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       Escuta, Zé Ninguém! 
      [parte 
        1] 
        [parte 2] 
        [parte 3] 
         
       
        Escuta, Zé Ninguém! 
      Wilhelm 
        Reich
      
       
       
        -  
          
  
            
          Amor, 
            trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida. 
             
            Deviam também governá-la. 
            
          Ó 
            respeitáveis enganadores que troçais de mim! 
            Donde brota a vossa política,  
            Enquanto o mundo for governado por vós?  
            Das punhaladas e do assassínio! 
            Charles de Coster (em Ulenspiegel) 
         -  
 
        -  
          
          
O 
            Autor: 
          Wilhelm Reich 
            nasceu a 24 de Março de 1897 nos confins orientais da Galícia, 
            então na posse do Império Austro-Húngaro. 
          Acusado de charlatanismo, 
            perseguido pelos nazistas e pelos «democratas» norte-americanos, 
            expulso do círculo de psicanalistas 
            e do Partido Comunista. Foram inúmeros os problemas que teve 
            com todos os tipos de poderes instituídos. Isso graças 
            ao vigor de seu pensamento e de sua independência frente às 
            instituições repressivas que tanto criticou. Não 
            reconheceu limites 
            na ciências, da psicologia foi pra física, pra biologia... 
            e cada campo recebeu valiosíssimas contribuições, 
            que até hoje (até 
            mesmo nas academias) não são reconhecidas e até 
            mesmo boicotadas. 
          Em 1918 matriculou-se 
            na Faculdade de Medicina de Viena, orientando o essencial dos seus 
            estudos para a Biologia, a Sexologia 
            e as teorias de Freud. No final dos anos 20 ingressa na Associação 
            Psicanalítica de Viena, onde provocará grandes controvérsias, 
            pois o seu pensamento vai-se afastando da ortodoxia freudiana e por 
            diferenças políticas. Acabará por ser expulso 
            em 1934. 
          Entretanto escreve 
            os seus primeiros livros: O Caráter Impulsivo, 1925; A Função 
            do Orgasmo, 1927; Maturidade Sexual, Continência, 
            Moral Conjugal, 1930; O Aparecimento da Moral Sexual, 1932; A Luta 
            Sexual da Juventude, 1932; Psicologia de Massa 
            do Fascismo, 1933; e Análise do Caráter, 1933. Alguns 
            deles só muitos anos mais tarde seriam devidamente apreciados. 
            Reich desenvolveu também artefatos usados na cura do câncer 
            e na diminuição dos efeitos negativos da energia nuclear.Comentários 
            sobre alguns deles: 
          - A Função 
            do Orgasmo (de 1942 e renovado em 1961) sintetiza o trabalho médico 
            e científico de Reich com o organismo 
            humano em um período de vinte anos e apresenta todo o desenvolvimento 
            desse trabalho em sua rápida progressão 
            da esfera da psicologia para a da biologia. Afirma que o orgasmo sexual 
            pleno e satisfatório é o regulador 
            biológico da harmonia vital e que as neuroses são provocadas 
            através dos bloqueios à afetividade. A descoberta 
            do orgônio (ou orgone) foi o resultado de uma profunda investigação 
            clínica do conceito de «energia psíquica», 
            a princípio na esfera da psiquiatria. A experiência tem 
            mostrado que o conhecimento das funções emocionais 
            da energia biológica é indispensável para a compreensão 
            das funções fisiológicas e físicas. 
          - Segunda obra 
            importante de Reich, Análise do Caráter, considerado 
            como o que de melhor e mais profundo se 
            havia dito sobre psicoterapia. Foi escrito para o analista e desenvolve 
            com exatidão - com numerosos exemplos clínicos 
            - sua singular técnica terapêutica - 
            Em 1953 publica O Assassinato de Cristo onde explora o significado 
            da vida de Jesus e atribui o flagelo universal 
            que causou sua agonia e morte à Peste Emocional Da Humanidade, 
            presente no Zé Ninguém. O homem se 
            defronta, através dos tempos, com a plena responsabilidade 
            pelo assassinato de Cristo: pelo assassinato do vivo, qualquer 
            que seja a forma sob a qual se apresenta. Esta é a verdade 
            crua sobre o modo real como as pessoas são, agem 
            e se emocionam. Muitas das passagens lembram a própria vida 
            de Reich, que sofreu várias perseguições e preconceitos 
            graças aos seus posicionamentos nada ortodoxos. 
          Após uma 
            viagem à Rússia, em 1929, instala-se em Berlim dois 
            anos depois. Mas a ascensão do nazismo leva-o a trocar Berlim 
            e Viena por Copenhage. Seguem-se Malmoe, Londres, Paris, Zurique, 
            Lucerna, Oslo, até chegar aos Estados Unidos, em 
            1939. A sua permanência neste país irá causar-lhe 
            dissabores que terão sido provavelmente os mais amargos da 
            sua vida agitada. 
            Logo em 1941 é preso por dois agentes do F.B.I., que lhe apreendem 
            livros como Mein Kampf (A Minha Luta), de Hitler, 
            e My Life (A Minha Vida), de Trotsky. 
          Considerado «pai» 
            das Psicoterapias Corporais, Wilhelm Reich entende o ser humano como 
            uma das expressões da energia que 
            chamou orgone, uma energia que preenche todo o espaço cósmico 
            e se expressa em diferentes concentrações, movimentos 
            e formas. 
            W. Edward Mann descreve a teoria da energia orgônica de Reich 
            e suas aplicações e mostra como elas se relacionam com 
            as atuais terapias energéticas e às teorias de outras 
            épocas e outras culturas, especialmente ao conceito hindu de 
            prana e à teoria 
            da força vital subjacente à técnica chinesa de 
            acupuntura. Reich delineou o primeiro código e a primeira gramática 
            da linguagem 
            gestual e expressiva da personalidade. Genial teórico colocou 
            os princípios de base para uma Revolução político-sexual 
            que permanece, 
            mais do nunca, necessária e exemplar. 
          Foi um dos motores 
            dos desconfortos globais juvenis (assim como Marcuse, que juntou Freud 
            e Marx, afirmando que a inibição 
            dos instintos sexuais na criança pela família é 
            o primeiro passo de uma repressão permanente. Ver: Eros 
            e Civilização e 
            O Homem Unidimensional), da geração dos 60, frente 
            ao capitalismo e às instituições autoritárias 
            regidas por velhos caquéticos. 
            Na sua obra O Combate Sexual da Juventude, defende que a conquista 
            da liberdade e de uma nova forma de vida, são 
            inseparáveis de uma livre satisfação sexual. 
            A família é o elo ideológico indispensável 
            que permite a integração da juventude 
            na sociedade capitalista graças à educação 
            repressiva que transmite. E é esta moral repressiva a responsável 
            pela maior 
            parte das perturbações na adolescência. Um dos 
            jargões do movimento estudantil da época resume bem 
            esse sentimento de 
            transgressão: «Quanto mais faço amor, mais tenho 
            vontade de fazer a revolução; quanto mais faço 
            a revolução, mais tenho vontade 
            de fazer amor. 
          Depois deste incidente, 
            Wilhelm cria o Orgone Institute na sua pequena propriedade do Maine. 
            Aí fará os seus trabalhos de 
            investigação e escreverá os últimos livros, 
            até ser julgado e condenado a dois anos de prisão, em 
            25 de Maio de 1956. 
          Recusado o apelo 
            interposto a tal sentença, Reich é preso em 12 de Março 
            de 1957. A 3 de Novembro uma crise cardíaca vitima-o 
            na penitenciária de Ludwigburg (estado da Pensilvânia). 
          Incompreendido 
            à esquerda e amaldiçoado à direita, Wilhelm Reich 
            é fundamentalmente um pensamento inconformista e autenticamente 
            revolucionário. 
         -  
 
