Escuta, Zé Ninguém

[parte 1]
[parte 2]
[parte 3]

Que te faria ter nos braços uma mulher sorridente em vez de desesperada, ver os teus filhos sãos em vez de pálidos, amorosos em vez de cruéis. Mas quando ouves falar de economia sexual dizes: «O sexo não é tudo. Há outras coisas importantes na vida». És assim, Zé Ninguém.

Ou suponhamos que és um «marxista», um «revolucionário profissional», um futuro «dirigente dos Proletários do Mundo».

Dizes querer libertar as massas do seu sofrimento. As massas enganadas fogem-te desiludidas e tu gritas enquanto corres no seu encalço: «Parai, massas proletárias! Sou o vosso libertador! Abaixo o capitalismo!» Enquanto eu falo às massas, pequeno-revolucionário, e lhes digo da miséria das suas. pequenas vidas. Ouvem-me, com entusiasmo e esperança. Acorrem às tuas organizações onde esperam encontrar-me. É, então que dizes: «A sexualidade é uma invenção pequeno-burguesa. O que conta é o fator econômico». E lês os livros de Van de Velde sobre técnicas sexuais.

Quando um grande homem dedicou a sua vida a tentar dar à tua emancipação econômica uma base científica, deixaste-o morrer de fome. Mataste a primeira via de verdade que surgiu no teu desvio das leis da vida. Quando a sua primeira tentativa foi bem sucedida, tomaste-lhe as rédeas da administração e cometeste segundo crime. Da primeira vez, o grande homem dissolveu a organização. Da segunda, estava já morto e nada podia contra ti. Não entendeste que ele havia descoberto no teu trabalho o poder de vida que cria os valores. Não entendeste que a sua reflexão sociológica pretendia. ser a salvaguarda da tua sociedade contra o teu Estado.

Não entendes nada!

E mesmo com os teus fatores econômicos não vais longe. Outro grande homem matou-se a trabalhar para provar-te que terás de melhorar as tuas condições econômicas para que a tua vida tenha sentido e gosto; que indivíduos com fome jamais farão progredir a cultura; que todas as condições de vida terão de ter lugar aqui e agora, sem exceção, que terás de emancipar-te, tu e a tua sociedade, de todas as formas de tirania. Este outro grande homem apenas cometeu um erro ao tentar esclarecer-te: acreditou deveras na tua capacidade de emancipação. Acreditou que uma vez conquistada a tua liberdade serias capaz de a preservar. E cometeu ainda outro erro: consentir que tu, proletário, te tornasses «ditador».

E sabes o que tu fizeste, Zé Ninguém, do manancial de sabedoria e criação que te legou este homem? Apenas guardaste no ouvido uma palavra: ditadura. De tudo o que te doara um grande espírito e um grande coração apenas uma palavra restou: ditadura! Tudo o mais deitaste fora, a liberdade, a clareza e a verdade, a solução dos problemas da servidão econômica, a metodologia da planificação do futuro - tudo pela borda fora! E apenas a escolha infeliz, embora bem intencionada, de só uma palavra, te caiu em graça: ditadura!

Sobre esta pequena negligência de um grande homem construíste todo um sistema gigantesco de mentiras, perseguição, tortura, deportações, enforcamentos, polícia secreta, espionagem e denúncia, uniformes, marechais e medalhas - enquanto deitavas fora tudo o mais. Começas a perceber como funcionas, Zé Ninguém? Ainda não? Ora tentemos novamente: As «condições econômicas» do teu bem-estar na vida e no amor, confundiste-as com «mecanização»; a emancipação dos homens, com «grandeza do Estado»; o levantamento das massas, com o desfilar da artilharia; a libertação do amor, com a violação de todas as mulheres a que pudeste deitar a mão ao chegar à Alemanha; a eliminação da pobreza, com a erradicação dos pobres, dos fracos e dos desadaptados; a assistência à infância, com a «formação de patriotas»; o controle da natalidade, com medalhas às «mães de dez filhos». Não tinhas já sofrido bastante, com esta tua idéia da «mãe de dez filhos»?

Mas também noutros países o infeliz vocábulo «ditadura» te ficou no ouvido. Aí, vestiste-o de uniformes resplandecentes e geraste no teu próprio seio o funcionariozinho místico, sádico e impotente que te levou ao Terceiro Reich e enterrou sessenta milhões da tua espécie enquanto ias gritando «Viva! Viva!».

És assim, Zé Ninguém. Mas ninguém se atreve a dizer como és. Porque se tem medo de ti, Zé Ninguém, e se quer que te mantenhas pequeno.

Tu devoras a tua felicidade. Nunca foste capaz de a gozar com plenitude. É por isso que a devoras avidamente, sem sequer assumires a responsabilidade de a assegurares. Nunca te foi permitido aprenderes a cuidar das tuas alegrias, a alimentar a felicidade, como o jardineiro o faz com as suas flores, como o homem da terra com as suas colheitas.

Os grandes cientistas, poetas e homens de sabedoria sempre fugiram da tua companhia, pois desejaram preservar a alegria que lhes fosse possível. É fácil devorar a felicidade na tua companhia, Zé Ninguém, mas é difícil protegê-la.

