sitiava Huesca. Tratava-se de uma viagem de noventa quilômetros em caminhão pela planície no inverno onde os vinhedos podados ainda não estavam brotando e as folhas da cevada mal surgiam no solo entorroado. A quatro quilômetros de nossas novas trincheiras, Huesca rebrilhava, pequenina e clara como uma cidade de casas de bonecas Meses antes, quando Sietamo fora tomada, o general coruandante das tropas do Governo dissera alegremente:

- Amanhã tomaremos café em Huesca.

A coisa não saiu como esperava, pois houve ataques cerrados, a cidade não foi tomada, e "Amanhã tomaremos café em Huesca" se tornara uma grande piada para todo o exercito. Se algum dia eu voltar à Espanha farei questão de tomar uma xícara de café em Huesca.

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Nada, ou quase nada, aconteceu no lado oriental de Huesca até o final de março. Estávamos a mil e duzentos metros do inimigo. Quando os fascistas foram repelidos para Huesca, os soldados do Exército Republicano encarregados daquela parte da linha de frente não tinham sido muito ardorosos em seu avanço, de modo que a linha formava uma espécie de bolsão. Mais tarde seria preciso avançar por ali - o que era perigoso debaixo do fogo inimigo - mas naquele momento o inimigo, na verdade, podia até não existir, pois nossa única preocupação era aquecer-nos e conseguir alimentação suficiente. A bem da verdade, houve coisas nesse período que me interessaram profundamente, e serão descritas mais adiante. Mas ficarei mais próximo da ordem dos acontecimentos se procurar apresentar, neste ponto, alguma explicação sobre a situação política interna no lado do Governo.

De inicio eu ignorara o lado político da guerra, e somente àquela altura é que o mesmo começou a forçar-se à minha atenção. Se o leitor não estiver interessado nas misérias da política partidária, passe por cima. Estou procurando manter as partes políticas desta narrativa em capítulos separados, exatamente por esse motivo. Mas seria de todo impossível, ao mesmo tempo, escrever a respeito da guerra espanhola com base num ângulo puramente militar. Tratava-se, acima de tudo, de uma guerra política e nenhum acontecimento nela, pelo menos no primeiro ano de seu transcurso, pode ser entendido sem que se tenha alguma percepção da luta interpartidária que se travava por trás das linhas governamentais.

Quando cheguei à Espanha, e por algum tempo depois disso, não só estava desinteressado pela situação política como também não a percebia. Sabia que havia uma guerra, mas não fazia idéia de que tipo ela era. Se me perguntassem por que ingressara na milícia, eu teria respondido: "Para lutar contra o fascismo", e se perguntassem pelo que estava lutando, eu diria: "Pela decência comum". Eu aceitara a versão que o News Chronicle-New Statesman conferira ao conflito, chamando-o de defesa da civilização contra um motim maníaco, de um exército composto de Coronéis Blimp 1 a soldo de Hitler. A atmosfera revolucionária de Barcelona me atraíra profundamente, mas eu não fizera qualquer esforço no sentido de compreendê-la. Quanto ao caleidoscópio de partidos políticos e sindicatos de trabalhadores, com seus nomes fatigantes - P.S.U.C., P.O.U.M., F.A.I., C.N.T., U.G.T., J.C.I., J.S.U., A.I.T. - serviam apenas para me exasperar. A primeira vista parecia que a Espanha sofria uma praga de siglas. Eu sabia que estava servindo em alguma coisa chamada o P. O. U. M. (só ingressara nela, ao invés de fazê-lo em qualquer outra milícia, porque chegara a Barcelona com documentos da I. L. P.), mas não compreendi que existiam sérias divergências entre os partidos políticos. Em Monte Pocero, quando indicaram a posição à nossa esquerda e disseram que "ali estão os socialistas" (o que significava o P.S.U.C.) eu fiquei intrigado e perguntei: "Mas não somos todos socialistas?" Achei bastante idiota o fato de que gente lutando pela vida devesse ter partidos separados, e minha atitude sempre foi a de que "devíamos largar de mão aquela besteira política toda e tocar a guerra para frente". Está claro que se tratava da atitude "antifascista" correta, cuidadosamente disseminada pelos jornais ingleses, em grande parte para impedir que os leitores compreendessem a natureza real da luta. Mas na Espanha, e principalmente na Catalunha, tratava-se de atitude que ninguém podia manter indefinidamente. Todos, por mais que o evitassem, vinham mais cedo ou mais tarde a tomar partido, pois mesmo quem não desse qualquer importância aos partidos políticos e suas "linhas" colídentes tinha de perceber que seu próprio destino estava em jogo - Como miliciano, era-se soldado contra Franco, mas era-se também um peão numa luta enorme que se travava entre duas teorias políticas. Quando eu saía à cata de lenha nas encostas de montanha e ficava pensando se aquilo era mesmo uma guerra ou se o News Chronicle a inventara, quando eu me esquivava ao fogo de metralhadoras comunistas nas desordens de Barcelona, quando finalmente fugi da Espanha tendo a polícia nos calcanhares - tudo isso acontecera desse modo porque eu servia na milícia do P.O.U.M. e não no P.S.U.C. Tal é a grande, a imensa diferença entre duas siglas!

Para compreender o alinhamento no lado do Governo é preciso recordar como a guerra começou. Ao irromper a luta em 18 de julho, é provável que todos os antifascistas na Europa tenham sido tocados pela esperança, pois ali, finalmente, e pelo que parecia, a democracia punha-se de pé contra o fascismo. Por anos a fio os chamados países democráticos tinham-se curvado ao fascismo, a cada passo. Aos japoneses dera-se mão livre na Manchúria. Hitler tomara o poder e passara a massacrar os adversários políticos de todos os tipos. Mussolíni bombardeara os abissínios enquanto cinqüenta e três nações (acho que foram cinqüenta e três) emitiam sons piedosos - e ficavam de fora. Mas quando Franco tentou derrubar um Governo levemente esquerdista o povo espanhol, contra todas as expectativas, levantara-se contra isso. Parecia - e talvez fosse - a virada da maré.

Havia diversos pontos, todavia, que escapavam à atenção geral. Para começar, não se podia comparar Franco, a rigor, com Hitler ou Mussolíni. Seu levante foi um motim militar apoiado pela aristocracia e pela Igreja, e em sua maior parte, ao menos de inicio, constituiu tentativa não tanto de impor o fascismo quanto restaurar o feudalismo. Isso queria dizer que Franco tinha contra si não só a classe trabalhadora, mas também diversas partes da burguesia liberal - aqueles mesmos que formam os sustentáculos do fascismo quando este surge em forma mais moderna. Mais importante do que isso era o fato de que a classe trabalhadora espanhola não resistiu a Franco, como talvez pudéssemos fazer na Inglaterra, em nome da "democracia" e do status quo. Sua resistência foi acompanhada - e podemos quase dizer que consistiu de - uma explosão revolucionária definida. A terra foi tomada pelos camponeses e muitas fábricas, bem como a maior parte dos meios de transporte, caíram em mãos dos sindicatos. As igrejas foram destroçadas e os sacerdotes expulsos ou mortos - O Daily Mal, entre aclamações do clero católico, teve a capacidade de apresentar Franco como um patriota que libertava o país das hordas de "vermelhos" demoníacos.