        -  
          
          
Introdução 
          Escuta, Zé 
            Ninguém! não é um documento científico, 
            mas humano. Foi escrito no Verão de 1946, para os arquivos 
            do Instituto 
            Orgone, sem que se pensasse, então, em publicá-lo. Resultou 
            da luta interior de um cientista e médico que, durante décadas, 
            passou pela experiência, a princípio ingênua, depois 
            cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o Zé Ninguém, 
            o homem 
            comum, é capaz de fazer de si próprio, de como sofre 
            e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo 
            como assassina os seus amigos. Sempre que chega ao poder como «representante 
            do povo», aplica-o mal e transformado em 
            qualquer coisa ainda mais cruel do que o sadismo que outrora suportava 
            por parte dos elementos das classes anteriormente dominantes. 
          Escuta, Zé 
            Ninguém! representa uma resposta silenciosa à intriga 
            e à difamação. Ao ser escrito, ninguém 
            podia compreender 
            que certas entidades governamentais com missão de proteger 
            a saúde pública fossem capazes, em conluio com politiqueiros, 
            de atacar o trabalho de investigação do Instituto Orgone. 
            A tentativa, no ambiente de peste emocional de 1947, de 
            destruir o Instituto (não com provas de erro ou crime, mas 
            atacando a sua honra) levou a publicar, como documento histórico, 
            Escuta, Zé Ninguém!. 
          As circunstâncias 
            mostravam ser necessário, ao homem comum, saber o que se passa 
            nos bastidores de um laboratório científico 
            e, ao mesmo tempo, verificar o que pensa a seu respeito um psiquiatra 
            experiente. Que conheça a realidade, único modo 
            de vencer a desastrosa paixão pelo poder que tanto o obceca. 
            Que lhe seja dito, sem rebuço, que responsabilidade assume, 
            quando trabalha, ama, odeia ou difama. Que entenda como se chega ao 
            fascismo, negro ou vermelho, ambos igualmente 
            perigosos para a segurança dos vivos e para a proteção 
            de nossos filhos. Isso, não apenas porque tais ideologias, 
            vermelhas 
            ou negras, são intrinsecamente assassinas, mas também 
            por transformarem crianças saudáveis em adultos mutilados, 
            autômatos 
            e moralmente dementes. 
          Pois dão 
            preferência ao Estado sobre a justiça, à mentira 
            sobre a verdade, à guerra sobre a vida. Para o educador, para 
            o médico, 
            existe apenas uma fidelidade: ao que há de vivo na criança 
            e no doente. Se esta fidelidade for estritamente respeitada, até 
            os grandes problemas da «política externa», encontram 
            uma solução simples. 
          Esta «conversa» 
            não pretende apresentar receitas existenciais. Simplesmente, 
            descreve as tempestades emocionais por que passa 
            um homem produtivo e satisfeito. Não visa convencer, aliciar 
            ou conquistar ninguém. Visa, sim, retratar a experiência, 
            como um 
            guache pinta uma tempestade. O leitor não é chamado 
            a testemunhar-lhe simpatia. Pode ler ou não ler. Não 
            encerra quaisquer 
            intenções ou programas. Visa unicamente facultar ao 
            pesquisador e ao pensador o direito ao sentimento e a reação 
            pessoal, 
            nunca disputado ao poeta e ao filósofo. É um protesto 
            contra os desígnios secretos e ignotos da peste emocional que, 
            bem entrincheirada 
            e em segurança, vem capciosamente envenenando o investigador 
            honesto e corajoso com as suas setas ervadas. 
            Mostra como é a peste emocional, como funciona e entrava o 
            progresso. Testemunha ainda a confiança na inexplorada 
            riqueza que se oculta na «natureza humana», pronta a servir 
            as esperanças do homem.  
            