Não sabes do que estou a falar, Zé Ninguém? Eu explico-te: um inovador trabalha durante dez, vinte ou trinta anos sem desfalecimentos na sua ciência, ou máquina, ou concepção da sociedade. Tudo o que é novo carrega-o consigo como pesado fardo. Terá de sofrer a, tua estupidez, a mesquinhez das tuas idéias e valores, terá de entendê-las e analisá-las e, finalmente, terá de substituí-las pelos seus atos. Não o ajudarás em nada, Zé Ninguém. Pelo contrário. Não virás dizer-lhe, «ouve, camarada, bem vejo como trabalhas».E trabalhas na minha máquina, para os meus filhos, a minha mulher, os meus amigos, a minha casa, os meus campos, para que as coisas sejam outras. Sofri durante muito tempo por isto ou por aquilo, mas nada podia fazer. «Posso agora ajudar-te a ajudar-me?» Não, Zé Ninguém, nunca ajudas quem te ajuda. Jogas às cartas ou esfalfas-te a berrar em espetáculos de competição ou vais marrando no teu trabalho no escritório ou na mina. Mas nunca ajudas quem te ajuda. E sabes porquê? Porque todo aquele que é inovador nada mais tem a oferecer-te de início do que idéias. Nem lucro, nem um salário mais alto, nem bônus de Natal, nenhum modo de vida mais fácil. Tudo o que pode oferecer-te são preocupações, e isso já tu tens que chegue.

Mas se apenas te tivesses mantido afastado, sem oferecer ou dar ajuda, nenhum inovador iria queixar-se de ti. Bem vistas as coisas, não é «para ti» que pensa, descobre, inventa. Fá-lo porque o seu funcionamento vital o impele a que assim seja.

Quanto ao cuidado e à compaixão por ti, deixa-os a cargo dos lideres partidários e dos homens do clero. O que realmente lhe seria agradável seria o ver-te capaz de cuidar de ti próprio. Só que tu não te contentas com manteres-te à margem, sem oferecer ajuda. Quando o inovador, após longa e árdua tarefa, finalmente entende os motivos por que és incapaz de dar satisfação no amor à tua mulher, tu vens e chamas-lhe obsceno. Nem fazes a menor idéia de que lhe chamas isso porque es permanentemente forçado a esconder a obscenidade em ti próprio e que por isso és incapaz de amar. Ou então, quando o investigador descobre por que motivo o cancro atinge em massa as populações e tu és, por exemplo, Professor de Patologia do Cancro com um sólido salário, dizes que o investigador é uma fraude, ou que não entende nada sobre os germes do ai-que gasta verbas demasiado elevadas; ou perguntas se é judeu ou estrangeiro; ou insistes que tens direito a examiná-lo a fim de saberes se é suficientemente qualificado para trabalhar no teu problema do cancro, o problema que não consegues resolver; ou preferes ver condenados muitos doentes cancerosos a ter de admitir que foi ele quem descobriu a possibilidade de salvar os teus doentes. Para ti, a tua dignidade catedrática, a tua conta no banco, ou as tuas ligações com a indústria do rádio, significam mais que a verdade e o conhecimento. E é por isso que és medíocre e desgraçado, Zé Ninguém.

Isto é, não só não dás apoio como perturbas maliciosamente o trabalho que te é destinado ou feito em teu beneficio.

Entendes agora porque te é negada a alegria? Porque é algo que se trabalha e se ganha. Mas tu apenas sabes devorar a alegria, que por isso te escapa. Com o decorrer do tempo, o inovador consegue finalmente convencer um grande número de pessoas de que a sua descoberta tem valor imediato, ou seja, de que com ela é possível o tratamento de determinadas doenças, ou levantar pesos, ou fazer explodir rochedos, ou penetrar o interior da matéria por meio de radiações. Acreditas depois de ler nos jornais, porque o que vês, não. Respeitas os que te desprezam e desprezas-te a ti próprio, por isso te não é possível crer por teus próprios meios. Mas se a descoberta surge nos jornais, embarcas a correr. Passas a considerar o inovador um «gênio», embora seja o mesmo homem a quem ontem chamavas fraudulento, obsceno, charlatão ou ameaça à moral pública. Agora é «gênio». Tu não sabes o que é «gênio», tal como não sabes o que é «judeu», ou «verdade» ou «felicidade». Eu digo-te, Zé Ninguém, tal como Jack London te disse no seu livro Martin Eden. Sei que o leste milhares de vezes, mas sem o entender: «Gênio» é a marca registrada do produto quando passa a estar à venda. Se realmente o inovador (que ontem era obsceno ou doido) é um gênio, passa a ser possível devorar a felicidade que te oferece. Porque há agora uma multidão de Zés Ninguéns que grita em uníssono contigo: «Gênio! Gênio!» E a multidão vem em cachos comer o produto à mão que lho estende. E se és médico, terás muito mais doentes, aos quais poderás oferecer melhores condições de tratamento e ganharás muito dinheiro. «E então? - dizes tu, Zé Ninguém -, que mal tem isso?» Nenhum, está certo que se ganhe dinheiro com um trabalho honesto e competente. O que não está certo é nada dar à descoberta em si, não a desenvolver, explorá-la apenas. Que é exatamente o que fazes, sem dar um passo para o seu desenvolvimento. Tomas posse do que te dão mecanicamente, com avidez, estupidamente, sem lhe anteveres as possibilidades ou as limitações. Quanto às Possibilidades, nem poderias entendê-las, e tentas ultrapassar as limitações recusando-te a reconhecê-las. Se és médico ou bacteriologista, como sabes que a cólera ou a febre tifóide são doenças infecciosas, passas a vida à procura do microrganismo causador do cancro, perdendo assim estupidamente décadas de investigação. Outro grande homem provou-te outrora que as máquinas obedecem a certas leis; de modo que constróis máquinas de morte e que consideras a vida como mais uma máquina. O teu erro nesta matéria não foi de três décadas, mas de três séculos; conceitos perfeitamente errôneos passaram a fazer parte integrante da atividade científica de centenas de milhares de investigadores; a própria vida se encontra ameaçada, porque a partir deste momento - em nome da tua dignidade, ou da tua cátedra, ou religião, ou conta no banco, ou rigidez de caráter - perseguiste, massacraste e tentaste por todas as formas lesar todos aqueles que empreenderam prosseguir no estudo da função vital.

