Escuta, Zé Ninguém Caminharás errante através dos séculos e estarás condenado à mesma morte em massa dos teus iguais no meio da miséria social generalizada; até que do horror da tua existência possa surgir-te um escasso núcleo de lucidez. Até que aprendas a buscar o teu verdadeiro amigo no homem de trabalho, de amor e de sabedoria, até que aprendas a entendê-lo e a respeitá-lo. Entenderás então que mais importa para a verdadeira vida uma biblioteca que um desafio desportivo; o deambular pelo campo em meditação do que o exibir-se onde quer que seja; o poder de sarar do que o de morte; a saudável estima por si próprio do que a consciência nacional, e a humildade bem mais que a exaltação patriótica ou qualquer outra. Pensas que os fins justificam os meios, ainda que estes sejam vis. Enganas-te: o fim é a trajetória com que o alcanças. Cada passo de hoje é a tua vida de amanhã. Nenhum objetivo verdadeiramente grande poderá ser alcançado por meios vis – tens bem a prova de que assim é em todas as revoluções sociais. A vileza ou a desumanidade duma dada trajetória torna-te vil e desumano, e o fim inatingível. «Como poderei então servir os objetivos do amor cristão, do socialismo, da Constituição americana?» O teu amor cristão, o teu socialismo, a tua Constituição americana assentam sobre a tua vida quotidiana, sobre o que pensas no teu dia-a-dia, sobre o modo como fazes amor com a tua companheira, sobre a tua atitude face ao trabalho como TUA RESPONSABILIDADE SOCIAL, sobre a forma como evitas ser o supressor da tua própria vida. Mas és tu, Zé Ninguém, que abusas das liberdades que te são concedidas pela Constituição e que assim a destróis, em vez de tentares consolidá-la na tua vida quotidiana. Assisti à forma com tu, refugiado alemão, abusaste da hospitalidade sueca. Eras nesse tempo o futuro chefe de todos os povos suprimidos da terra. Lembras-te do costume sueco do smörgasbord? Uma mesa cheia de pratos e doces diversos que cada um pode escolher como lhe aprouver. Este costume parecia-te novo e estranho; parecia-te impossível uma tal confiança na honestidade alheia. Disseste-me então, sem te dares conta da perversidade da tua satisfação, que não tinhas comido durante todo o dia de modo a poderes empanzinar-te de borla à noite. «Passei fome quando era criança» – disseste. Eu sei, Zé Ninguém, porque te vi passar fome e sei o que é. «Ouçam este pequeno-burguês reacionário e individualista! O tipo desconhece a marcha inexorável da história. 'Conhece-te a ti próprio' – diz ele. A asneira burguesa do costume! O proletariado revolucionário mundial, conduzido pelo seu bem-amado chefe, pai de todos os povos, de todos os Russos, de todos os Eslavos, libertará o povo. Abaixo os individualistas e anarquistas!» E vivam os Paizinhos de todos os povos, de todos os Eslavos, Zé Ninguém! Ouve bem agora, que tenho algumas predições graves a fazer-te: estás de fato em vias de te apropriares do mundo, o que te aterra. Durante séculos, irás assassinar os teus amigos e saudar como teus senhores os chefes de todos os povos, de todos os Russos. Dia após dia, semana após semana e década após década, louvarás senhor após senhor, esquecendo os gemidos dos teus filhos, ignorando a agonia dos teus adolescentes, as aspirações dos teus homens e mulheres, ou, se acaso os escutares, chamar-lhe-ás individualismo burguês. Em lugar de protegeres a vida, irás derramando o sangue atrás dos séculos, na crença de que apenas alcançarás a liberdade com o auxílio de carrascos – de novo e de novo enterrado na lama por tuas próprias mãos. Continuarás através dos séculos a seguir embusteiros e energúmenos, cego e surdo ao apelo da VIDA, A TUA PRÓPRIA VIDA. Porque tu temes a vida, Zé Ninguém, e a destróis na crença de que o fazes em nome do «socialismo», ou do «Estado», ou da «honra nacional», ou da «glória de Deus». Há algo, no entanto, que não sabes ou não queres saber: que és tu que geras a tua própria miséria, hora após hora, dia após