            
          Escuta, 
            Zé Ninguém! 
          Chamam-te «Zé 
            Ninguém!» «Homem Comum» e, ao que dizem, 
            começou a tua era, a «Era do Homem Comum». Mas 
            não és 
            tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, 
            os vice-presidentes das grandes nações, os importantes 
            dirigentes do proletariado, os filhos 
            da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. 
            Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado. 
          Tu és herdeiro 
            de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, 
            e sou eu que to digo. A verdade é que todo o médico, 
            sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar 
            o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há 
            algumas 
            décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar 
            no governo da Terra. O futuro.da raça humana depende, à 
            partir de agora, 
            da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem 
            os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, 
            ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia 
            tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És 
            «livre» apenas num 
            sentido: livre da educação que te permitiria conduzires 
            a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica. 
          Nunca te ouvi 
            queixar: «Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio 
            e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo 
            e não me apontam erros no que penso e faço». 
          Deixas que os 
            homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes 
            aos homens que detêm o poder, 
            quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais 
            poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces 
            que te enganaram uma vez mais. 
          Mas eu entendo-te. 
            Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, 
            sem opção, sem voto, sem aquilo que 
            fiz de ti «membro do povo». Nu como um recém-nascido 
            ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias, 
            ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. 
            Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé 
            Ninguém, 
            porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te 
            pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha 
            para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos 
            teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te: És 
            o «homem médio», o «homem comum». Repara 
            bem no significado destas palavras: «médio» e «comum». 
          Não fujas. 
            Tem ânimo e.contempla-te. «Que direito tem este tipo de 
            dizer-me o que quer que seja?» Leio esta pergunta nos teus 
            olhos-amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé 
            Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo 
            da crítica, 
            tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias 
            usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: 
            livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às 
            claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo 
            te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: «Quem sou eu 
            para ter opinião própria, para decidir da minha própria 
            vida e ter o mundo 
            por meu?» E tens razão: Quem és tu para reclamar 
            direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te. 
          Diferes dos grandes 
            homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande 
            homem foi outrora um Zé Ninguém 
            que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas 
            em que havia limitações e estreiteza no seu modo 
            de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, 
            aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez 
            e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem 
            é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. 
            O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez 
            e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez 
            e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, 
            força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, 
            mas não de si próprio. Que admira as idéias que 
            não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente 
            nas coisas 
            que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça 
            fácil de assimilar. 
          Comecemos pelo 
            Zé Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco 
            anos tomei a defesa, em palavras e por escrito, do direito 
            do homem comum à felicidade neste mundo; acusei-te pois 
            da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que 
            conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela 
            Independência americana ou na revolução russa. 
          Paris foi dar 
            a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin, 
            e a tua América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku-Klux-Klan. 
            Sabes melhor lutar pela tua liberdade que preservá-la para 
            ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não 
            entendia, porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente 
            arrastar-te para fora de um lameiro acabavas por cair noutra 
            ainda pior. Depois, pouco a pouco, às apalpadelas e olhando 
            prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU 
            O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém 
            senão tu é culpado da tua escravatura. Mais ninguém, 
            sou eu que 
            te digo! 
          Esta é 
            nova, hein? Os teus libertadores garantem-te que os teus opressores 
            se chamam Guilherme, Nicolau, papa Gregório XXVIII, 
            Morgan, Krupp e Ford. E que os teus libertadores se chamam Mussolini, 
            Napoleão, Hitler e Stalin. 
          Mas eu afirmo: 
            Só tu podes libertar-te. 
          Esta frase faz-me, 
            porém, vacilar. Intitulo-me paladino da pureza e da verdade, 
            mas agora que se trata de te dizer a verdade, 
            hesito, temendo a tua atitude em relação à verdade. 
            A verdade é um perigo para a vida quando é a ti que 
            diz respeito. 
          A verdade é 
            a salvação mas não há população 
            que não se lance sobre ela para a espoliar, de outro modo não 
            serias o que és nem 
            estarias onde estás. 
          Intelectualmente, 
            sei que devo dizer a verdade a todo o custo. Mas o Zé Ninguém 
            que se alberga em. mim adverte-me: estúpido, 
            expores-te, entregares-te, ao Zé Ninguém. O Zé 
            Ninguém não está interessado em ouvir a verdade 
            acerca de si próprio. 
            Não deseja assumir a grande responsabilidade que lhe cabe, 
            quer queira quer não. Quer permanecer o que é ou, quando 
            muito, tornar-se num desses grandes homens medíocres – ser 
            rico, chefe de um partido, da Associação dos Veteranos 
            de Guerra 
            ou secretário da Sociedade de Promoção da Moral 
            Pública. Mas assumir a responsabilidade do seu trabalho, alimentação, 
            alojamento, Transportes, educação, investigação, 
            administração pública, exploração 
            mineira, isso nunca. 
          E o Zé 
            Ninguém que se aloja dentro de mim acrescenta: «És 
            agora um grande homem, conhecido na Alemanha, Áustria, Escandinávia, 
            Inglaterra, América, Palestina. Os comunistas 
            atacam-te. Os ‘defensores dos valores culturais’ odeiam-te. Os teus 
            alunos estimam-te. Os doentes que curaste admiram-te. 
            Os que sofrem da peste emocional perseguem-te. Escreveste 12 livros 
            e 150 artigos sobre as misérias da existência, 
            sobre o sofrimento do homem comum. As tuas idéias são 
            ensinadas nas Universidades; outros grandes homens igualmente 
            solitários confirmam o teu prestígio e põem-te 
            entre os maiores intelectos da história da ciência. Fizeste 
            uma das maiores 
            descobertas científicas desde há muitos séculos, 
            a da energia cósmica da vida e suas leis. Tornaste o cancro 
            um fenômeno 
            compreensível. Por tudo isto, andaste de pais em pais por dizeres 
            a verdade. Descansa agora. Goza os frutos do teu êxito, 
            do teu prestígio. Em poucos anos o teu nome será conhecida 
            por todos. O que fizeste já basta. Recolhe-te agora ao repouso, 
            ao estudo da lei funcional da natureza». 
          Esta é 
            a conversa do Zé Ninguém dentro de mim e que te teme 
            a ti, Zé Ninguém. 
        -  
          
Durante 
            muito tempo sintonizei contigo porque conhecia a tua vida através 
            da minha própria existência e porque queria ajudar-te. 
            Mantive-me perto de ti porque via que te era útil e que aceitavas 
            o meu auxilio com prazer e, não raro, com lágrimas nos 
            olhos. Só aos poucos percebi que o aceitavas, mas que não 
            eras capaz de defendê-lo. Defendi-o e lutei para ti, por ti. 
             