Durante os primeiros poucos meses da guerra o verdadeiro oponente de Franco não foi tanto o Governo quanto o foram os sindicatos. Assim que o levante irrompeu os trabalhadores urbanos organizados retrucaram decretando greve geral e depois exigindo - e conseguindo, após alguma luta - armas dos arsenais públicos. Se não houvessem agido espontaneamente, e de modo mais ou menos independente, é bem possível que Franco jamais encontrasse qualquer resistência. Não pode haver qualquer certeza a esse respeito, é claro, mas existem motivos, ao menos, para pensar assim. O Governo fizera pouca ou nenhuma tentativa de impedir o levante, que fora antevisto muito tempo antes, e quando a luta irrompeu sua atitude mostrou-se fraca e hesitante, a tal ponto que a Espanha chegou a ter três primeiros-ministros num só dia. 2 Além disso, o passo que poderia salvar a situação imediata, que era armar os trabalhadores, foi dado contra a vontade e resultou de violento clamor popular. Mesmo assim as armas foram distribuídas e nas grandes cidades da Espanha oriental os fascistas viram-se batidos por um esforço imenso, principalmente da classe trabalhadora, auxiliada por parte das Forças Armadas (Guardas de Assalto, etc,) que haviam permanecido fiéis. Era o tipo de esforço que provavelmente só se poderia obter de gente que estivesse lutando com intenção revolucionária, isto é, acreditando que estava lutando por alguma coisa melhor do que o status quo. Nos diversos centros da revolta acredita-se que três mil pessoas tenham morrido nas ruas, num só dia. Homens e mulheres armados apenas com bastões de dinamite corriam pelas praças abertas e atacavam edifícios de pedra guardados por soldados treinados, que tinham metralhadoras à sua disposição. Ninhos de metralhadoras que os fascistas colocaram em pontos estratégicos foram arrebentados por táxis que se arremessavam sobre eles a sessenta quilômetros horários. Ainda que nada se tivesse ouvido sobre a tomada da terra pelos camponeses, o estabelecimento de sovietes locais, etc,, seria difícil crer que os anarquistas e socialistas, o esteio da resistência, estivessem fazendo essas coisas para preservar a democracia capitalista, que principalmente no ponto de vista dos anarquistas não passava de uma máquina centralizada para roubar o povo.

Enquanto isso, os trabalhadores estavam com armas na mão, e a essa altura abstinham-se de devolvê-las. (Mesmo um ano depois calculava-se que os anarco-sindicalistas na Catalunha tinham 30.000 fuzis em seu poder.) As propriedades dos grandes latifundiários pró-fascistas foram, em muitos lugares, tomadas pelos camponeses e juntamente com a coletivizaçao da indústria e transporte houve tentativa no sentido de estabelecer as primícias de um governo de trabalhadores, mediante os comitês locais, patrulhas de operários para substituir as antigas forças policiais pró-capitalistas, milícias de trabalhadores baseadas em sindicatos, e assim por diante. Está claro que tal processo não era uniforme, e foi mais a fundo na Catalunha do que em qualquer outra parte do país. Havia regiões onde as instituições de governo local continuaram quase incólumes, e outras onde elas coexistiam com comitês revolucionários. Em alguns lugares estabeleceram-se comunas anarquistas independentes, e algumas continuaram a existir até um ano mais tarde, quando foram suprimidas à força pelo Governo. Na Catalunha, durante os primeiros meses, a maior parte do poder real esteve em mãos dos anarco-sindicalistas, que controlaram a maior parte das indústrias principais. O que aconteceu na Espanha, na verdade, não foi apenas uma guerra civil, mas o inicio de uma revolução. É este o fato que a imprensa antifascista fora da Espanha tratou de obscurecer. A questão viu-se reduzida a "fascismo versus democracia", e o aspecto revolucionário da coisa toda foi oculto tanto quanto possível. Na Inglaterra, onde a imprensa se acha mais centralizada e o público é mais facilmente iludido do que em outros países, apenas duas versões da guerra espanhola mereceram qualquer divulgação: a versão direitista dos patriotas cristãos versus bolchevistas dos quais gotejava o sangue das vítimas, e a versão esquerdista de republicanos cavalheirescos que sufocavam uma rebelião militar. A questão central em jogo foi encoberta.

Havia diversos motivos para que isso ocorresse. De início, mentiras espantosas a respeito de atrocidades estavam circulando na imprensa favorável aos fascistas, e propagandistas bem intencionados certamente achavam que estavam ajudando o Governo espanhol quando negavam que a Espanha "ficara vermelha". Mas o motivo principal era o seguinte: com exceção dos pequenos grupos revolucionários que existem em todos os países, o mundo todo estava resolvido a impedir a revolução na Espanha. O Partido Comunista, em particular, tendo a Rússia soviética por trás, atirou todo o seu peso e vigor contra a revolução. A tese comunista era de que naquela etapa a revolução seria fatal, e o que se devia procurar na Espanha não era o controle pelos trabalhadores, mas a democracia burguesa. Quase não se precisa mostrar o motivo pelo qual a opinião capitalista "liberal" adotou a mesma linha. O capital estrangeiro encontrava-se fartamente aplicado na Espanha. A Barcelona Traction Company, por exemplo, representava dez milhões em capital inglês, e nesse intervalo os sindicatos apoderaram-se de todos os transportes na Catalunha. Se a revolução seguisse sua marcha, não se receberia qualquer compensação, ou pouca; se a república capitalista prevalecesse, os investimentos estrangeiros estariam a salvo. E como a revolução precisava ser esmagada, tudo ficava muito simplificado quando se fazia de conta que não ocorrera revolução alguma. Desse modo o significado real de cada acontecimento podia ser encoberto, e toda transferência do poder dos sindicatos para o Governo central podia ser apresentada como passo necessário na reorganização militar. A situação assim criada mostrava-se extremamente curiosa. Fora da Espanha poucos compreendiam que havia uma revolução; dentro do país, ninguém duvidava disso. Até mesmo os jornais do P .S. U. C., controlados pelos comunistas e mais ou menos comprometidos com uma doutrina anti-revolucionária, falavam sobre "nossa gloriosa revolução". E enquanto isso a imprensa comunista nos outros países gritava que não existia qualquer sinal de revolução em parte alguma; a tomada das fábricas, estabelecimento de comitês operários, etc., nada disso ocorrera - ou então, ocorrera, mas não apresentava qualquer importância política". De acordo com o Daily Worker (6 de agosto de 1936) aqueles que diziam estar o povo espanhol lutando pela revolução social, ou por qualquer outra coisa que não a democracia burguesa, eram "patifes mentirosos e descarados". Por outro lado Juan López, membro do Governo de Valência, declarava em fevereiro de 1937 que "o povo espanhol está derramando seu sangue, não pela República democrática e sua Constituição de papel, mas por... uma revolução". Assim poderia parecer que os patifes mentirosos e descarados incluíam alguns membros do Governo pelo qual éramos solicitados a lutar. Alguns dos jornais antifascistas estrangeiros chegaram até à mentira piedosa de fazer de conta que as igrejas só eram atacadas quando utilizadas como fortalezas pelos fascistas. Na verdade, as igrejas foram pilhadas por toda a parte e do modo mais natural, porque sabia-se muitíssimo bem que a Igreja da Espanha fazia parte da quadrilha capitalista. Em seis meses que passei na Espanha vi apenas duas igrejas intatas, e até proximidades de julho de 1937 igreja nenhuma pôde reabrir as portas e celebrar missa ou qualquer atividade, com exceção de uma ou duas igrejas protestantes em Madri.