Sem dúvida que te agrada possuir «gênios» e render-lhes a devida homenagem. Mas queres um gênio bom, um homem de moderação e decoro, sem fantasia, isto é, um gênio comedido e adaptado, não um gênio rebelde e livre, capaz de quebrar as tuas barreiras e limitações. Queres o gênio limitado, tratável, uma máscara que possas passear sem medo e em triunfo pelas ruas das tuas cidades.

És assim, Zé Ninguém. Bom na acumulação e no dispêndio, mas incapaz de criar. E é por isso que és o que és, toda a vida fechado num escritório solitário ou agarrado ao estirador, preso no colete-de-forças conjugal, ou professor das crianças que odeias. Incapaz de progredir ou de gerar algo de novo, porque és capaz de servir-te do que outros te oferecem em bandeja de prata.

Não entendes porque é assim, porque não pode ser doutra maneira? Eu digo-te, Zé Ninguém, porque eu aprendi a ver-te como o animal rígido que me trazia no seu vazio, na sua impotência, na sua doença mental. Só sabes sorver e apanhar, não sabes criar ou dar, porque a atitude básica do teu corpo é a retenção e o despeito; porque entras em pânico de cada vez que sentes os impulsos primordiais do AMOR e da DÁDIVA. É, por isso que tens medo de dar. A tua permanente avidez só tem um significado: és continuamente forçado a encher-te de dinheiro, de satisfações, de conhecimento, porque te sentes vazio, esfomeado, infeliz, ignorante e temendo a sabedoria. É, por isso que foges da verdade, Zé Ninguém - ela poderia fazer-te amar. Saberias então o que tento, inadequadamente, dizer-te. E isso tu não queres, Zé Ninguém. Só queres que te deixem em paz como consumidor e patriota.

«Ouçam isto! Este tipo nega o patriotismo, a base do Estado e do seu órgão fundamental, a família! Isto não pode ficar assim!»

É assim que gritas «aqui-d'el-rei» quando alguém te denuncia a prisão de ventre mental. Não queres nem ouvir nem saber, queres berrar «vivas». Mas porque não me deixas dizer-te por que razão és incapaz de alegria? Vejo-te o susto nos olhos - sente-se até que ponto o assunto te afeta profundamente. A «questão religiosa», por exemplo. Afirmas defender a «tolerância religiosa»; afirmas o teu direito à liberdade em matéria religiosa. Perfeito. Mas queres mais: queres que a tua religião seja a única. És intolerante quanto às outras. Ficas desesperado quando encontras alguém que, em vez de um Deus pessoal, adora a natureza e procura entendê-la. Preferes que os cônjuges em vias de separação se processem judicialmente, se acusem de imoralidade ou de brutalidade quando já não lhes é possível viver juntos. Tu, que és descendente de homens rebeldes, és incapaz de reconhecer o divórcio por mútuo consentimento - porque a tua própria obscenidade te assusta. Queres a verdade num espelho, algures onde não possas chegar-lhe. O teu «chauvinismo» decorre naturalmente da tua rigidez, da tua prisão de ventre mental, Zé Ninguém. E não o digo com sarcasmo, porque te estimo, embora seja teu hábito esmagar os que te estimam e dizem a verdade.

Repara, por exemplo, nos teus patriotas: não andam, marcham. Nem odeiam o inimigo - o que acontece é que têm «inimigos hereditários» que de dez em dez anos passam à categoria de amigos hereditários, e vice-versa. Não cantam - berram hinos marciais. Não fazem amor - «comem-nas» e têm um curriculum de «fudidas», por noite. Estas são as verdades que tenho para dizer-te, Zé Ninguém, e contra as quais nada tens a opor, exceto o assassínio, o mesmo que perpetraste contra tantos outros homens que te estimavam: Jesus, Rathenau, Karl Liebknecht, Lincoln e muitos outros. Na Alemanha costumavas chamar-lhe «depuração». A longo prazo foste tu que foste «depurado» aos milhões - mas continuas a ser um patriota.

Desejas amar e ser amado, amas o teu trabalho e é dele que vives, e a base do teu trabalho é o meu conhecimento e o de outros. O amor, o trabalho e o conhecimento não têm pátria, não conhecem fronteiras nem uniformes. São internacionais, são o patrimônio da humanidade. Só que tu preferes o teu patriotismo medíocre porque tens medo do amor genuíno, do trabalho responsável, medo do conhecimento. E por isso exploras o amor, o trabalho e o conhecimento dos outros, mas nunca poderás criar. Por isso usas a tua alegria como um ladrão furtivo, por isso não consegues suportar sem azedume e inveja a felicidade dos outros.

«Agarra que é ladrão! Não passa dum estrangeiro, dum imigrante. Eu não, eu sou alemão, americano, dinamarquês, norueguês!»

Pára com isso, Zé Ninguém! Tu és e hás-de ser sempre o eterno imigrante e emigrante. Vieste parar a este mundo por acidente e hás-de deixá-lo sem que ninguém dê por isso. Berras porque tens medo. A pouco e pouco, o teu corpo devém rígido e seco. É por isso que tens medo e chamas a polícia. Mas tão-pouco a tua polícia tem poder sobre a verdade. Mesmo o teu polícia se me vem queixar da mulher e dos filhos doentes. Quando se pavoneia de uniforme lá vai escondendo o homem; mas não de mim, que já o vi nu.