             
            Foi então 
            que os teus chefes destruíram o meu trabalho e que tu os seguiste 
            em silêncio. Continuei então em comunhão contigo, 
            tentando 
            achar maneira de ajudar-te sem soçobrar quer como teu dirigente 
            quer como tua vítima. E o Zé Ninguém que reside 
            em mim tentava 
            convencer-te, «salvar-te», merecer-te o respeito que consagras 
            às «altas matemáticas» por não fazeres 
            a mínima 
            idéia do que sejam. Quanto menos entendes, mais prezas. 
            Conheces Hitler melhor que a Nietzsche, Napoleão melhor que 
            a Peslalozzi. Qualquer monarca significa mais para ti do que Sigmund 
            Freud. E o Zé Ninguém que vive em mim gostaria de 
            ter-te nas mãos pelo processo costumeiro, recorrendo ao rataplã 
            dos chefes. Eu temo-te, porém, quando o meu Zé Ninguém 
            deseja «conduzir-te 
            à liberdade». É que poderias descobrir a mesma 
            identidade medíocre em ti e em mim, e, assustado, matares-te 
            na minha pessoa. Foi por isso que deixei de ser escravo da tua liberdade 
            e desejar morrer por ela. 
          Sei que não 
            me entendes ainda quando te falo na «liberdade de ser escravo 
            de quem quer que seja», idéia que não é 
            fácil. 
          Para não 
            ser escravo fiel de um único senhor, e ser escravo de todos, 
            ter-se-á em primeiro lugar que matar o opressor, digamos, por 
            exemplo, o Czar. Este crime político nunca poderia ser perpetrado 
            sem um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários. 
            É, portanto, necessário fundar um partido revolucionário 
            de liberdade sob a égide de um homem verdadeiramente 
            grande, seja ele Jesus Cristo, Marx, Lincoln ou Lenin. Claro está 
            que este grande homem tomará a tua liberdade 
            muito a sério. Para a impor, terá que rodear-se de uma 
            multidão de homens menores, ajudantes e moços de recados, 
            dada a imensidade 
            de tarefa para um só homem. Tu não, irias entendê-lo, 
            e deixá-lo-ias de lado, se ele se rodeasse de gente um pouco 
            superior. Assim escudado, ele conquista para ti o poder, ou uma parcela 
            da verdade, ou uma nova e melhor crença. 
          Escreve evangelhos, 
            promulga leis liberais, e conta com o teu apoio, seriedade e prontidão. 
            Arranca-te do lameiro social onde te 
            encontras imerso. Para manter solidários os muitos acólitos 
            de menor talhe, para conservar a tua confiança, o homem verdadeiramente 
            grande sacrifica pouco a pouco a sua grandeza que ele só pôde 
            cultivar na sua profunda solidão espiritual, longe 
            de ti e do teu bulício quotidiano mas em estreito contacto 
            com a tua vida. Para te poder guiar, terá de conseguir que 
            o transformes 
            num Deus inacessível, pois que jamais obteria a tua confiança 
            se permanecesse o simples homem que é, um homem 
            a quem fosse, por exemplo, possível amar uma mulher sem estar 
            casado com ela. E assim engendras um novo amo. 
          Promovido ao seu 
            novo papel senhorial, eis que o grande homem mingua, pois que a grandeza 
            lhe estava na inteireza, simplicidade, 
            coragem e proximidade da vida. Os seus medíocres acólitos, 
            grandes mercê da aura dele, assumem os altos cargos 
            das finanças, da diplomacia, do governo, das ciências 
            e das artes – e tu ficas onde estavas: no lameiro, pronto a 
            esfarrapares-te 
            novamente em nome do «futuro socialista» ou do «Terceiro 
            Reich». Continuarás a viver em barracas com telhados 
            de palha e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus 
            palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que 
            governas 
            – até que sobrevenha a próxima guerra e a queda 
            dos novos tiranos. 
          Em países 
            distantes, homens medíocres estudaram com afinco a tua ânsia 
            de ser escravo e descobriram como tornar-se grandes 
            homens medíocres com um mínimo de esforço intelectual. 
            Esses homens vêm das tuas fileiras, nunca habitaram palácios. 
            Passaram fome e sofreram como tu - mas aprenderam a encurtar o processo 
            de mudança dos chefes.  
            Aprenderam que 
            cem anos de árduo trabalho intelectual em prol da tua liberdade, 
            de grandes sacrifícios pessoais pelo teu bem-estar, de holocausto 
            até da vida nos interesses da tua libertação, 
            eram preço demasiado alto pela tua próxima nova escravatura. 
            Tudo o que 
            pudesse haver sido elaborado ou sofrido em 100 anos de vida de grandes 
            pensadores podia ser destruído em menos de cinco 
            anos. Os homúnculos da tua estirpe aprenderam, assim, a abreviar 
            o processo: fazem-no mais aberta e brutalmente. E dizem-te 
            sem rebuços que tu, a tua vida, os teus filhos e a tua família 
            não contam, que és estúpido e subserviente e 
            que podem fazer 
            de ti o que lhe aprouver. E em vez de liberdade pessoal prometem-te 
            liberdade nacional. Não te prometem dignidade pessoal 
            mas respeito pelo Estado; grandeza nacional em vez de grandeza pessoal. 
            E como «liberdade pessoal» e «grandeza» são 
            para ti apenas conceitos estranhos e obscuros, enquanto «liberdade 
            nacional» e «interesses do Estado» são palavras 
            que te enchem 
            a boca, como ossos que fazem nascer a água na boca de um cão, 
            não há amém que não lhes dê. Nenhum 
            desses homens 
            medíocres paga pela liberdade autêntica o preço 
            que pagaram Giordano Bruno, Cristo, Karl Marx ou Lincoln. Nem tu lhes 
            interessas a ponta de um chavelho. Desprezam-te como tu te desprezas, 
            Zé Ninguém. E conhecem-te bem, muito melhor do 
            que um Rockefeller ou os Conservadores. Conhecem os teus podres como 
            só tu próprio os devias conhecer. Sacrificam-te a 
            um símbolo e és tu próprio quem lhes confere 
            o poder que exercem sobre ti. Ergueste tu próprio os teus tiranos, 
            e és tu quem os 
            alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez 
            por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és 
            uma 
            criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim 
            deverás permanecer. E tu nomeia-los novos «salvadores» 
            e dá-lhes «vivas». 
          É por isso 
            que eu tenho medo de ti, Zé Ninguém, um medo sem limites. 
            Porque é de ti que depende o futuro da humanidade. 
            E tenho medo de ti. porque não existe nada a que mais fujas 
            do que a encarar-te a ti próprio., Estás doente, Zé 
            Ninguém, 
            muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti 
            que cabe libertares-te da tua doença. Já há muito 
            que terias derrubado 
            os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão 
            e não a apoiasses tu próprio. Nenhuma força policial 
            do mundo 
            poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito 
            por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses 
            aprofunda convicção de que, sem o teu esforço, 
            a vida sobre a terra não seria possível por nem uma 
            hora mais. Será que 
            o teu «libertador» te disse? Qual quê! Chama-te 
            «Proletário do Mundo», mas não te dizem 
            que tu, e só tu, és responsável pela 
            tua vida (em vez de seres responsável pela «honra 
            da pátria»). 
          Terás que 
            entender que és tu quem transforma homens medíocres 
            em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes; 
            que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não 
            te ralas absolutamente nada com os seus esforços e 
            as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor idéia 
            de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude 
            de que gozas 
            na vida. 
          Dizes: «Antes 
            de confiar em ti, gostaria de saber qual a tua filosofia da vida.» 
            Quando souberes a minha filosofia da vida vais 
            a correr ao presidente da Câmara, ou ao «Comitê 
            contra as Atividades Antiamericanas», ou ao F.B.I., ao G.P.U. 
            ou à imprensa 
            sensacionalista, ou à Ku Klux Klan, ou aos «Líderes 
            dos Proletários de Todo o Mundo», ou pura e simplesmente 
            safas-te: 