Mas aquilo, afinal de contas, era apenas o início de uma revolução, e não a coisa completa. Até mesmo quando os trabalhadores, com certeza na Catalunha e possivelmente em outras partes, tiveram o poder para fazer isso, não derrubaram ou substituíram inteiramente o Governo. Era claro que não podiam fazê-lo, quando Franco estava martelando à porta da frente e seções da classe média encontravam-se ao lado dele. O país estava em etapa transitória que podia tomar o rumo do socialismo ou regressar a uma república capitalista comum. Os camponeses possuíam a maior parte da terra, e deveriam mantê-la, a menos que Franco vencesse; todas as grandes indústrias foram coletivizadas, mas se continuariam assim ou se o capitalismo regressaria às mesmas, isso dependeria de quem finalmente conquistasse o poder. Ao início, tanto o Governo central quanto o Generalato de Catalunha (o Governo catalão semi-autônomo) podiam, de modo definido, ser proclamados como representantes da classe trabalhadora. O Governo estava encabeçado por Caballero, socialista da ala esquerda, e continha ministros representando a U. G. T. (sindicatos socialistas) e o C . N . T. (unidades sindicalistas controladas pelos anarquistas). O Generalato catalão, durante algum tempo, foi virtualmente superado por um Comitê de Defesa antifascista 3 que consistiu principalmente de delegados vindos dos sindicatos. Mais tarde o Comitê de Defesa foi dissolvido e o Generalato reconstituído de modo a representar os sindicatos e diversos partidos esquerdistas. Mas cada manobra subsequente, na reorganização do Governo, constituiu um passo para a direita. De início, o P. O. U. M. foi expulso do Generalato; seis meses depois disso, Caballero era substituído por Negrín, socialista da ala direita; pouco depois o C . N . T. via-se eliminado do Governo, e então era expulso do Generalato. Um ano após a eclosão da guerra e revolução restava, finalmente, um Governo composto de socialistas de direita, liberais e comunistas.

A virada geral para a direita data de outubro-novembro de 1936, quando a U. R. S.S. começou a enviar armas para o Governo e o poder começou a passar dos anarquistas para os comunistas. Com exceção de Rússia e México, nenhum outro pais tivera a decência de vir acudir o Governo, e o México, por motivos óbvios, não podia enviar armas em quantidade maior. Por conseqüência, os russos encontravam-se em posição de ditar condições. Resta pouquíssima dúvida de que as mesmas diziam, em sua substância real: "Impeçam a revolução, ou não receberão armas", e que o primeiro passo contra os elementos revolucionários, a expulsão do P.O.U.M. do Generalato catalão, foi dado sob ordens emanadas da U.R.S.S. Já se negou que qualquer pressão tenha sido exercida pelo Governo russo, mas o ponto não apresenta grande importância. pois os partidos comunistas de todos os países podem ser tidos como executando a doutrina russa, e não se nega que o Partido Comunista foi o maior agente, de início contra o P .0. U . M., depois contra os anarquistas e a seção de Caballero dos socialistas e, de um modo geral, contra uma doutrina revolucionária. Uma vez obtida a intervenção da U.R.S.S., o triunfo do Partido Comunista ficava assegurado. Para começar, a gratidão à Rússia pelas armas e o fato de que o Partido Comunista, em especial depois da chegada das Brigadas Internacionais, parecia capaz de ganhar a guerra, fizeram subir de modo extraordinário o prestígio dos comunistas. Em segundo lugar, as armas russas eram fornecidas por intermédio do Partido Comunista e os partidos a ele aliados, e os mesmos providenciavam para que o menor número possível delas chegasse a seus adversários políticos.4 Em terceiro, proclamando uma doutrina não-revolucionária os comunistas conseguiram reunir ao seu redor todos aqueles que os extremistas haviam assustado. Era fácil, por exemplo. convocar os camponeses mais prósperos contra a doutrina de coletivização dos anarquistas. Era enorme o crescimento no número de membros do partido. e o influxo advinha em grande parte da classe média - lojistas, funcionários, oficiais do Exército, camponeses bem de vida, etc. etc. A guerra, em sua essência, era uma luta triangular. A luta contra Franco tinha de prosseguir. mas a meta simultânea do Governo era recobrar tanto poder quanto restasse em mãos dos sindicatos. Obteve-se isso mediante uma série de pequenas manobras - numa política de alfinetadas, como disse alguém - e, em seu conjunto. de modo muito hábil. Não havia qualquer movimento contra-revolucionário geral e declarado, e até maio de 1937 quase não precisaram empregar a força. Sempre era possível trazer os trabalhadores ao redil, argumentando-se de modo por demais óbvio para que o repitamos: "A menos que faças isto, aquilo e mais aquilo, perderemos a guerra". Em todos os casos, não preciso dizer, parecia que a coisa exigida pela necessidade militar era a entrega de tudo quanto os trabalhadores conquistaram por si próprios em 1936. Mas o argumento dificilmente falharia, pois perder a guerra era a última coisa que os partidos revolucionários desejavam; se a guerra fosse perdida a democracia e a revolução, o socialismo e o anarquismo tornar-se-iam palavras ocas, sem sentido. Os anarquistas, formando o único partido revolucionário com tamanho suficiente para ser levado em conta, foram obrigados a ceder, ponto por ponto. O processo de coletivização estacou, os comitês locais foram abolidos, as patrulhas de trabalhadores também e as forças policiais de antes da guerra, bastante aumentadas e muito bem armadas, voltaram à cena, enquanto diversas indústrias principais que estiveram sob controle dos sindicatos passavam à posse do Governo (a tomada do Centro Telefônico de Barcelona, que levou à luta de maio, foi um dos incidentes nesse processo); e finalmente, no que era o mais importante de tudo, as milícias de trabalhadores, baseadas nos sindicatos, viram-se desfeitas, de modo gradual, e distribuídas pelo novo Exército Popular, um exército "não-politico" em linhas semiburguesas, com tabela diferencial de soldo, casta de oficiais desfrutando privilégios, etc. etc. Nas circunstâncias especiais em que se vivia, tratava-se do passo realmente decisivo, e ocorreu na Catalunha depois de efetuar-se em todas as outras partes, porque era ali que os partidos revolucionários se mostravam mais fortes. Como é óbvio, a única garantia que os trabalhadores podiam ter de que iriam continuar com seus ganhos era a manutenção de parte das forças armadas sob seu controle. E como de costume, a dissolução das milícias efetuou-se em nome da eficiência militar, e ninguém podia negar que se tornava necessária uma completa reorgaIlização militar. Teria sido perfeitamente possível, todavia, reorganizar as milícias e torná-las mais eficientes ao mesmo tempo em que permanecessem sob controle dos sindicatos, mas o objetivo principal da modificação era assegurar que os anarquistas não possuíssem um exército próprio. O espirito democrático das milícias, além disso, era campo de cultura para as idéias revolucionárias. Os comunistas percebiam isso muito bem e investiam incessante e acremente contra o P.O.U.M. e o principio anarquista do pagamento igual para todas as patentes. Um "aburguesamento" geral, uma destruição deliberada do espírito igualitário dos primeiros meses da revolução, estavam tendo lugar. Tudo ocorreu tão depressa que as pessoas fazendo visitas sucessivas à Espanha, com intervalos de alguns meses, declararam que mal pareciam estar visitando o mesmo país; o que parecera, na superfície e por um breve instante, um Estado de trabalhadores, sofria transformação diante dos próprios olhos dos observadores e tornava-se uma república burguesa comum, com sua divisão normal entre ricos e pobres. No outono de 1937 o "socialista" Negrín declarava em discursos públicos que "respeitamos a propriedade privada" e os membros das Cortes, que ao início da guerra fugiram do país devido às suas simpatias pelos fascistas, regressavam agora à Espanha.