dia; que não entendes os teus filhos e que tu próprio lhes partes a espinha antes de terem -sequer uma oportunidade de desenvolver-se; que devoras o amor; que és avaro e ávido de poder – que mantém o cão preso para te sentires «dono». Caminharás errante através dos séculos e estarás condenado à fome. Mas desconheces que é assim, roubando smörgasbord, que perpetuas a fome dos teus filhos, tu, futuro salvador de todos os famintos. Há coisas que se não devem fazer, tais como roubar as colheres de prata, ou a mulher, ou o smörgasbord de uma casa que'te oferece hospitalidade. Depois da catástrofe. alemã, encontrei-te meio morto de fome num parque. Disseste-me que o «Auxílio Vermelho» do teu partido se tinha recusado a ajudar-te, porque tendo perdido o teu cartão de identidade não podias provar que eras membro inscrito. Os teus chefes de todos os famintos distinguem a fome segundo a cor de quem a sofre. Nós reconhecemos apenas a fome onde a encontramos. És assim nas pequenas causas. Vejamos nas grandes: tomaste a grande decisão de abolir a exploração da era capitalista e o menosprezo da vida humana, de fazer reconhecer os teus direitos, pois que há cem anos a exploração, o desprezo pela vida humana e a ingratidão eram a regra generalizada. Mas então havia respeito pelos grandes feitos e lealdade para com os que geravam grandes, coisas, havia o reconhecimento dos talentos e dos dotes. E o que tens agora, Zé Ninguém?
Na tua estupidez obstinada julgas possuir o reino da liberdade. Hás-de acordar do teu pesadelo estendido de borco no chão. Porque roubas o que te dão e das o que te roubam. Confundes o direito à liberdade de expressão e crítica com o comentário irresponsável e a graça parva. Desejas criticar, mas não queres ser criticado, o que te destrói. Queres poder atacar a coberto de qualquer ataque. É por isso que jogas na sombra. «Chamem a polícia! O homem tem o passaporte em ordem? É realmente médico? O nome dele não consta do Who's Who, e a Ordem dos Médicos está contra ele». A polícia aqui não te serve de nada, Zé Ninguém. Destina-se a apanhar ladrões e a regular o tráfico, não a conceder-te a liberdade. Foste tu que a destruíste e continuarás a destruí-la com inexorável consistência. Antes da primeira guerra mundial não havia passaportes internacionais; podias viajar para onde quer que quisesses. A guerra levada a cabo em nome da «Liberdade e da Paz» acarretou consigo o controle de passaportes, que ficou para durar. Cada vez que queres percorrer trezentos quilômetros na Europa tens de pedir autorização aos consulados de pelo menos dez países. E assim continua sendo, anos depois de finda a segunda guerra, destinada a acabar com todas as guerras. E assim continuará a ser após a terceira e a enésima guerra final. «Ouçam isto! A conspurcação do meu patriotismo, da honra e glória da Nação!». Cala-te, Zé Ninguém. Há dois tipos de tons: o rolar da tempestade sobre a montanha e – o teu peido. Não passas de um peido e julgas-te perfumado a violetas. Se posso minorar o teu sofrimento neurótico, como te atreves a perguntar se venho no Who’s Who? Entendo a gênese do teu cancro, e os teus miseráveis comissários de Saúde Pública proíbem as minhas experiências com ratos. Ensinei os teus médicos a entender-te clinicamente, e a tua Ordem dos Médicos denuncia-me à polícia – e quando estás mentalmente doente administram-te choques elétricos, tal como na Idade Média usavam as grilhetas e o chicote. Cala-te, desgraçado. Toda a tua vida é miséria. Não é minha intenção salvar-te, mas hei-de levar esta conversa contigo até ao fim, mesmo que me venhas bater à porta embuçado, pela calada da noite, trazendo nas tuas mãos sangrentas a corda para me enforcar. Não podes enforcar-me, Zé Ninguém, sem te pendurares na corda. Porque eu represento a tua vida, o teu sentimento do mundo, a tua humanidade, o teu amor e a tua alegria de criar. Não te é possível assassinar-me, Zé Ninguém. Outrora tive medo de ti, tal como