          Não sou 
            um Vermelho, nem um Branco, nem um Negro, nem um Amarelo. 
          Não sou 
            nem cristão, nem judeu, nem maometano, mórmon, homossexual, 
            polígamo, anarquista ou membro de seita secreta. 
          Faço amor 
            com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha 
            um certificado de casamento ou para satisfazer as 
            minhas necessidades sexuais. 
          Não bato 
            nas crianças, não vou à pesca e não mato 
            veados nem coelhos. Mas não atiro mal e gosto de acertar no 
            alvo. 
          Não jogo 
            brídge, não dou festas com o fito de divulgar as minhas 
            teorias. Se o que penso é correto divulgar-se-á por 
            si próprio. 
          Não.submeto 
            o meu trabalho às autoridades oficiais de saúde, a não 
            ser que elas possam entendê-lo melhor do que eu. E sou 
            em quem decide quem pode manejar o conhecimento e as particularidades 
            da minha descoberta. 
          Observo estritamente 
            o cumprimento das leis quando fazem sentido, e luto contra elas quando 
            obsoletas ou absurdas. (Não corras 
            já para o presidente da Câmara, Zé Ninguém, 
            porque se ele for um homem decente faz o mesmo.). 
          Desejo que as 
            crianças e os adolescentes experimentem com o corpo a sua alegria 
            no prazer tranqüilamente. 
          Não creio 
            que para ser religioso no sentido genuíno da palavra seja necessário 
            destruir a vida afetiva e tornar-se crispado e encolhido 
            de corpo e de espírito. 
          Sei que aquilo 
            a que chamas «Deus» existe, mas de forma diferente da 
            que pensas: é a energia cósmica primordial do Universo, 
            tal como o amor que anima o teu corpo, a tua honestidade e o teu sentimento 
            da natureza em ti ou à tua volta. 
          Ponho na rua quem 
            quer que seja que, sob qualquer pretexto insignificante, tente interferia 
            no meu trabalho clínico e pedagógico 
            com doentes ou crianças. Confrontá-lo-ia em tribunal 
            com algumas perguntas simples e claras a que não lhe seria 
            possível 
            responder sem cobrir a cara de vergonha para o resto da vida. Porque 
            eu sou um homem de trabalho que sabe o que um 
            homem é por dentro, que sabe o que o outro vale e que deseja 
            que seja o trabalho a governar o mundo, e não as opiniões 
            sobre o 
            trabalho. Tenho a minha opinião e sei distinguir uma mentira 
            da verdade que quotidianamente emprego como instrumento 
            e que sei manter limpo após uso. 
          Tenho muito medo 
            de ti, Zé Ninguém, um enorme e profundo medo, e nem 
            sempre foi assim. Eu já fui um Zé Ninguém entre 
            milhões de outros. Hoje, como cientista e psiquiatra, sei ver 
            que és doente e perigoso na tua doença. Aprendi a reconhecer 
            o fato de que é a tua doença emocional que te destrói 
            minuto a minuto, e não qualquer poder exterior. Há muito 
            já que 
            terias suprimido os tiranos se estivesses vivo e são no teu 
            íntimo. Hoje em dia os teus opressores vêm das tuas próprias 
            fileiras, 
            tal como outrora vinham dos estratos mais altos da hierarquia social. 
            Ainda são mais medíocres do que tu, Zé Ninguém. 
            Porque, tendo conhecido por experiência a tua miséria, 
            é necessária muita mediocridade para utilizar esse conhecimento 
            com vista à tua supressão ainda mais perfeita e eficaz. 
          Tu não 
            tens sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande. 
            O seu modo de ser, o seu sofrimento, as 
            suas aspirações, raivas e lutas. em teu nome são-te 
            completamente alheios. Nem sequer entendes que existem homens e mulheres 
            incapazes de suprimir-te ou explorar-te e que genuinamente desejam 
            que sejas livre, real o verdadeiramente livre. 
          Nem. te agradam, 
            porque são de outra natureza. São simples e diretos; 
            para eles, a verdade corresponde às tuas tácticas. 
          Vêem-te 
            à transparência, não em derisão, mas em 
            mágoa pelo destino dos homens. Mas tu sentes apenas que olham 
            através de ti, 
            e tens medo. Só os aclamas, Zé Ninguém, quando 
            muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes 
            homens são grandes. 
            Tens medo deles, do tão perto que estão da vida e do 
            amor que lhe têm. O grande homem ama-te simplesmente como 
            criatura humana, ser vivo. 
          Deseja apenas 
            que cesse o teu sofrimento milenar. Que cales o teu milenar cacarejo. 
            Que não mais sejas besta de carga como 
            o tens sido, porque ama a vida e desejaria vê-la liberta do 
            sofrimento e da ignomínia. És tu que levas os homens 
            verdadeiramente 
            grandes a desprezarem-te, a retirarem-se com tristeza do teu convívio 
            medíocre, a evitarem-te e, pior de tudo, a 
            terem compaixão de ti. Se fosses psiquiatra, Zé 
            Ninguém, um Lombroso, por exemplo, tentarias esmagá-los 
            como a criminosos 
            irrecuperáveis ou psicóticos. Porque os objetivos da 
            vida dum grande homem são diversos dos teus - não consistem 
            na acumulação. 
            de bens, nem no casamento socialmente adequado das filhas, nem na 
            sua carreira política, nem na obtenção de honras 
            acadêmicas ou do Prêmio Nobel. E porque não é 
            como tu, chamas-lhe «gênio» ou «excêntrico». 
            Mas o grande homem apenas 
            se reserva o direito de ser um ser humano. Chamas-lhe «a-social», 
            porque prefere o seu gabinete de trabalho ou o seu laboratório, 
            a sua linha de pensamento e o seu trabalho às tuas festinhas 
            ridículas e destituídas de sentido. Chamas-lhe louco 
            porque prefere 
            gastar o seu dinheiro na investigação científica 
            em vez de comprar ações ou outros bens. Na tua degenerescência, 
            Zé Ninguém, ousas considerá-lo como «anormal» 
            o homem simplesmente reto, pois que o comparas contigo, o 
            protótipo da «normalidade», o «homo normalis». 
            Ao medi-lo com a tua medida estreita não lhe encontras as dimensões 
            da tua normalidade. 
            Nem entendes, Zé Ninguém, que és tu que o afastas 
            das tuas reuniõezinhas sociais, que apenas lhe são insuportáveis, 
            quer nas tabernas quer nos salões de baile, porque te ama e 
            deseja genuinamente auxiliar-te. O que o torna aquilo 
            que é após várias décadas de sofrimento? 
            Tu, na tua irresponsabilidade, na tua tacanhez, na tua incapacidade 
            de refletir, e 
            os teus «axiomas eternos» que não sobrevivem a 
            dez anos de progresso social. Lembra-te.apenas de todas as coisas 
            que tomaste 
            por certas durante os escassos anos que decorreram entre a primeira 
            e a segunda guerra mundiais. Quantas reconheceste 
            como erradas, de quantas foste capaz de te retratar? De nenhumas, 
            Zé Ninguém. Porque o homem realmente maior 
            pensa cautelosamente, mas quando se apropria de uma idéia, 
            pensa a longo prazo. E és tu, Zé Ninguém, que 
            fazes do grande 
            homem um paria quando o seu pensamento correto e duradouro 
            enfrenta a mesquinhez e a precariedade das tuas convicções. 
            És tu que o condenas à solidão, não à 
            solidão que gera grandes obras, mas à solidão 
            do temor da incompreensão e do 
            ódio. Porque tu és «o povo», a «opinião 
            pública» e a «consciência social». 
            Já alguma vez pensaste na responsabilidade gigantesca 
            que estes atributos te conferem, Zé Ninguém? Já 
            alguma vez perguntaste a ti próprio se pensas corretamente, 
            quer do 
            ponto de vista da trajetória social onde estás inserido, 
            quer da natureza, quer até do acordo com os atos humanos de 
            uma figura 
            como, por exemplo, a do Cristo? Não, Zé Ninguém, 
            nunca te inquietaste com a possibilidade do que pensas estar errado, 
            mas sim com o que iria pensar o teu vizinho ou com o preço 
            possível da tua honestidade. Foram estas as únicas questões 
            que puseste a ti próprio. 
          E depois de condenares 
            o grande homem à solidão é ainda teu hábito 
            esquecê-lo. Segues o teu caminho, perorando outras asneiras, 
            cometendo outras baixezas, ferindo de novo.  
          -   
 