Todo esse processo é fácil de entender quando nos lembramos que ele parte da aliança temporária que o fascismo, em certas de suas formas, força ao burguês e ao operário. Essa aliança, conhecida como Frente Popular, constituí em sua essência uma aliança de inimigos, e parece provável que tenha, sempre, que terminar com um dos aliados engolindo o outro. O único traço inesperado na situação espanhola - e fora da Espanha isso causou uma extensão enorme de mal-entendidos - é que entre os partidos ao lado do Governo os comunistas situavam-se não na extrema esquerda, mas na extrema direita. Na verdade isso não deveria causar surpresa, pois a tática do Partido Comunista em outras partes, em especial na França, já tornou bem claro que o Comunismo Oficial deve ser encarado, pelo menos por enquanto, como força anti-revolucionária. Toda a doutrina do Comintem está agora subordinada (e de modo perdoável, levando-se em conta a situação mundial) à defesa da U.R.S.S., que depende de um sistema de alianças militares. De modo particular, a U.R.S.S. encontra-se em aliança com a França, país capitalista-imperialista. Essa aliança de pouco vale à Rússia a menos que o capitalismo francês seja forte, pelo que a doutrina comunista na França tem de ser anti-revolucionária.

Isto quer dizer não apenas que os comunistas franceses marcham hoje sob a tricolor e cantam a Marselhesa mas, e o que é mais importante, que tiveram de abandonar toda a agitação eficiente nas colônias francesas. Há menos de três anos, Thorez, Secretário do Partido Comunista francês, declarou que os trabalhadores franceses jamais seriam seduzidos a lutar contra seus camaradas alemães;5 e ele é hoje um dos patriotas mais gritantes da França. A pista para compreendermos o comportamento do Partido Comunista, em qualquer pais, é a relação militar desse país, real ou latente, para com a U.R.S.S. Na Inglaterra, por exemplo, a posição ainda se mostra incerta, daí o fato do Partido Comunista inglês mostrar-se hostil ao Governo Nacional e, de modo ostensivo, opor-se ao rearmamento. No entanto, se a Grã-Bretanha entrar em aliança ou entendimento militar com a U.R.S.S., o comunista britânico, como o comunista francês, não terá outra escolha senão tornar-se bom patriota e imperialista, e já encontramos sinais indicando isso. Na Espanha a "linha" comunista encontrava-se, sem qualquer dúvida, sob a influência do fato de que a França, aliada da Rússia, objetaria com vigor à existência de um vizinho revolucionário e moveria céus e terras para impedir a libertação do Marrocos espanhol. O Daily Mail, com suas reportagens de revolução vermelha financiadas por Moscou, estava ainda mais disparatadamente errado do que costumava andar. Na realidade, eram os comunistas, acima de quaisquer outros, quem impediam a revolução na Espanha. Mais tarde, quando as forças da ala direita adquiriram pleno controle, os comunistas mostraram-se dispostos a ir muito mais longe do que os liberais na caçada aos dirigentes revolucionários.5

Tentei debuxar o curso geral da revolução espanhola em seu primeiro ano, porque isso facilita a compreensão da situação em qualquer momento. Mas não pretendo sugerir que em fevereiro eu tivesse todas as opiniões que citei. Logo para começar, as coisas que mais me esclareceram não haviam ocorrido ainda, e seja lá como for minhas preferências eram, de algum modo, diferentes do que são agora. Isso, em parte, deve-se ao fato de que o lado político da guerra me aborrecia, e eu reagia de modo natural contra o ponto de vista sobre o qual mais ouvia falar - o ponto de vista P.O.U.M. - I.L.P. Os ingleses entre os quais eu me encontrava eram, em sua maioria, membros da I. L. P., com alguns membros do Partido Comunista britânico em seu meio, e quase todos muito mais bem educados politicamente do que eu. Por semanas a fio, durante o período monótono quando nada acontecia ao redor de Huesca, achei-me no meio de uma discussão política que praticamente não terminava. No paiol bem ventilado e malcheiroso da fazenda onde estávamos acomodados, na escuridão abafada dos abrigos, por trás do parapeito nas horas frígidas da noite, as "linhas" partidárias colidentes recebiam debate e mais debate. Entre os espanhóis ocorria o mesmo, e a maioria dos jornais que líamos tornava a disputa interpartidária seu assunto principal. Seria preciso estar surdo, ou tomado de imbecilidade, para não se fazer alguma idéia do que os diversos partidos defendiam.