anteriormente havia depositado em ti demasiada confiança. Mas consegui ultrapassar-te e encaro-te agora sob uma outra perspectiva - a do tempo, milhares de anos antes, milhares de anos depois. Quero que percas o medo de ti próprio, que vivas com maior plenitude e alegria. Que o teu corpo seja vivo em vez de rígido, que ames os teus filhos em vez de os odiares, que dês felicidade à tua mulher em vez de te entreteres a torturá-la maritalmente. Sou teu médico e, dado que habito este planeta, sou médico onde quer que esteja; não sou um alemão, ou um judeu, ou um cristão, ou um italiano, sou um cidadão da Terra. Para ti, por outro lado, só existem americanos angélicos e japoneses odiosos. «Agarrem-no! Revistem-no! O homem tem licença para exercer medicina? Proclamem um decreto real a fim de que ele não possa praticar a medicina no nosso país livre! O tipo faz experiências com a função do prazer! Prendam-no! Expulsem-no do país!» Fui eu próprio que granjeei o direito a exercer a minha atividade. Ninguém pode conceder-me. Fundei uma nova ciência que finalmente permite entender a vida. Tu próprio a hás-de usar dentro de dez, cem ou mil anos, tal como no passado devoraste avidamente outros contributos, quando sentiste a corda a chegar ao fim. O teu ministro da Saúde não tem poder sobre mim, Zé Ninguém. Apenas o teria se tivesse a coragem de conhecer a minha verdade – coragem que não tem. E é sendo assim que volta para o seu país e comunica ao público que eu me encontro internado num hospício na América e nomeia inspetor-geral dos Hospitais um homem medíocre que, numa tentativa de negar a função de prazer, tinha falsificado diversas experiências. Eu, por meu lado, Zé Ninguém, cá vou alinhando esta conversa. Queres maior prova da impotência dos teus poderes? As tuas autoridades, comissários de saúde e catedráticos não poderão levar mais longe do que já levaram as proibições de que rodearam o meu trabalho de investigação do cancro. Todo o meu trabalho de dissecação e de observação ao microscópio foi feito, apesar de expressa proibição. As viagens levadas a cabo a Inglaterra e a França de nada serviram para prejudicar-me. Só lhes era possível ater-se ao terreno que sempre haviam conhecido – o da patologia. Enquanto eu, Zé Ninguém, salvei mais que uma vez a tua própria vida. «Quando eu conseguir dar o poder aos meus chefes do proletariado alemão, havemos de o esmagar! Ele corrompe a nossa juventude proletária, afirma que o nosso proletariado padece das mesmas insuficiências sexuais que a burguesia, transforma as nossas organizações juvenis em bordéis! Afirma que sou um animal! Destrói a minha consciência de classe!» É verdade que tento destruir os ideais que constróis à custa de ignorares o teu bom senso e a tua capacidade mental, Zé Ninguém. Só desejas a imagem irreal da tua esperança eterna, a que não te será possível alcançar. Mas só armado da verdade poderás ter a terra nas tuas mãos. »Expulsem-no do país! É um sabotador da tranqüilidade e da ordem. É espião a soldo dos nossos inimigos de sempre. Comprou uma casa com dinheiro de Moscou (ou seria de Berlim?)!» Tu não entendes, Zé Ninguém. Era uma vez uma velhinha que tinha medo de ratos. Era minha vizinha e sabia que eu tinha ratos no laboratório instalado na minha cave. Tinha medo que os ratos lhe trepassem pelas saias e por entre as pernas, medo que não teria se alguma vez houvesse conhecido a alegria do amor. Eram esses ratos que eu utilizava para tentar entender o processo de putrefação que é o teu cancro, Zé Ninguém. Acontece que eras meu senhorio e que a mulherzinha em questão te pediu para me pores na rua. Coisa que tu, com toda a tua coragem, a tua riqueza ética, fizeste de bom grado. Tive, pois, de comprar uma casa para poder continuar a observar os animais em teu proveito, sem que pudesses vir perturbar-me com a tua covardia. E que mais aconteceu depois disto, Zé Ninguém? Como delegado de Justiça, ambicioso e mesquinho, desejoso de utilizar