        -  
          
Esqueces. Mas 
            é da natureza do grande homem não esquecer nem vingar-se, 
            mas tentar entender A INCONSISTÊNCIA DO TEU COMPORTAMENTO. 
          Sei que também 
            te é estranho que assim seja. Podes crer, porém, que 
            o sofrimento que infliges tantas vezes inconscientemente 
            - e que quantas vezes logo esqueces - é para o grande homem, 
            mesmo se incurável, motivo de reflexão em teu 
            nome, não pela grandeza dos teus atos vis, mas exatamente pela 
            sua pequenez. E é ele quem se interroga sobre o que te leva 
            a maltratar o marido ou a mulher que te desapontou, a torturar os 
            teus filhos porque desagradam a vizinhos odiosos, a desprezar 
            e explorar alguém só porque é bondoso; a receber 
            quando te dão e a dar quando te exigem, mas nunca a dar quando 
            o 
            que te é dado o é por amor; a bater em quem já 
            está de rastos; a mentir quando te é pedida a verdade 
            e a persegui-la bem mais 
            do que à mentira. Zé Ninguém, tu estás 
            sempre do lado dos opressores. Para que o estimasses e te caísse 
            em graça, o grande 
            homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém, 
            falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é 
            que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse 
            da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples. 
            Prova é que os teus amigos que dizem exatamente o que esperas 
            que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não 
            acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja 
            de grande. No mais intimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo 
            quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade; 
            e se te desprezas, como poderias respeitar os teus 
            amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer fosse que se sentasse 
            à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse 
            realizar o que quer que fosse de grandioso. 
          Perto de ti é 
            difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível 
            pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas 
            qualquer pensamento 
            original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças 
            que exploram o seu mundo: «Isso não é próprio 
            para crianças».Como 
            um professor de biologia, dizes: «Isso não é coisa 
            para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?» 
            Como um professor primário, dizes: «As crianças 
            são para ser vistas, e não para se ouvirem».Como 
            uma mulher casada, dizes: 
            «Há! A investigação! Eu e a tua investigação! 
            Porque é que não vais para um escritório, como 
            toda a gente, ganhar decentemente 
            a tua vida?» Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas, 
            quer percebas quer não. 
          Garanto-te, Zé 
            Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo. 
            Morre de sufocação às tuas mãos, em ti 
            e onde quer 
            que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu 
            marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre 
            e queres 
            continuar a sê-lo. 
          Perguntas-me como 
            sei eu tudo isto? Eu digo-te: 
          Conheço-te. 
            Experimentei-te e experimentei-me contigo. Como terapeuta libertei-te 
            da tua mesquinhez, como educador orientei-te 
            no sentido da espontaneidade, da confiança. Sei como te defendes 
            da espontaneidade, sei o terror que te toma quando 
            te pedem que sejas tu próprio, autêntico e genuíno. 
          Eu sei que não 
            és apenas medíocre, Zé Ninguém. 
            Sei que também tens as tuas grandes horas na vida, momentos 
            de «júbilo» 
            e «exaltação», de «vôo». 
            Mas falta-te a coragem para subir cada vez mais alto, para manter 
            a tua própria exaltação. 
          Tens medo de altos 
            vôos, medo da altura e da profundidade, Nietzsche já 
            te disse isto muito melhor, há muitos anos já. Só 
            que não 
            te disse porque é que és assim. Tentou transformar-te 
            num super-homem, um Übermensch que superasse o que tens 
            de humano. 
            O Übermensch (Além-Homem ou Super-Homem) tornou-se 
            «Führer Hitler». Tu permaneceste Üntermensch. 
            Eu gostaria 
            apenas que fosses tu próprio. Tu próprio, em 
            vez do jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho. 
            Sei que não sabes o 
            que és e como és em profundidade. Sei que em profundidade 
            és como o animal acossado, como o teu próprio Deus, 
            como o poeta 
            ou o sábio. Mas crês ser o membro da Legião ou 
            do teu clube ou da Ku Klux Klan. E como crês sê-lo, ages 
            em conseqüência. 
            Também isto já foi dito por outros: Heinrich Mann, na 
            Alemanha, há vinte e cinco anos, Upton Sinclair, Dos Passos 
            e outros, nos Estados Unidos. Mas tu nunca ouviste falar de Mann ou 
            de Sinclair. Só conheces os campeões de boxe e Al 
            Capone. Se tivesses de escolher entre o ambiente de uma biblioteca 
            e o de uma taberna, escolhias o da taberna. 
          Exiges que a vida 
            te conceda a felicidade, mas a segurança é-te mais importante, 
            ainda que custe a dignidade ou a vida. 
          Como nunca aprendeste 
            a criar felicidade, a gozá-la e a protegê-la, não 
            conheces a coragem do indivíduo reto. Queres saber o que 
            és, Zé Ninguém? Ouve os anúncios publicitários 
            dos teus laxantes, das tuas pastas de dentes e desodorizantes. Mas 
            não ouves 
            a música da propaganda. Não distingues a abissal estupidez 
            e o mau gosto de coisas que se destinam a ficar-te no ouvido. 
            Já alguma vez prestaste atenção às piadas 
            que o intelectualóide larga a teu respeito nas revistas? Piadas 
            sobre ti e sobre 
            ele, piadas de um mundo reles e desgraçado. Escuta a tua publicidade 
            aos laxantes e saberás o que és. 
          Escuta, Zé 
            Ninguém: a miséria da existência humana é 
            visível à luz de cada um destes pequenos horrores. Cada 
            ato mesquinho 
            teu faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa 
            restar quanto ao teu futuro. E sentes isto tão penosamente 
            que, para não o saberes, inventas graças de mau gosto 
            e chamas-lhes «humor popular». Ouves a piada que te humilha 
            e ris-te com os outros. Ris-te do Zé Ninguém, sem entender 
            que é de ti que te ris, tal como milhões de outros Zés 
            Ninguéns. 
            Já alguma vez perguntaste a ti próprio por que razão 
            dá espaço ao longo dos séculos à tal brincadeira 
            maliciosa? Já alguma 
            vez te chocou até que ponto «as pessoas» são 
            ridículas nos filmes? Vou tentar dizer-te por que razão 
            és ridículo e vou dizer-te 
            porque te levo muito, mesmo muito, a sério: 
          Consegues sempre 
            faltar à verdade naquilo que pensas, à imagem do excelente 
            atirador que, se assim o quiser, consegue acertar 
            sempre mesmo abaixo do centro do alvo. Há já muito que 
            poderias ser senhor de ti próprio, se tentasses pensar corretamente. 
            Só que tu pensas assim: 
          «A culpa 
            é dos judeus». «Que é um judeu?» – 
            pergunto eu. «São pessoas com sangue judeu» – respondes. 
            «Qual é a diferença 