«O tipo tem registro criminal? Tem os papéis em ordem? Pagou os impostos? Passem-lhe uma busca. O homem é uma ameaça ao Estado e à honra da Nação!»

Por acaso, Zé Ninguém, sempre foi possível identificar-me, sempre tive os papéis em ordem e paguei os impostos. O que te rala não é o estado do Estado ou a honra da Nação. Tens é medo que eu exponha em público o que de ti fui conhecendo no consultório médico. É por isso que tentas inventar-me um crime político que me meta na cadeia durante anos. Eu conheço-te, Zé Ninguém. Se por acaso és juiz de comarca estás muito menos interessado em proteger a lei ou os cidadãos do que em fazer vista com o «caso» que te há-de levar a juiz de primeira instância. Ao Sócrates aconteceu-lhe o mesmo. Mas a história nunca te ensinou o que quer que fosse. Assassinaste Sócrates, e como não sabes o que fizeste, continuas na lama. Acusaste-o de perverter o teu código moral. Mas ele continua a fazê-lo, Zé Ninguém - assassinaste-lhe o corpo, não o espírito. E continuas a assassinar, em nome da «ordem», mas covardemente, pelas costas. És incapaz de me encarar quando me acusas de imoralidade.

-Porque sabes bem qual de nós é imoral, obsceno e pornográfico. Alguém afirmou uma vez que de toda a gente que conhecia só havia um que não contava piadas porcas - era eu. Quanto a ti, quer sejas juiz ou chefe da policia, conheço -as tuas piadas porcas e sei de onde vêm, de modo que é melhor não abrires a boca. Talvez consigas provar que paguei cem dólares a menos de impostos, ou que atravessei a fronteira entre dois estados com uma mulher, ou que parei para falar com uma criança na rua.

Mas é na -tua boca que qualquer destes fatos assume o caráter equivoco e reles de um ato vil. E,como não sabes mais nada, pensas que eu sou da tua espécie. Não, Zé Ninguém, não sou, e nunca fui como tu nessas matérias. E tanto me faz que acredites ou não, embora tu detenhas a força e eu o conhecimento - são funções diversas.

É assim que dás cabo da tua existência: em 1924 sugeri um estudo científico da natureza humana. Reagiste entusiasticamente.

Em 1928, o nosso trabalho apresentava os primeiros resultados tangíveis - continuaste entusiástico e eu tive honras de spiritus rector.

Em 1933, os resultados em questão deveriam ser publicados pela tua casa editora. Hitler acabara de subir ao Poder. Eu acabara de entender que a subida de Hitler ao Poder estava ligada à tua rigidez de atitudes. Recusaste-te então a publicar o livro que te demonstrava como havias produzido Hitler.

O livro, no entanto, foi publicado e continuaste entusiástico. Só que tentaste abafá-lo no silêncio, pois que o teu «Presidente» se tinha declarado publicamente contra ele.

Tinha, aliás, também aconselhado às mães a que suprimissem a excitação genital das crianças sustendo-lhes a respiração.

Durante doze anos mantiveste-te silencioso sobre o livro que tinha suscitado o teu entusiasmo. Em 1946 foi reeditado e aclamaste-o então como «um clássico». Ainda hoje parece entusiasmar-te.

Passaram-se, entretanto, vinte e dois longos anos, carregados de ansiedades e trabalhos, desde que comecei a transmitir-te que mais importante que o tratamento individual é a prevenção da perturbação mental. Durante vinte e dois anos te afirmei que as pessoas caem nesta ou naquela forma frenética de existir ou se enterram em lamentações estéreis porque lhes são impossíveis o amor e o prazer. Porque os seus corpos, ao inverso do que acontece nas outras espécies animais, não mais possuem a capacidade de contrair-se e expandir-se no ato do amor.

Vinte e dois anos depois de eu o ter afirmado, di-lo tu agora aos teus amigos: mais.importa a prevenção das perturbações mentais do que o seu tratamento individual. E de novo ages como o tens feito há milhares de anos: falas dos grandes objetivos sem te preocupares com a forma de os alcançar. Esqueces a dimensão afetiva da vida das massas. Preconizas a «prevenção das perturbações mentais», aspiração inócua e muito digna. Mas julgas ser possível fazê-lo ignorando a prevalência generalizada da frustração no domínio sexual. Nem sequer consentes que se fale nisso. E assim, também como médico não tens saída.

Que pensarias tu de um técnico que revelaste a técnica de vôo e guardasse como secretas as características do motor e da hélice? É assim que funcionas como técnico de psicoterapia - covardemente. Aceitas o que das minhas Idéias te convém, mas rejeitas-lhe os espinhos. Vais-me chamando, cheio de subentendidos pornográficos, «o profeta do bom orgasmo».Ouve, psiquiatrazinho, nunca te impressionaram as queixas de mulheres recém-casadas, com o corpo violado por maridos impotentes? Ou a angústia dos adolescentes que sofrem de amor insaciado? Será que tens em maior conta a tua segurança que a dos teus doentes? Até quando irás preferir a tua dignidade medíocre à tua responsabilidade terapêutica? Durante quanto tempo mais serás capaz de escamotear o fato de que as tuas táticas sacrificam milhões de vidas?

A segurança é-te mais importante que a verdade. A primeira vez que ouviste falar do orgone, descoberta minha, não foste capaz de te interrogar quanto à sua utilidade, às suas possibilidades de aplicação terapêutica, mas sim se eu possuía ou não documentação que me permitisse praticar a medicina no estado do Maine. Nem entendes que as tuas exigências burocráticas, se pouco ou nada perturbam o meu trabalho, ainda menos o impedem. Será que nem sequer tens consciência do meu prestígio como investigador, da ligação do meu nome à descoberta da peste emocional e da energia vital - que ninguém menos qualificado que eu poderá examinar-me?