Do ponto de vista da teoria política, havia apenas três partidos que contavam, o P.S.U.C., o P.O.U.M. e o C.N.T. - F.A.I., de um modo geral e impreciso descrito como os anarquistas". Examino o P .S. U . C. em primeiro lugar, por ser o mais importante. Era o partido que finalmente triunfou, e já naquela época estava visivelmente em ascensão.

Torna-se necessário explicar que quando se fala da "linha" do P.S.U.C. está-se, na realidade, falando da "linha" do Partido Comunista, O P.S.U.C. (Partido Sociologista Unificado de Cataluña) era o Partido Socialista da Catalunha, formado ao início da guerra pela fusão de diversos partidos marxistas, inclusive o Partido Comunista Catalão, mas achava-se agora inteiramente sob controle comunista e filiado à Terceira Internacional. Por todo o resto da Espanha não se efetuara uma unificação formal entre socialistas e comunistas, mas o ponto de vista dos últimos e o ponto de vista dos socialistas de direita podiam, por toda a parte, ser tomados como idênticos. A grosso modo, o P.S.U.C. constituía o órgão político da U.G.T. (Unión General de Trabajadores), ou sejam os sindicatos socialistas. O número de membros desses sindicatos por toda a Espanha atingia, naquela época, perto de um milhão e meio. Eles continham muitas seções dos trabalhadores manuais, mas desde a eclosão da guerra ampliaram-se por um grande influxo de membros da classe média, pois nos primeiros dias "revolucionários" gente de todos os tipos verificara ser útil ingressar na U. G . T. ou no C. N . T. Os dois blocos de sindicatos sobrepunham-se em diversas partes, mas dos dois o C.N.T. mostrava-se de modo mais definido uma organização da classe trabalhadora. O P.S.U.C., portanto, era um partido formado em parte pelos trabalhadores e em parte pela pequena burguesia - os lojistas, funcionários e camponeses mais prósperos.

A "linha" do P.S.U.C. que se pregava na imprensa comunista e pró-comunista por todo o mundo era mais ou menos a seguinte:

"No presente nada mais conta senão ganhar a guerra; sem a vitória na guerra tudo o mais não faz sentido. Por esse motivo, não é este o momento para falar em tocar à frente a revolução. Não podemos afastar os camponeses, forçando-os à coletivização, e não podemos afugentar as classes médias que estiveram lutando a nosso lado. Acima de tudo, e pelo bem da eficiência, temos de acabar com o caos revolucionário. Precisamos de um governo central forte, em lugar dos comitês locais, e precisamos de um exército adequadamente preparado e de todo militarizado, sob comando unificado. Prender-se a fragmentos do controle pelos trabalhadores e repetir frases revolucionárias como papagaio é pior do que inútil, e se mostra não só obstrucionista, mas até contra-revolucionário, pois conduz a divisões que podem ser utilizadas contra nós pelos fascistas. Nesta etapa não estamos lutando pela ditadura do proletariado, mas pela democracia parlamentar. Quem tentar transformar a guerra civil numa revolução social estará fazendo o jogo dos fascistas e será na realidade, senão em intenção, um traidor".

A "linha" do P.O.U.M. diferia disso em todos os pontos, abrindo-se exceção, é claro, para a importância de ganhar a guerra. O P.O.U.M. (Partido Obrero de Unificación Marxista) era um daqueles partidos comunistas dissidentes que surgiram em muitos países, nos últimos anos, como resultado da oposição ao "estalinismo", isto e, a modificação, verdadeira ou aparente, na doutrina comunista. Formava-se em parte de ex-comunistas e, em parte, de um partido anterior, o Bloco de Trabalhadores e Camponeses. Numericamente, era pequeno,7 sem grande influência fora da Catalunha e sua importância maior era por possuir uma proporção invulgar de membros politicamente esclarecidos. Na Catalunha seu bastião mais forte era Lerida. Não representava qualquer bloco de sindicatos, e os milicianos, em sua maioria, eram membros do C.N.T., mas os verdadeiros membros do partido pertenciam, via de regra, à U.G.T. Era somente com a C.N.T., entretanto, que o P.O.U.M. possuía qualquer influência. Sua "linha" era aproximadamente a seguinte:

"É tolice falar em opormo-nos ao fascismo pela 'democracia' burguesa. A 'democracia' burguesa não passa de outro nome para o capitalismo, bem como o fascismo. Lutar contra o fascismo em nome da 'democracia' é lutar contra uma forma de capitalismo em nome de outra, que poderá virar a qualquer instante. A única alternativa verdadeira ao fascismo está no controle pelos trabalhadores. Se estabelecermos qualquer outra meta que não essa, estaremos entregando a vitória a Franco ou, quando muito, deixaremos o fascismo entrar pela porta dos fundos. Enquanto isso os trabalhadores devem ater-se a tudo aquilo que tenham conquistado. e se cederem alguma coisa ao Governo semiburguês poderão estar certos de que serão tapeados. As milícias de trabalhadores e suas forças policiais devem ser conservadas em sua forma atual e deve-se resistir a qualquer esforço por 'aburguesálas'. Se os trabalhadores não tiverem o controle das Forças Armadas, estas controlarão os trabalhadores. A guerra e a revolução são inseparáveis".

O ponto de vista dos anarquistas mostra-se menos fácil de definir. Seja lá como for, o termo genérico "anarquistas" é utilizado para abarcar uma multidão de pessoas com opiniões muito diferentes entre si. O grande bloco de sindicatos formando a C . N . T. (Confederación Geral de Trabajadores), com perto de dois milhões de membros ao todo, tinha como seu órgão político a F.A.I. (Federacion Anarquista Ibérica), que era realmente uma organização anarquista. Mas os seus próprios membros, embora adotando a filosofia anarquista em parte, como de resto parece acontecer à maioria dos espanhóis, não eram obrigatoriamente anarquistas no sentido puro da palavra. De um modo especial, desde o início da guerra, marcharam mais na direção do socialismo comum, porque as circunstâncias forçavam-nos a participar na administração centralizada e, mesmo, a romper todos os seus princípios, ingressando no Governo. Ainda assim diferiam de modo fundamental dos comunistas por visarem, como o P.O.U.M., o controle pelos trabalhadores e não uma democracia parlamentar. Aceitavam o refrão do P.O.U.M.:

"A guerra e a revolução são inseparáveis", embora se mostrassem menos dogmáticos nesse ponto. De um modo geral, a C.N.T. - F.A.I. era a favor de: (1) Controle direto sobre a indústria, exercido pelos trabalhadores empenhados na mesma, como no caso dos transportes, tecelagens, etc.; (2) governo por comitês locais e resistência a todas as formas de autoritarismo centralizado; (3) hostilidade invariável para com a burguesia e a Igreja. Este último ponto, embora o menos preciso, era também o mais importante. Os anarquistas constituíam o oposto da maioria dos chamados revolucionários, pois embora seus princípios se mostrassem bastante vagos, seu ódio ao privilégio e à injustiça apresentava-se com autenticidade. Pelo aspecto filosófico, comunismo e anarquismo são pólos opostos. Na prática, isto é, na forma de sociedade visada, a diferença está mais na ênfase, mas é de todo irreconciliável. O comunista confere destaque sempre ao centralismo e à eficiência, o anarquista à liberdade e igualdade. O anarquismo tem raízes profundas na Espanha e deverá viver mais do que o comunismo, quando a influência russa for retirada. No curso dos primeiros dois meses da guerra foram os anarquistas, mais do que quaisquer outros, quem salvou a situação, e muito depois disso a milícia anarquista, a despeito de sua indisciplina, constituía sabidamente os melhores soldados entre as forças puramente espanholas. Desde princípios de fevereiro de 1937 os anarquistas e o P OU. M. podiam, em certa medida, ser agrupados. Se os anarquistas, o P O U M e a ala esquerda dos socialistas tivessem o tino de combinar-se desde o inicio e forçar uma política realista, a historia da guerra poderia ser diferente. Mas no período inicial quando os partidos revolucionários pareciam ter a presa nas mãos, isso fora impossível. Entre anarquistas e socialistas existiam rivalidades antigas, o P.O.U.M., como marxista, encarava o anarquismo com ceticismo, enquanto que de um ponto de vista anarquista puro o "trotskismo" do P.O.U.M não era mais preferível do que o "estalinismo" dos comunistas. Ainda assim a tática comunista tendia a aproximar os dois partidos. Quando o P.O.U.M entrou na luta desastrosa que se travou em maio, em Barcelona, isso resultou principalmente de um instinto que levava a estar ao lado da C.N.T. e mais tarde, quando o P.O.U.M. foi suprimido, os anarquistas foram os únicos que tiveram a coragem de erguer a voz em sua defesa.

Assim é que, a grosso modo, o alinhamento de forças se constituía. A um lado a C.N.T. - F.A.I., o P.O.U.M e uma seção dos socialistas, a favor do controle pelos trabalhadores; ao outro os socialistas de direita, liberais e comunistas, a favor de um governo centralizado e um exército militarizado.

A esta altura torna-se fácil ver porque eu preferia o ponto de vista comunista ao do P.O.U.M. Os comunistas possuíam uma doutrina pratica definida, claramente melhor do ponto de vista do bom senso, que olha apenas os poucos meses à frente. E decerto a política cotidiana do P.O.U.M., sua propaganda, e assim por diante, mostravam-se indescritivelmente ruins; deve ter sido assim ou, do contrario, eles teriam conseguido atrair um número bem maior de seguidores e adeptos. O que resolvia a questão era que os comunistas - ou isso pareceu a mim - estavam dando seguimento a guerra, enquanto nós e os anarquistas permanecíamos parados. Era esse o sentimento geral naquela ocasião. Os comunistas conquistaram poder e vasto aumento de seguidores mediante seus apelos às classes médias contra os revolucionários, mas em parte também porque eram as únicas pessoas que pareciam capazes de ganhar a guerra As armas russas e a defesa magnífica de Madri por tropas que estavam principalmente sob controle comunista fizeram dos vermelhos os heróis da Espanha Como alguém o afirmou, cada aeroplano russo que sobrevoava nossas cabeças era propaganda comunista. O purismo revolucionário do P.O.U.M., embora eu percebesse sua lógica, parecia-me bastante infrutífero; afinal de contas, o que importava era ganhar a guerra.

Prevalecia, enquanto isso, a disputa interpartidária diabólica que se travava nos jornais, panfletos, cartazes, livros - por toda a parte. A essa altura os jornais que eu via com mais freqüência eram os do P.O. U. M., La Batalla e Adelante, e suas criticas constantes ao P .S. U. C. "contra-revolucionário" pareceram-me presunçosas e cansativas. Mais tarde, ao examinar melhor a imprensa do P .S. U. C. e dos comunistas, compreendi que o P .O. U. M. estava praticamente isento de culpa, comparado a seus adversários. A parte de tudo o mais, eles tinham oportunidades muito menores, e diversamente dos comunistas não possuíam base em qualquer imprensa, a não ser em seu próprio país, e dentro da Espanha achavam-se com desvantagem enorme, pois a censura estava sob controle comunista, em sua maior parte, de modo que os jornais do P. O. U. M. podiam ser suprimidos ou multados se dissessem alguma coisa considerada daninha. Também é fazer justiça ao P. O. U. M. o afirmar que embora eles pudessem fazer sermões sem fim a respeito da revolução e citar Lênin ad nauseam, via de regra não se empenhavam em calúnias pessoais. Restringiam suas polêmicas, além disso, aos artigos em jornal. Seus grandes cartazes coloridos, destinados a um público mais amplo (os cartazes são importantes na Espanha, com sua grande população analfabeta), não atacavam os partidos rivais, mas eram simplesmente antifascistas ou abstratamente revolucionários, bem como as canções entoadas pelos milicianos. Os ataques desferidos pelos comunistas eram coisa muito diferente, e falarei deles noutra parte deste livro. Neste ponto posso apresentar apenas uma indicação resumida de sua linha de ataque.

Analisando-se superficialmente, a briga entre comunistas e o P.O.U.M. era de tática. O P.O.U.M. favorecia a revolução imediata, e os comunistas não. Até aí, tudo bem, e havia muito a ser dito por ambos os lados. Além disso, os comunistas afirmavam que a propaganda feita pelo P.O.U.M. dividia e enfraquecia as forças do Governo e, assim, punham a guerra em risco; e também nesse aspecto, embora mais tarde cu não concordasse, podia-se aceitar tais afirmações. Mas aqui entrava em cena a peculiaridade da tática comunista. Experimentalmente de início, e depois em tom mais alto, eles começaram a afirmar que o P.O.U.M. dividia as forças do Governo não por erro involuntário, mas por intuito deliberado. Afirmava-se que o P.O.U.M. não passava de uma quadrilha de fascistas disfarçados, pagos por Franco e Hitier, que instavam por uma política pseudo-revolucionâría como recurso para ajudar a causa fascista. O P.O.U.M. era uma organização "trotskísta" e a "Quinta Coluna de Franco". Isso queria dizer que muitos milhares de membros da classe trabalhadora, inclusive oito ou dez mil soldados que se enregelavam nas trincheiras da linha de frente, bem como centenas de estrangeiros que vinham à Espanha para lutar contra o fascismo, muitas vezes sacrificando seus empregos e nacionalidade para isso, eram simplesmente traidores pagos pelo inimigo. E essa história foi divulgada por toda a Espanha mediante cartazes, etc. e repetida sem cessar pela imprensa comunista e pró-comunista de todo o mundo. Eu poderia encher meia dúzia de livros com citações, se quisesse fazê-lo.