            entre o sangue judeu e o outro?» Aqui estacas, hesitas, ficas 
            confuso e respondes: «Quero dizer, dá raça dos 
            judeus».»Que 
            é raça?» – pergunto eu. «Raça? É 
            simples, assim como existe uma raça germânica, existe 
            a raça dos judeus». 
          «Que é 
            que caracteriza a raça dos judeus?» «Bom, um judeu 
            tem cabelos pretos, tem uma bossa no nariz e olhos muito vivos». 
          Os judeus são 
            avarentos e capitalistas.» «Já alguma vez viste 
            um francês do Sul ou um italiano ao Pé dum judeu? Sabes 
            distinguí-los?» 
            «Lá isso não sei assim muito bem» «Bom, 
            então que é um judeu? As análises de sangue não 
            mostram qualquer diferença, 
            não se distingue de um francês ou de um italiano. E já 
            alguma vez viste judeus alemães?» «Já, pois, 
            parecem alemães.» 
            «E que é um alemão?» «Um alemão 
            pertence à raça ariana nórdica.» «Os 
            Índios são arianos?» «São.» 
            «E são nórdicos?» 
            «Não.» «E loiros?’ «Não.» 
            «Bom, então não sabes o que é um alemão 
            e o que é um judeu.» «Mas há judeus.» 
            «Pois há, 
            tal como há cristãos e maometanos.» «Eu 
            refiro-me à religião judaica.» «Roosevelt 
            era holandês?» «Não.» «Então 
            porque é que 
            chamas judeu a um descendente de David, se não chamas holandês 
            ao Roosevelt?» Com os judeus é diferente. «Em que 
            é que 
            é diferente?» «Não sei.» 
          E é assim 
            que tu desatinas, Zé Ninguém. E sobre os teus desatinos 
            levantas exércitos capazes de assassinar dez milhões 
            de pessoas, 
            porque são «judeus», sem que tu saibas sequer dizer 
            o que é um judeu. E é por isso que és ridículo, 
            que o melhor é evitar-te 
            quando se tem alguma coisa de sério para fazer, é por 
            isso que permaneces no lameiro. Quando dizes «judeu» sentes-te 
            superior. 
            E és forçado a dizê-lo pela tua própria 
            miséria, pois o que matas no judeu é o que sentes que 
            tu próprio és. Mas isto 
            é apenas uma ínfima parcela da tua verdade, Zé 
            Ninguém. 
          Quando dizes «judeu» 
            cheio de arrogância e desprezo sentes menos a tua própria 
            mesquinhez. Só recentemente me dei conta 
            de que assim era. Só chamas «judeu» a quem suscita 
            muito pouco ou demasiado o teu respeito. A tua concepção 
            de «judeu» 
            é perfeitamente arbitrária. Só que eu não 
            te dou o direito a usá-la, quer tu sejas judeu ou ariano. Só 
            eu próprio tenho o direito 
            a determinar quem sou. Biológica e culturalmente sou um rafeiro 
            e orgulho-me de ser o produto intelectual e físico de todas 
            as classes, raças e nações, orgulho-me de 
            não pertencer a uma «raça pura», como tu, 
            de não pertencer a uma «classe pura», 
            de não ser chauvinista como tu, um fascistinha de todas as 
            nações, raças e classes. Constou-me que em Israel 
            rejeitaste um 
            técnico judeu pelo simples fato de não ser circuncidado. 
            Não tenho mais afinidades com os judeus fascistas do que com 
            quaisquer 
            outros. Porque recuas apenas até Sem, e não até 
            ao protoplasma? A vida para mim tem início nas contrações 
            plasmáticas, 
            e não no escritório de um rabi. 
          Levou milhões 
            de anos a tua evolução de água-viva a bípede 
            terrestre. A tua aberração biológica sob a forma 
            de rigidez dura 
            apenas há seis mil anos. Levará cem ou quinhentos ou 
            talvez cinco mil anos até que redescubras em ti a natureza, 
            a célula inicial. 
            Eu descobri em ti a água-viva e, quando me ouviste pela primeira 
            vez, chamaste-me gênio. Foi na Escandinávia, andavas 
            tu à procura de um novo Lenin. Mas eu tinha coisas mais importantes 
            a fazer e declinei a função. 
          Também 
            me proclamaste novo Darwin, ou Marx, ou Pasteur, ou Freud. Disse-te 
            já há muitos anos que também tu poderias falar 
            e escrever como eu, se não passasses a vida a saudar os novos 
            messias. Porque os teus gritos destroem-te a razão e paralisam 
            a tua natureza criadora. 
          Não és 
            tu que persegues a «mãe solteira» como uma criatura 
            imoral, Zé Ninguém? Não és tu que estabeleces 
            uma distinção 
            severa entre as crianças «legítimas» e as 
            crianças «ilegítimas?» Pobre criatura, que 
            não entendes as tuas próprias palavras 
            - ou não és tu que veneras o Cristo enquanto criança? 
            Cristo menino, que nasceu de uma mãe que não possuía 
            certificado 
            de casamento? Sem fazeres idéia de que assim seja, como.veneras 
            no Cristo criança o teu desejo de liberdade sexual! 
            Fizeste do Cristo criança, nascido ilegitimamente, o filho 
            de Deus, que não reconhece a ilegitimidade de crianças. 
          Para logo em seguida, 
            como Paulo [N.E.], o Apóstolo, perseguir os filhos nascidos 
            do amor e proteger sob a alçada das leis religiosas os 
            nascidos do ódio. És realmente um desgraçado, 
            Zé Ninguém! 
          Os teus automóveis 
            e comboios atravessam as pontes que o grande Galileu inventou. Sabias, 
            Zé Ninguém, que o grande Galileu 
            teve três filhos sem qualquer certificado de casamento? Isso 
            não dizes tu às crianças da escola. E não 
            foi também por isso 
            mesmo que o submeteste à tortura? 
          Sabias, Zé 
            Ninguém, que, na «Pátria dos Povos Eslavos», 
            o, teu grande Lenin, pai dos proletários de todo o mundo, ao 
            tomar o 
            Poder aboliu o casamento compulsivo? E sabias que ele próprio 
            viveu com a mulher sem certificado de casamento? E foi 
            então que pela mão do chefe de todos os Eslavos restabeleceste 
            as leis referentes à obrigatoriedade do casamento, porque não 
            sabias que havias de fazer da liberdade que te fora concedida por 
            Lenin. 
          Mas o que é 
            que tu sabes de tudo isto, tu que não fazes a mínima 
            idéia do que seja a verdade, ou a história, ou a luta 
            pela liberdade? 
            Quem és tu para teres opinião própria? 
          Nem sequer te 
            apercebes de que a opressão das leis que regulam a tua vida 
            matrimonial decorre naturalmente do teu espírito 
            pornográfico e da tua irresponsabilidade sexual. 
          Sentes-te infeliz 
            e medíocre, repulsivo, impotente, sem vida, vazio. Não 
            tens mulher e, se a tens, vais com ela para a cama só 
            para provar que és «homem». Nem sabes o que é 
            o amor. Tens prisão de ventre e tomas laxantes. Cheiras mal 
            e a tua pele é 
            pegajosa, desagradável. Não sabes envolver o teu filho 
            nos braços, de modo que o tratas como um cachorro em quem se 
            pode bater 
            à vontade. A tua vida vai andando sob o signo da impotência, 
            no que pensas, no teu trabalho. A tua mulher abandona-te 
            porque és incapaz de lhe dar amor. Sofres de fobias, nervosismo, 
            palpitações. O teu pensamento dispersa-se em ruminações 
            sexuais. Falam-te de economia sexual. Algo que te entende e poderia 
            ajudar-te. Que te permitiria viveres à noite a 
            tua sexualidade e que te deixaria livre durante o dia para 
            pensar e trabalhar. 
             