Vejamos quanto à tua avidez de liberdade. Nunca ninguém te perguntou porque sempre te foi impossível alcançá-la ou por que razão, se alguma vez o conseguiste, imediatamente a depositaste nas mãos de novos amos.

«Ouçam isto! Este monstro atreve-se a duvidar do levantamento revolucionário dos proletários de todo o mundo, atreve-se a duvidar da democracia! Abaixo a contra-revolução! Fora com ele!»

Não te excites, chefezinho de todos os democratas e de todos os proletários do mundo. É, minha firme convicção de que a tua futura liberdade real depende mais da tua resposta a esta pergunta do que de milhares de resoluções dos teus congressos de Partido.

»Fora com ele! Corrompe a honra da nação e a vanguarda do proletariado revolucionário! Fora! Rua! Encostem-no à parede!»

Mas não são os teus «vivas» e os teus «morras» que te irão aproximar dos teus objetivos, Zé Ninguém. Sempre acreditaste que a tua liberdade se acha assegurada através da perseguição dos opositores. Ao menos uma vez na vida encara-te de frente.

«Fora! Fora!»

Pára. um minuto, Zé Ninguém. Não é minha intenção menosprezar-te, mas apenas provar-te por que razão até agora te não foi possível alcançar a liberdade ou garanti-la. Será que o tema não te interessa?

«Fora! Fora!»

Posso garantir-te que vou ser breve: tentarei, dizer-te como se comporta o Zé Ninguém cada vez que se acha numa situação de liberdade. Suponhamos que és estudante num Instituto que, entre outros, defende os, valores da saúde sexual das crianças e dos adolescentes. A «extraordinária idéia» entusiasma-te, de modo que desejas participar na luta. Vou contar-te o que aconteceu na minha escola: os meus alunos estavam sentados ao microscópio a observar microrganismos. Tu estavas sentado no acumulador de orgone, nu. Chamei-te para que participasses da observação. Foi então que decidiste sair tal como estavas do acumulador, exibindo-te diante das raparigas e das mulheres. Admoestei-te imediatamente, mas não pareceste entender porque o fazia. Parecia-me inverossímil que o não entendesses. Mais tarde, em longa conversa, admitiste que na base do teu comportamento estava exatamente a imagem que tinhas dum Instituto que defendia a liberdade sexual. Tomaste então consciência do fato de que tinhas o maior desprezo pelo Instituto e pela sua idéia de base e que havia sido por isso que te tinhas comportado indecentemente.

Um outro exemplo que demonstra a forma como destróis a tua liberdade: tu sabes e eu sei e todos, sabemos que vives num estado de permanente frustração sexual; que facilmente encaras com avidez qualquer membro do outro sexo; que as conversas que tens com os amigos sobre temas sexuais se resumem ao repertório de anedotas obscenas; que, em suma, a tua imaginação é, sobretudo, pornográfica. Uma noite ouvi-te passar berrando com os teus amigos pela rua fora:

«Nós queremos mulheres! Nós queremos mulheres!»

Dado que o teu futuro faz parte das minhas preocupações, tentei criar instituições onde pudesses compreender melhor a tua miséria e modificá-la. Tu e os teus amigos vieram, em magotes a reuniões que organizei no âmbito dessas instituições. E sabes porque foi assim, Zé Ninguém? Ao início cheguei a pensar que te movia um genuíno interesse, a vontade de dares novo sentido à tua vida. Só mais tarde entendi o que realmente te motivara. Pensavas que irias encontrar uma nova forma de bordel, onde seria fácil encontrar uma rapariga sem gastar um tostão. E quando o entendi, destruí por minhas próprias mãos as instituições que criara tentando ajudar-te. Não porque me pareça que haja algo de errado no fato de poderes encontrar uma rapariga nessas reuniões, mas porque a intenção com que vinhas a essas reuniões era vil. Por isso as destruí, por isso mais uma vez ficaste onde estavas... Tens alguma coisa a dizer?

«O proletariado foi corrompido pela burguesia. Os líderes. do proletariado são quem poderá solucionar o problema. Irão sanear os costumes com um punho de ferro - o problema sexual do proletariado só assim poderá ser solucionado».

Eu sei o que tu queres dizer, Zé Ninguém. Foi exatamente o que se passou na tua pátria dos proletários: deixar que o problema sexual se resolvesse por si próprio. O resultado viu-se em Berlim, com os soldados proletários violando mulheres a torto e a direito. Sabes que foi assim. Os teus campeões da «honra revolucionária», «os soldados do proletariado do mundo» prometeram-te o suficiente para a vergonha te durar uns séculos. Dizes que estas coisas «só acontecem na guerra»?