Estavam, portanto dizendo o seguinte contra nós: que éramos trotskistas, fascistas, traidores, assassinos, covardes, espiões e assim por diante. Reconheço não ser agradável receber tais nomes, ainda mais quando se pensa em algumas das pessoas responsáveis pelos mesmos - Não é coisa agradável ver um rapazinho espanhol, de quinze anos, sendo carregado da linha de frente em maca, com o rosto pálido espiando por cima dos cobertores, e pensar nas pessoas elegantes que, em Londres e Paris, escrevem panfletos destinados a provar que ele não passa de um fascista disfarçado. Um dos traços mais horríveis da guerra é que toda a propaganda guerreira, todos os gritos e mentiras e ódio, vêm invariavelmente de pessoas que não estão lutando. Os milicianos do P.S.U.C. a quem conheci na linha de frente, os comunistas da Brigada Internacional que encontrei de vez em quando, jamais me chamaram de trotskista ou traidor; deixavam essa tarefa para os jornalistas na retaguarda. As pessoas que escreviam panfletos contra nós e nos vilipendiavam nos jornais ficavam, todas elas, bem seguras em suas casas, ou quando muito nas redações de Valência, a centenas de quilômetros das balas e da lama. E à parte das calúnias da luta inter-partidária, todo o aparato comum de guerra, a fanfarra, o heroísmo, o vilipêndio ao inimigo - tudo isso era feito, como de costume, por pessoas que não estavam lutando e que, em muitos casos, prefeririam correr cem milhas numa fuga disparada a lutar. Um dos mais tristes efeitos desta guerra foi ensinar-me que a imprensa esquerdista é tão falsa e desonesta quanto a da direita.8 Tenho a impressão sincera de que em nosso lado - o lado do Governo - essa guerra foi diferente das guerras comuns, imperialistas, a julgar pela natureza da propaganda, entretanto, jamais se poderia adivinhá-lo. Mal começara a luta e já os jornais, tanto da direita quanto da esquerda, mergulhavam ao mesmo tempo na mesma sentina de despudor. Todos recordamos o cartaz divulgado pelo Daily Mail, intitulado "vERMELHOS CRUCIBICAM IRMÃS DE CARIDADE", enquanto que, para o Daily Worker, a Legião Estrangeira de Franco era composta de "assassinos, prostituidores. toxicômanos e o rebotalho de todos os países europeus". Até mesmo em outubro de 1937 o New Statesman nos brindava com narrativas de barricadas fascistas formadas com os corpos de crianças vivas (material dos mais imprestáveis para uma barricada, posso assegurar), e o Sr. Arthur Bryant declarava que serrar as pernas a um comerciante conservador" constituía "coisa comum" na Espanha legalista. As pessoas que escrevem coisas assim são gente que nunca lutou, e possivelmente acreditam que escrever é coisa capaz de substituir o lutar. É o mesmo em todas as guerras - os soldados lutam, os Jornalistas gritam e nenhum patriota verdadeiro chega perto de uma trincheira da frente, a não ser nos mais curtos passeios para fins propagandísticos.

Há ocasiões em que se torna reconfortante, para mim, pensar como o aeroplano está modificando as condições da guerra. Talvez na próxima grande guerra possamos ver alguma coisa sem precedentes em toda a história: um patrioteiro furado à bala.

No que dizia respeito à parte jornalística, essa guerra era apenas um negócio a explorar, como outro qualquer. Mas havia uma diferença: a de que enquanto os jornalistas, via de regra, reservavam suas invectivas mais mortíferas para o inimigo, neste caso e ao correr do tempo os comunistas e o P .O . U . M. passaram a escrever com mais azedume, um sobre o outro, do que sobre os fascistas. Ainda assim, não consegui levar isso muito a sério naquela ocasião. A disputa interpartidária mostrava-se incômoda e até repugnante, mas parecia uma querela doméstica. Eu não acreditava que viesse a alterar coisa alguma, ou que realmente existisse qualquer divergência política irreconciliável. Compreendia que comunistas e liberais empenhavam tudo para evitarem que a revolução seguisse sua marcha, mas não compreendia que eles a pudessem fazer recuar.

Havia bons motivos para isso. Por todo aquele tempo eu me achava na frente, e ali a atmosfera social e política não se alterara. Eu deixara Barcelona no inicio de janeiro e não tive qualquer licença senão em final de abril, e por todo esse tempo - e até período posterior - na faixa de Aragón controlada pelas tropas anarquistas e do P .0. U . M. persistiram as mesmas condições, pelo menos exteriormente. Continuava a atmosfera revolucionária como eu a vira pela primeira vez. Generais e soldados, camponeses e milicianos prosseguiam dando-se como iguais, todos recebiam a mesma paga. usavam as mesmas roupas, comiam a mesma comida e chamavam aos demais "tu" e "camarada". Não havia classe patronal, classe braçal, mendigos, prostitutas. advogados, sacerdotes, nem sabujice ou continências e zumbaias. Eu respirava o ar da igualdade. e em minha simplicidade imaginava que fosse o mesmo por toda a Espanha. Não compreendia que por uma questão de casualidade, mais ou menos, estava isolado em meio à parte mais revolucionária da classe trabalhadora espanhola.