             
            [segue 
            na Parte II] 
         -  
 
        -  
          
 
          
        - Nota 
          do Editor: Segundo as narrativas do Novo Testamento 
          talvez fosse mais correto chamar o temido perseguidor 
          dos «filhos do amor», ou «protetor dos filhos do ódio» 
          pelo nome Saulo, 
          e não Paulo, como faz Reich. Até pouco tempo depois do 
          assassinato de Estevão, Saulo, então proeminente líder 
          fariseu, como seus pares, apesar de ter conhecido Jesus «em sua 
          vida corpórea» (2 Cor. 5.16), olhava-o com desconfiança não 
          apenas pelas críticas que fazia a determinadas ordenanças, como as regras 
          do sábado sagrado, do jejum, da própria lei e da tradição, desconfiava 
          também das críticas que Jesus fazia diretamente aos própios 
          rabinos e membros da seita. Esses líderes religiosos judaicos 
          enviaram uma delegação para observar Jesus na Galiléia. A finalidade 
          era óbvia: acusá-lo de traição, se condenado, seria crucificado, 
          «pendurado no madeiro», uma morte especialmente amaldiçoada pela Lei 
          ( Deut. 21.23). Se Jesus fosse de Deus, seguramente seria salvo: Deus 
          não o deixaria sofrer danação: então seria salvo e retirado da 
          cruz. Talvez muitos dos discípulos de Jesus, como o próprio Judas Escariotes, 
          podem ter compartilhado desta convicção. Saulo sustentou os insultos 
          dos acusadores de Jesus no Calvário e os desafios dos rabinos «Seu Messias! 
          Seu Rei de Israel! Desça da Cruz e nos creremos». Deus não interveio 
          e o veridito não poderia ser outro: Jesus era maldito, sua reivindicação 
          era falsa. Seus seguidores deveriam ser destruídos. O vigor da perseguição 
          lançada sobre os discípulos de Jesus expressa a amargura da decepção 
          de Saulo. O brutal assassinato de Estêvão, que ocorreu bem na sua frente, 
          intensificou ainda mais a violência de sua agressão. Foi quando ocorreu 
          a súbita e desgastante experiência da presença e da atração de Jesus 
          no caminho de Damasco, (em suas próprias palavras, veja 1 Cor. 15.8) 
          onde a conversão foi imediata -- daí passou a chamar-se Paulo, 
          colocando-se ao lado dos «filho 
          do amor» e contra os «filhos do ódio». 
          Vide Comunalismo 
          Cristão, pág. 54 em diante.
      
   
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