a minha reputação de homem perigoso para tua promoção na carreira, denunciaste-me como espião alemão ou russo e conseguiste que a acusação me levasse à prisão. Mas valeu a pena assistir à tua perturbação e vergonha durante o julgamento. Cheguei a ter pena de ti, pobre funcionário público, tão miserável era a tua presença. E os agentes secretos que enviaste à minha casa com mandado de busca de «material de espionagem», não pereciam particularmente respeitadores da tua pessoa. Encontrei-te mais tarde na pessoa de um pequeno juiz do Bronx, que albergava a frustração de não ter alcançado ainda assento em mais altas esferas. Acusaste-me então de possuir livros de Lenin e de Trotsky na minha biblioteca. Nem sequer sabes para que serve uma biblioteca. Disse-te então que também lá poderias encontrar Hitler, Buda, Jesus Cristo, Napoleão e Casanova. Porque, tal como tentei explicar-te então, a peste emocional deve conhecer-se na sua gênese e em todas as suas formas, o que pareceu surpreender-te, magistradozito. «Prendam-no! É, fascista, despreza o povo!» Tu não és o povo, pobre juiz de província. És tu que desprezas o povo, pois que preferes assegurar a tua carreira a tomar a defesa dos seus direitos. Muitos foram também os grandes homens que to disseram, homens que nunca ouviste nem leste. Faz parte do meu respeito pelas pessoas expor-me ao perigo de dizer-lhes a verdade. Posso jogar brídge contigo ou trocar algumas graças; mas nunca me sentarei à tua mesa porque tu és um defensor impotente dos Direitos do Homem. «O homem é trotskista! Prendam-no! É, um agitador do povo, maldito comunista!» Eu não agito o povo, mas sim a tua confiança em ti, a tua humanidade, e é isso que te é difícil de suportar. Porque aquilo que deveras desejas é um maior número de votos, ou a tua promoção social, ou um assento no Supremo, ou ser simplesmente o grande chefe de todos os proletários. A tua justiça e a tua mentalidade de ditador são a corda que garrota o progresso do mundo. Que fizeste a Wilson, esse grande e generoso Wilson? Para ti, juiz do Bronx, era apenas um «sonhador»; para ti, futuro chefe de todos os proletários, era um «explorador do povo». Assassinaste-o, Zé Ninguém, com a tua indolência, a tua ignorância, o teu medo da esperança. Quase me assassinaste também, Zé Ninguém. Lembras-te do meu laboratório, há dois anos? Eras então um simples assistente. Estavas desempregado e havias-me sido recomendado como socialista eminente, membro de um partido governamental. Recebeste um bom salário e eras livre, no pleno sentido da palavra. Inclui-te em todas as minhas deliberações, porque acreditei em ti e na tua missão. Lembras-te do que se passou? A liberdade subiu-te à cabeça. Durante dias, vi-te passeando de cachimbo na boca, sem fazer literalmente nada e sem que eu entendesse porquê. De manhã, quando eu chegava ao laboratório, esperavas em ar de provocação que fosse eu o primeiro a saudar-te. Eu gosto de saudar as pessoas em primeiro lugar, Zé Ninguém. Mas se esperam que eu o faça, isso aborrece-me porque, no teu entender das coisas, sou eu o teu «superior hierárquico», o teu «patrão». Deixei-te abusar da tua liberdade durante alguns dias e depois decidi-me a ter uma conversa contigo. Admitiste então, com lágrimas nos olhos, que não sabias o que fazer integrado neste novo sistema. Não estavas habituado à liberdade. No anterior local de trabalho nem sequer eras autorizado a fumar diante do teu chefe, partia-se do princípio que só abrias a boca quando te dirigiam a palavra, a ti, futuro chefe de todos os proletários. E quando te encontravas perante a liberdade genuína, a tua atitude era de impertinência e provocação. Entendi-te e conservei-te no lugar. Pouco tempo depois despediste-te e foste relatar tudo o que sabias das minhas experiências a um psiquiatra «policial». Foste tu o informador secreto, um dos hipócritas e delatores que instigaram a campanha de imprensa que se desencadeou contra mim. És assim, Zé