Então conto-te uma outra história: Um outro chefe, cheio de entusiasmo pela ditadura do proletariado, não o era menos quanto à economia sexual. Veio ter comigo e disse-me: «Você é extraordinário. Karl Marx mostrou-nos como é possível a liberdade econômica; você aponta-nos a via para a liberdade sexual; foi capaz de nos dizer: Fodam o mais que puderem». Na tua mente tudo se perverte. Aquilo a que eu chamo um ato de amor, é, na tua vida, um ato pornográfico. E nem sequer sabes do que estou a falar, Zé Ninguém. E é por isso que sempre retornas ao lameiro. Se por acaso tu, Maria Ninguém, dás em professora sem que possuas quaisquer qualificações especiais para tal e apenas porque nunca tiveste filhos, os efeitos da tua ação são desastrosos. O teu trabalho deveria ser comunicar com as crianças e educá-las. Qualquer educação válida engloba um conhecimento da sexualidade infantil. Mas para poder entender a sexualidade infantil é necessário conhecer por experiência própria o que é uma relação de amor. E tu és obesa, desajeitada e sem qualquer atrativo, o que necessariamente te leva a odiar qualquer corpo humano dotado de graça e vivacidade. Não é evidentemente por seres gorda e pouco atraente que te censuro,.nem por jamais teres conhecido o amor de um homem (nenhum que fosse minimamente saudável to teria oferecido), nem sequer pelo fato de não entenderes o amor das crianças. Mas porque tens na conta de virtude a tua total ausência de atrativos e a tua incapacidade de amar e porque esmagas com o teu ódio a afetividade das crianças a teu cargo, ainda que exerças as tuas funções numa «escola progressista». O que é um crime e te transforma numa monstruosidade, mulherzinha. A tua influência perniciosa consiste em alienares a afeição que crianças saudáveis sentem por pais saudáveis; em considerares o saudável afeto de uma criança como um sintoma patológico. Em estenderes a toda a tua influência o formato de barril do teu corpo: pensas como um barril, e educas como um barril; em não saberes retirar-te para um lugar modesto e tentares impor aos outros a tua presença opaca, a tua falsidade e o teu ódio amargo sob a máscara do teu falso sorriso.

E tu, Zé Ninguém, porque consentes que sejam estas mulheres a educar os teus filhos ainda saudáveis, porque lhes permites, destilar a amargura no espírito, és o que és, vives como vives, pensas como pensas e o mundo é como é. Vieste procurar-me para tentar aprender aquilo que havia sido o fruto do meu trabalho, aquilo porque me bati e bato. Sem mim terias sido um médico obscuro de clínica geral em qualquer aldeia ou cidade de província. Engrandeci-te através do acesso ao meu conhecimento e às técnicas terapêuticas. Ensinei-te a detectar o modo como é suprimida a liberdade, como a servidão é imposta e mantida. Foi então que assumiste uma posição de responsabilidade como expositor do meu trabalho num outro país - em total liberdade no sentido pleno da palavra Confiei na tua honestidade. Mas tu mantinhas-te dependente de mim, pois por ti próprio pouco ou nada eras capaz de criar. Precisavas de mim como base de conhecimento, como fonte de autoconfiança, perspectiva do futuro e, sobretudo, desenvolvimento. Tudo isto eu te ofereci com alegria, Zé Ninguém, sem nada pedir em troca. Foi então que declaraste que eu te havia «violado». Tornaste-te agressivo, na esperança de te tornares livre. Confundir porém a imprudência com a liberdade sempre foi a marca do escravo. Na tua tentativa de liberdade deixaste de me enviar relatórios do teu trabalho. Sentias-te livre - liberto da cooperação e da responsabilidade. E é por isso, Zé Ninguém, que és o que és, e é por isso que o mundo é o que é.

Fazes uma idéia, Zé Ninguém, de como se sentiria uma águia que estivesse a chocar ovos de galinha? De começo a águia julga que está a chocar apenas pequenas águias que virão a tomar volume idêntico ao seu. Mas o que acaba por sair são sempre frangos. Desesperada, a águia espera que os frangos ainda possam vir a ser águias. O tempo passa e o que finalmente surge são galinhas cacarejantes. Então, nasce na águia a tentação de comer frangos e galinhas de uma assentada, e apenas uma pequena réstia de esperança a impede de o fazer. A esperança de que um dia surja do bando de frangos uma pequena águia capaz de sondar a distância a partir dos píncaros, de detectar novos mundos, novas formas. de pensar e viver. E só esta esperança impede a triste e solitária águia de devorar os frangos e galinhas, que nem sequer se dão conta de que uma águia os sustenta e acolhe, que vivem num íngreme rochedo, bem acima dos vales perdidos. Nunca olharam para a distância como a águia solitária. Limitaram-se a engorgitar dia após dia o que a águia lhes trazia de alimento. Deixaram-se aquecer debaixo das suas asas poderosas sempre que chovia ou trovejava, enquanto ela suportava a tempestade sem qualquer proteção. Ou chegaram a atirar-lhe pedras pelas costas, nos piores dias. Quando deu por isso, o primeiro impulso foi desfazê-los, mas, pensando melhor, encheu-se de compaixão. Esperava ainda que algum dia haveria de surgir dos muitos frangos míopes e cacarejantes uma pequena águia capaz de a acompanhar.

Até hoje, a águia ainda não desistiu. De modo que ,continua a criar frangos. Tu não queres ser águia, Zé Ninguém, e é por isso que és comido pelos abutres. Tens medo das águias, e é por isso que vives em grandes bandos e és comido em grandes bandos. Porque algumas das tuas galinhas chocaram os ovos de abutre e os abutres foram então os teus chefes contra as águias, as águias que desejariam ter-te levado mais longe, mais alto. Abutres que te ensinaram a comer cadáveres e a contentar-te com alguns grãos de trigo, a berrar: «Viva, Viva, Abutre!». E apesar das tuas privações e da tua condenação aos milhares, continuas a ter medo das águias que protegem os teus frangos.

Construíste sobre a areia a tua casa, a tua vida, a tua cultura e a tua civilização, a tua ciência e técnica, o teu amor e a tua educação de crianças. Não o sabes, Zé Ninguém, nem queres sabê-lo, e abates o grande homem que intente dizer-te. Na tua agonia, são sempre as mesmas questões que te afligem:

«O meu filho é obstinado, destrutivo, tem pesadelos de noite, não consegue concentrar-se no trabalho escolar, sofre de prisão de ventre, tem má cor, é uma criança cruel. Que hei-de fazer? Ajudem-me!».