Assim foi que quando meus camaradas com melhor educação política me disseram que não se podia adotar uma atitude puramente militar para com a guerra, e que a escolha era entre a revolução e o fascismo. eu ria deles. No todo, eu aceitava o ponto de vista comunista, que se reduzia ao seguinte: "Não podemos falar em revolução enquanto não ganharmos a guerra", e não o ponto de vista do P.O.U.M., que afirmava em sua linha básica: "Temos de tocar à frente, ou recuaremos". Mais tarde, quando resolvi que o P.O.U.M. estava certo, ou pelo menos mais certo do que os comunistas, isso não se deveu inteiramente a uma questão de teoria. No papel, a opinião comunista era boa, mas o problema é que no comportamento real eles tornavam difícil crer que a estivessem apresentando com boa fé. O refrão tão repetido, "A guerra primeiro e a revolução depois", embora fosse coisa aceita com devoção pelo miliciano comum do P .S. U. C., que sinceramente acreditava que a revolução poderia continuar quando a guerra estivesse ganha, não passava de nuvem de fumaça. Aquilo pelo que os comunistas trabalhavam não era adiar a revolução espanhola para uma ocasião mais oportuna, mas providenciar para que jamais se efetuasse. Isso foi-se tornando cada vez mais claro ao correr do tempo, enquanto o poder era cada vez mais extraído das mãos dos trabalhadores, e um número crescente de revolucionários de todos os matizes ia ter às prisões. Cada passo dado recebia a justificação da necessidade militar, porque esse pretexto já estava, por assim dizer, pronto, mas o efeito foi levar os trabalhadores a sair de uma posição vantajosa para outra na qual, quando a guerra terminasse, veriam ser impossível resistir à reintrodução do capitalismo. Peço observar que nada estou dizendo contra os comunistas comuns, e muito menos contra os milhares deles que morreram heroicamente perto de Madri. Mas aqueles não eram os homens a dirigir a política de seu partido. Quanto aos elementos em posições mais altas, é inconcebível que não estivessem agindo com os olhos muito bem abertos.

Mas, afinal, valia a pena ganhar a guerra, ainda que perdendo a revolução. E no final cheguei a duvidar de que a política comunista, a longo prazo, levasse à vitória. Pouquíssimos parecem ter refletido que uma política diferente poderia mostrar-se apropriada em períodos diferentes da guerra. Foram os anarquistas, provavelmente, que salvaram a situação nos dois primeiros meses, mas se mostraram incapazes de organizar a resistência além de certo ponto; é provável que tenham sido os comunistas que salvaram a situação em outubro-dezembro, mas ganhar a guerra de uma vez era outro caso. Na Inglaterra, a política comunista de guerra foi aceita sem perguntas, pois pouquíssimas criticas à mesma conseguiram chegar à publicidade, e porque sua linha geral - a de acabar com o caos revolucionário, acelerar a produção, militarizar o exército - parecia realista e eficiente. Vale a pena indicar suas debilidades.

A fim de deter qualquer tendência revolucionária e tornar a guerra um acontecimento tão comum quanto possível, fez-se preciso abandonar as oportunidades estratégicas que realmente existiam. Já descrevi como estávamos armados, ou desarmados, na frente de Aragón Resta pouquíssima dúvida de que as armas eram deliberadamente retidas, para que não fosse um número demasiado delas chegar às mãos dos anarquistas, que depois disso as poderiam utilizar para fins revolucionários. Por conseqüência, a grande ofensiva em Aragón, que teria feito Franco retirar-se de Bilbao e talvez de Madri jamais ocorreu. Mas isso era, por comparação, coisa de menor importância. O importante era que uma vez ter a guerra sido reduzida a uma "guerra pela democracia tornou-se impossível fazer qualquer apelo solicitando a ajuda da classe trabalhadora no exterior Se examinarmos os fatos teremos de reconhecer que a classe trabalhadora do mundo encarou a guerra espanhola com desinteresse. Dezenas de milhares de indivíduos foram lutar, mas as dezenas de milhões que não o fizeram mantiveram-se apáticas. No curso do primeiro ano de guerra todo o povo britânico, ao que se calcula, contribuiu com perto de 250.000 libras para os diversos fundos de "ajuda à Espanha" - o que provavelmente está abaixo da metade que gasta numa única semana, para ir ao cinema O modo pelo qual a classe trabalhadora nos países democráticos poderia realmente ter auxiliado seus camaradas espanhóis era pela ação industrial - greves e boicotes. Coisa nenhuma desse tipo sequer se esboçou. Os dirigentes trabalhistas e comunistas declararam por toda a parte que isso era inconcebível, e certamente tinham razão, ao mesmo tempo em que proclamavam a plenos pulmões que a Espanha "vermelha" não era "vermelha". Desde 1914-1918 essa coisa de "guerra pela democracia" adquiriu um tom sinistro. Por anos a fio os próprios comunistas ensinaram aos trabalhadores militantes em todos os países que "democracia" era um nome educado para capitalismo. E dizer inicialmente "a democracia é um roubo", e depois "lutemos pela democracia!" não chega a ser boa tática. Se, com o prestigio imenso da Rússia soviética a seu favor, eles lançassem apelos aos trabalhadores do mundo, em nome não da "Espanha democrática", mas da "Espanha revolucionária", é difícil acreditar que deixassem de obter êxito.

O mais importante, porém, é que com uma política não-revolucionária era difícil, senão impossível, atacar a retaguarda de Franco. No verão de 1937 Franco controlava uma parte da população espanhola que era mais numerosa do que a controlada pelo Governo, muito maior se contarmos as colônias, tendo mais ou menos o mesmo número de soldados. Como todos sabem, tendo-se uma população hostil às costas não é possível manter um exército em luta sem que se disponha de outro, do mesmo tamanho, para guardar as comunicações, impedir a sabotagem, etc. Tornava-se óbvio, portanto, que não existia qualquer movimento popular verdadeiro na retaguarda franquista. Era inconcebível que o povo em território controlado por Franco, pelo menos os trabalhadores urbanos e os camponeses mais pobres, gostassem dele ou o quisessem, mas a cada guinada para a direita a superioridade do Governo tornava-se menor. O que elucida tudo é o caso do Marrocos. Por que não houve qualquer levante no Marrocos? Franco procurava estabelecer uma ditadura infame, e na verdade os mouros o preferiram, e não ao Governo da Frente Popular! A verdade palpável é que tentativa nenhuma foi feita por fomentar um levante no Marrocos, porque fazê-lo representaria trazer uma construção revolucionária à guerra. A primeira necessidade, para convencer os mouros quanto à boa fé do Governo, teria sido proclamar a libertação do Marrocos. E podemos calcular como os franceses ficariam satisfeitos com isso! A melhor oportunidade estratégica da guerra foi jogada fora, na vá esperança de aplacar o capitalismo francês e inglês. Toda a tendência da política comunista era no sentido de reduzir a guerra a um conflito comum e não-revolucionário no qual o Governo se achava com bastante desvantagem, pois uma guerra desse tipo tem de ser ganha por meios mecânicos, isto é, em última análise, por suprimentos ilimitados de armas; e o maior doador de armas do Governo, a U.R.S.S., encontrava-se em grande desvantagem, pelo ponto de vista geográfico, comparado à Itália e Alemanha. Talvez o refrão do P.O.U.M. e anarquistas, "A guerra e a revolução são inseparáveis" fosse menos visionário do que parece.

 

CONTINUA NA PARTE II

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




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