Ninguém, sempre que te é dado a provar a liberdade-só que, contrariamente às tuas intenções, a tua campanha fez o meu trabalho avançar dez anos no tempo. Por isso te abandono, Zé Ninguém. Não mais estarei ao teu serviço, nem é minha intenção condenar-me a morte lenta por teu amor. Não poderás seguir-me na trajetória que me impus. Ficarias aterrorizado se tivesses alguma idéia do que te espera no futuro. Porque a partir da agora és tu quem governa o futuro e as minhas conquistas solitárias farão parte do teu futuro. Mas não te quero como companheiro de viagem – como companheiro, só és inofensivo à mesa de um bar, nunca para onde eu vou. «Fora com ele! Este homem ridiculariza a civilização que eu, o homem comum, ajudei a Construir. Sou um homem livre numa democracia livre!» Tu és o nada, Zé Ninguém, o nada absoluto. Não foste tu quem construiu esta civilização, mas sim um punhado dos teus melhores mestres. Quando te encontras integrado num processo de construção não fazes a menor idéia de que construção se trata. E quando alguém te solicita para que tomes a responsabilidade da construção chamas-lhe «traidor do proletariado» e corres a acolher-te junto do Pai de Todos os Proletários, que não te solicita. Nem és livre, Zé Ninguém. Não fazes a menor idéia do que é viver em liberdade. Não foste tu quem disseminou a peste emocional na Europa e na América? Pensa em Wilson. «Ouçam, mas este tipo acusa-me a mim, um Zé Ninguém! Que poder tenho eu para influenciar o presidente dos Estados Unidos? Eu cumpro o meu dever, faço o que me manda o meu patrão e não me meto em altas políticas». E quando arrastas milhares de homens, mulheres e crianças para as câmaras de gás, mais não fazes que cumprir o que te mandam, não é assim, Zé Ninguém? És tão inofensivo que nem sequer te dás conta do que se passa. És um pobre diabo que nada tem a dizer, sem opinião própria; quem és tu para te meteres na política? Eu sei, já te ouvi a mesma tirada com freqüência. Mas deixa-me perguntar-te: porque não cumpres o teu dever quando alguém te afirma que és responsável pelo teu trabalho, ou que não deves bater nas crianças, ou seguir ditadores? Onde está então o teu sentido do dever, a tua inócua obediência? Não, Zé Ninguém, tu não ouves quando fala a verdade, só podes ouvir o ruído sem sentido. E gritas então «Viva!». És cobarde e cruel, sem o mínimo senso do teu verdadeiro dever, o de ser humano e preservar a tua humanidade. És uma medíocre imitação do sábio e extraordinária a da do ladrão. Os teus filmes, programas de rádio e histórias de quadradinhos abundam em toda a espécie de crimes. Terás de arrastar ainda durante séculos a tua mediocridade antes de poderes tornar-te senhor de ti próprio. Se me separo de ti é a fim de melhor poder servir o teu futuro. Porque à distância não podes atingir-me e tens mais respeito pelo meu trabalho. Desprezas o que te está perto. Colocas os teus lideres em pedestais porque doutra forma não poderias «fazer de conta» que os respeitas. É, por isso que, desde que a história é história, os grandes homens sempre souberam manter-te à distância. «O tipo é megalomaníaco! Está completamente doido!» Eu conheço a facilidade com que diagnosticas de loucura toda a verdade que te desagrada, Zé Ninguém. E como te consideras o espécime acabado do homo normalis. Duma maneira ou de outra, condenas à reclusão os loucos, e são as pessoas normais que governam o mundo. A quem pedir contas, então, de toda essa miséria? A ti, nunca, tu apenas cumpres o teu dever, e quem és tu para poderes emitir uma opinião própria? Eu sei, não precisas de o repetir. Não és tu que contas, Zé Ninguém. Mas quando penso nos teus filhos recém-nascidos, no modo como os torturas a fim de os transformar em criaturas «normais» à tua imagem e semelhança, sou tentado a aproximar-me de ti novamente a fim de impedir os teus crimes. Mas sei também que tiveste o cuidado de proteger-te a ti próprio através de uma instituição como o Conselho de