Ou: «A minha, mulher é frigida, incapaz de afeto. Agride-me, tem ataques histéricos, anda por aí com vários homens. Que hei-de fazer? Diga-me que hei-de fazer.»

Ou: «Outra guerra, depois de termos lutado numa que deveria pôr fim a todas as outras. Que havemos de fazer ?»

Ou: «A civilização de que tanto nos orgulhamos está a decair num processo de inflação. Há milhões de pessoas com fome, gente que mata, rouba, destrói e abandona toda a esperança. Que havemos de fazer?»

«Que havemos de fazer?» Eis a tua interrogação milenar.

O destino de toda a aquisição cultural importante, firmada na prevalência da verdade sobre a segurança, é o de ser avidamente devorada e em seguida expelida pelo homem comum. Muitos foram os homens corajosos e solitários que te disseram o que deverias fazer. E sempre distorceste o que te era comunicado, sempre os conduziste à amargura e à destruição.

Sempre lhes pegaste na palavra pela ponta errada, preferindo como regra de vida a pequena margem de erro à grande verdade; no cristianismo, na formação socialista, no conceito de soberania popular, em tudo o que tocaste, Zé Ninguém. Perguntas porque é assim, porque és assim? Não creio que ponhas a questão a sério e vais odiar-me quando ouvires a verdade: construíste a tua casa sobre a areia e agiste assim ao longo dos séculos porque és incapaz de respeitar a vida, porque até o amor dos teus filhos destróis antes que tenha tido tempo de desabrochar, porque não suportas nenhuma forma de espontaneidade viva, nenhum movimento livre e natural. E porque não podes tolerá-lo, entras em pânico e perguntas: «Quem é o Sr. Silva e o que é que irá dizer o Sr. Pereira?» És covarde na tua atividade intelectual, porque a atividade intelectual fecunda acompanha a vitalidade e o movimento do corpo, e tu temes o teu corpo. Muitos foram os grandes homens que te disseram: escuta a tua voz interior - segue a verdade do que sentes - venera o teu amor. Mas tu não deste atenção a tais palavras. Foram palavras perdidas no deserto, apelos mortos no vazio do teu nada, Zé Ninguém.

Foi-te oferecida a escolha entre a exigência de superação do Übermensch de Nietzsche e a degradação do Üntermensch em Hitler. Berrando «Viva», escolheste o Üntermensch.

Foi-te dado a escolher entre a constituição genuinamente democrática de Lenin e a ditadura de Stalin escolheste a ditadura de Stalin.

Tiveste a escolha entre a elucidação de Freud da origem sexual das tuas perturbações emocionais e a sua teoria da adaptação cultural. Escolheste a sua filosofia cultural, que não te trazia qualquer apoio, e esqueceste a teoria sexual. Pudeste escolher entre a magnificente simplicidade de Cristo e Paulo [N.E.], com o seu celibato para os padres e o seu casamento indissolúvel.

Escolheste o celibato e o casamento indissolúvel esquecendo a mulher simples que pariu seu filho, Jesus, apenas por amor.

Tiveste a escolha entre a concepção de Marx da produtividade do teu poder de trabalho como única fonte do valor dos produtos e a concepção de Estado. Esqueceste a tua força de trabalho e escolheste a idéia de Estado. Durante a Revolução Francesa tinhas a escolher entre o cruel Robespierre e o grande Danton. Escolheste a crueldade e enclausuraste a grandeza de alma e a bondade. Na Alemanha, tinhas a escolha entre Göering e Himmler, por um lado, e Liebknecht, Landau e Mühsam, no pólo oposto. Deste a Himmler o cargo de chefe de polícia e assassinaste os teus verdadeiros amigos. Tinhas a escolher entre Julius Streicher e Walter Rathenau - assassinaste Rathenau.

Tinhas a escolher entre Lodge e Wilson - assassinaste Wilson. Poderias ter escolhido entre a crueldade da Inquisição e a verdade de Galileu. Escolheste torturar Galileu, de cujas descobertas ainda hoje beneficias, submetendo-o a toda a espécie de humilhações, e, em pleno século XX, continuas a utilizar os mesmos métodos da Inquisição.

Tens a escolher entre a compreensão da doença mental e as terapêuticas de choque - escolhes estas, de modo a não teres de enfrentar as dimensões monstruosas da tua própria miséria, preferindo a cegueira onde só de olhos bem abertos te poderias salvar.

Tens de escolher entre a ignorância da natureza da célula cancerosa e o que me foi possível desvendar dos seus segredos, a salvação possível de milhões de vidas humanas. Mas continuas a repetir as mesmas asneiras acerca do cancro em jornais e revistas, mantendo o silêncio sobre o que poderia salvar o teu filho, a tua mulher ou a tua mãe. Morres de fome, mas defendes dos maometanos a sacralidade das tuas vacas, Zé Ninguém indiano. Andas esfarrapado, Zé Ninguém de Itália e Eslavo de Trieste, mas o que mais parece ralar-te é saber se Trieste é «italiano» ou «eslavo». Sempre pensei que Trieste fosse um porto internacional. Enforcas os nazis depois de terem assassinado milhões de pessoas. Onde é que estavas antes? Dezenas de cadáveres não bastam para fazer-te pensar, apenas milhões? Cada um destes atos mesquinhos dá sinal da tua monstruosidade de animal humano. Dizes: «Mas porque diabo levas tudo isto tão a sério? Sentes-te responsável por todo o mal?» Esta é a questão que te condena. Se tu, Zé Ninguém, saldo das fileiras de milhões como tu, tomasses a teu cargo apenas uma pequena parcela da tua responsabilidade, o mundo não seria o mesmo e todos os -grandes que te estimam não seriam condenados à morte pela tua mesquinhez. É, porque não assumes qualquer responsabilidade que a tua casa assenta sobre areia. O teto abate-se sobre a tua cabeça, mas conservas a honra «proletária» ou «nacional». O chão esvai-se-te debaixo dos pés, mas continuas a berrar: «viva, grande chefe, viva a Alemanha, a Rússia, o povo judeu!» Os teus filhos agonizam, mas continuas a preconizar «a disciplina e a ordem» que lhes impões batendo. A tua mulher adoece, mas tu consideras que construir a tua casa sobre um rochedo não passa de mais uma «fantasia de judeu».