Educação. Gostaria de levar-te a dar uma volta comigo por este mundo, Zé Ninguém, e mostrar-te o que és e o que foste, no presente e no passado, em Viena, em Londres, em Berlim, como «representante do poder popular», como membro de algum credo. Poderias encontrar-te em toda a parte e reconhecer-te, quer fosses francês, alemão ou hotentote, se tivesses a coragem de olhar para ti próprio. «Ouçam-no! Agora insulta-me, ofende a minha honra! Ridiculariza a minha missão!» Não é isso o que tento fazer, Zé Ninguém. Muita alegria me darias se me contradissesses, se me desses provas de que és capaz de olhar para ti e reconhecer-te. É, necessário que dês provas, o mesmo tipo de provas que se exigem dum construtor civil: a casa tem de ser visível e habitável. Não tem o direito de berrar que alguém lhe lesa a honra quando afirma que ele apenas discursa sobre a «missão do construtor civil» sem realmente construir o que quer que seja. Do mesmo modo te exijo que proves que és o suporte do futuro da humanidade. Deixa de usar covardemente os chavões da «honra da nação» ou do «proletariado» para te esconderes – para mim, já tens à mostra demasiado do que realmente és. Tal como ia dizendo, aqui te deixo. A reflexão de muitos anos e muitas noites sem dormir levaram-me à necessidade de o fazer. Os teus futuros chefes de todos os proletários são bem menos complicados. Um dia são teus lideres, amanhã serão capazes de fazer o que quer que seja para continuarem a desempenhar qualquer cargo. Mudam de convicções como quem muda de camisa. Eu não. Continuo a estimar-te e a preocupar-me com o teu destino. Mas uma vez que és incapaz de respeitar quem quer que seja que te esteja perto, é necessário criar entre nós certa distância. Serão os teus bisnetos os herdeiros do meu trabalho, e por eles esperarei a fim de poder gozar os meus frutos, tal como durante trinta anos o esperei de ti. Tu, no entanto, continuaste berrando: «Abaixo o capitalismo!», ou «Abaixo a Constituição americana!». Vem comigo, Zé Ninguém. Vou mostrar-te alguns quadros da tua vida quotidiana. Não fujas. Serão odiosos, mas salutares, e o todo não é tão terrivelmente perigoso. Há cem anos, aprendeste a papaguear os físicos que construíram máquinas e te diziam que o espírito não existe. Surgiu então um grande homem que te demonstrou o teu próprio funcionamento que desconhecia a conexão entre o teu espírito e o teu corpo. Disseste então: «Ridículo! Psicanálise! Charlatanices! Pode-se analisar a urina, não se pode analisar a psique humana». Disseste-o porque em matéria de medicina pouco mais sabias para além da análise de urinas. A luta pelo espírito durou aproximadamente quarenta anos. Conheço bem os meandros dessa luta, porque a partilhei em teu nome. Descobriste então que se pode ganhar muito dinheiro com as perturbações da mente humana. Basta fazer com que um doente venha diariamente durante uma hora ao longo de alguns anos e que essa hora a pague caro. Então, e só então, começaste a acreditar na existência do espírito, enquanto, concomitantemente; se ia consolidando o conhecimento do teu corpo, Descobri que o teu espírito é uma função da tua energia vital, isto é, por outras palavras, que existe uma unidade entre o corpo e o espírito. Esta foi a linha de reflexão e investigação que segui, chegando à conclusão de que expandes essa energia vital sempre que te sentes bem e afetivamente seguro e que a retrais para dentro do teu próprio corpo sempre que tens medo. Durante quinze anos mantiveste-te silencioso quanto ao conteúdo destas conclusões. O que não me impediu de prosseguir a mesma via e de descobrir que esta energia vital, à qual dei o nome de «orgone», se encontra também presente na atmosfera, fora do teu corpo. Consegui torná-la visível na escuridão e montar aparelhagem capaz de a amplificar e tornar luminosa. Enquanto tu jogavas às cartas, ou te entretinhas a torturar a tua mulher e os teus filhos, eu permaneci várias horas por dia, durante dois