Na tua enorme aflição vens ter comigo e dizes-me: «Meu Bom, Querido e Extraordinário Doutor! Que hei-de fazer? A minha casa esboroa-se, o vento sopra-lhe dentro, a minha mulher e os meus filhos estão doentes e eu também. Que hei-de fazer?» A resposta é: constrói a tua casa sobre um rochedo. Rochedo que és tu próprio, a tua própria natureza destorcida, o amor físico dos teus filhos, a esperança amorosa da tua mulher, o que esperavas da vida aos 16 anos. Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade. Manda os teus políticos e diplomatas dar uma volta. Esquece o teu vizinho e escuta a tua própria voz - o teu vizinho fica-te grato. Diz aos teus camaradas de trabalho que desejas trabalhar em nome da vida, não ao serviço da morte. Não corras para assistir às execuções dos teus carrascos e vitimas, cria as leis que protegem a vida humana e os seus bens. Leis essas que serão os pilares de rocha viva onde assentares a tua casa. Protege o amor das crianças de tenra idade dos ataques de adultos lascivos e frustrados. Não aceites a solteirona intriguista - expõe publicamente os seus malefícios ou manda-a para o reformatório, em vez de lá abandonares adolescentes carecidos de afeto; se a tua posição profissional é de direção. Não tentes ser mais explorador que quem tenta explorar-te. Deita fora as tuas calças de fantasia e o teu chapéu alto e não peças autorização oficial para amares a tua mulher. Cantata com gentes de outros países, pois são teus semelhantes, no que tens de bom e de mau. Deixa, pois, que o teu filho cresça como a natureza (ou «Deus») o gerou. Não tentes melhorar a natureza, mas antes entendê-la e protegê-la. Vai às bibliotecas em vez de ires assistir a espetáculos de competição, viaja por outros países e. vez de ires a Coney Island. E, acima de tudo, procura PENSAR CORRETAMENTE, ouve a tua voz interior e o seu murmúrio brando. Tens a vida nas tuas mãos. Não a entregues a outrem e muito menos aos chefes que elegeres. SÊ TU PRÓPRIO. Muitos foram os grandes homens a propor-te.

«Ouçam este pequeno-burguês reacionário e individualista! O tipo desconhece a marcha inexorável da história. 'Conhece-te a ti próprio' - diz ele. A asneira burguesa do costume! O proletariado revolucionário mundial, conduzido pelo seu bem-amado chefe, pai de todos os povos, de todos os Russos, de todos os Eslavos, libertará o povo. Abaixo os individualistas e anarquistas!»

E vivam os Paizinhos de todos os povos, de todos os Eslavos, Zé Ninguém! Ouve bem agora, que tenho algumas predições graves a fazer-te: estás de fato em vias de te apropriares do mundo, o que te aterra. Durante séculos, irás assassinar os teus amigos e saudar como teus senhores os chefes de todos os povos, de todos os Russos. Dia após dia, semana após semana e década após década, louvarás senhor após senhor, esquecendo os gemidos dos teus filhos, ignorando a agonia dos teus adolescentes, as aspirações dos teus homens e mulheres, ou, se acaso os escutares, chamar-lhe-ás individualismo burguês. Em lugar de protegeres a vida, irás derramando o sangue atrás dos séculos, na crença de que apenas alcançarás a liberdade com o auxílio de carrascos - de novo e de novo enterrado na lama por tuas próprias mãos. Continuarás através dos séculos a seguir embusteiros e energúmenos, cego e surdo ao apelo da VIDA, A TUA PRÓPRIA VIDA. Porque tu temes a vida, Zé Ninguém, e a destróis na crença de que o fazes em nome do «socialismo», ou do «Estado», ou da "honra nacional", ou da «glória de Deus». Há algo, no entanto, que não sabes ou não queres saber: que és tu que geras a tua própria miséria, hora após hora, dia após dia; que não entendes os teus filhos e que tu próprio lhes partes a espinha antes de terem -sequer uma oportunidade de desenvolver-se; que devoras o amor; que és avaro e ávido de poder - que mantém o cão preso para te sentires «dono».

 

[segue na parte III]


Nota do Editor. Talvez seja importante destacar aqui que segundo os registros do Novo Testamento tanto Jesus como Paulo, quando não aboliram, colocaram a Lei (cânone religioso) em último plano. Uma das mais espinhosas missões de Paulo, e que lhe custou a morte na prisão, foi convencer os judeus de que o Velho Pacto, a Lei, eram coisa do passado, e que o que contava agora era apenas e tão somente o amor (primeira carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 13). Coisas como celibato e casamento indissolúvel são leis que passaram a ser instituídas a partir do século III pelo mesmo tipo de líder religioso que assassinou Jesus, Paulo e milhares de cristãos primitivos. Daquela época até nossos dias tanto o ensino de Jesus, de Paulo, como as práticas comunais dos cristãos primitivos foram «esquecidas» em favor de uma classe dominante e do clero, uma maldita hierarquia religiosa composta de padres, pastores, bispos, papas, sacerdotes, líderes de seitas, etc.




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