longos anos, na minha câmara escura, procurando certificar-me de que havia realmente isolado a tua energia vital. Gradualmente, aprendi a demonstrá-lo a outros e a constatar que lhes era possível verificar o mesmo que eu. Mas tu, na tua qualidade de médico crente de que o psíquico é apenas uma secreção das glândulas endócrinas, apressas-te a afirmar a um dos meus doentes recuperados que o meu sucesso terapêutico foi apenas a resultado de «sugestão».Ou, sofrendo como sofres de dúvidas obsessivas e fobias relacionadas com a obscuridade, afirmas em relação aos fenômenos que acabas de observar que também eles se devem à «sugestão» ou que te sentes como que saído de uma sessão espírita. És assim, ZéNinguém. Em 1945 utilizas as mesmas reflexões asnáticas sobre a «alma» que em 1922 utilizavas para lhe negar a existência. Continuas sendo o mesmo Zé Ninguém. Em 1984 continuarás de ânimo leve a ganhar dinheiro com o orgone e, igualmente deânimo leve, a difamar, a abafar no silêncio e a tentar destruir qualquer outra verdade, tal como o fizeste com a descoberta do psíquico e da energia cósmica. E permanecerás o mesmo Zé Ninguém cheio de «espírito crítico», berrando «Viva!» a este e àquele. Lembras-te do que disseste da descoberta de que a Terra não é imóvel, mas gira sobre si própria e se move no espaço? Não tiveste outra resposta senão a graça estúpida de que, a partir de então, os copos passariam a tombar das bandejas dos criados. Foi há alguns séculos, de modo que já esqueceste, Zé Ninguém. Tudo o que sabes de Newton é «que lhe caiu uma maçã na cabeça» e tudo o que sabes de Rousseau é que preconizava o «retorno à natureza».A única coisa que aprendeste com Darwin foi a «sobrevivência dos mais aptos», não as tuas origens como primata. Do Fausto de Goethe, que tanto te agrada citar, entendeste tanto como um gato entende de matemática. És estúpido e vaidoso, vazio e macaqueante, Zé Ninguém. Sempre encontras forma de desvirtuar o essencial e assimilar o errôneo. O teu Napoleão, esse homenzinho de galões doirados, que nada nos legou senão o cumprimento obrigatório do serviço militar, surge nas tuas livrarias todo encadernado a doirados, enquanto o meu Kepler, que teve a intuição da tua origem cósmica, não se pode encontrar em nenhuma livraria. É por isso que continuas no lameiro, Zé Ninguém. É, por isso, que me vejo obrigado a contradizer-te cada vez que pareces estar convencido de que eu trabalhei e lutei durante vinte anos, que sacrifiquei enormes quantias, apenas para te «sugerir» a existência da energia cósmica do orgone. Não, Zé Ninguém, aprendi realmente a sanear o mal que te aflige, coisa que não podes crer. Bem te ouvi afirmar na Noruega que «quem quer que seja que gaste uma tal quantia em meras experiências deve ser completamente louco». Claro! Julgas por ti próprio. Só te é possível tirar, dar nunca, por isso te é inconcebível que quem quer que seja possa ter alegria na dádiva, tal como te é inconcebível a hipótese de estar com uma mulher sem que imediatamente se te ponha a questão de a «comer». Talvez me fosse possível respeitar-te se fosses ao menos grande quando «roubas» felicidade. Mas até nisso és medíocre. Não és ignorante, mas como o teu estado psíquico habitual é de prisão de ventre, és incapaz de criar – roubas o osso e rastejas para o primeiro buraco onde possas roê-lo em paz, tal como Freud um dia te disse. Atracas-te ao primeiro indivíduo generoso que encontras e secá-lo até à medula no que tenha para dar-te. E é a ele que chamas idiota. Devoras-lhe o que possa dar-te de sabedoria, de alegria, de grandeza, mas és incapaz de digerir o que dele te venha. Sai-te nas fezes, e o fedor que exala é pavoroso. Ou, para salvaguardares a tua dignidade após o que é realmente uma violação e um furto, chamas-lhe alienado, charlatão ou perverso sexual. Ora aí temos: «Perverso sexual».Lembras-te, Zé Ninguém (eras tu presidente de uma sociedade científica), de como te foi necessário espalhar o boato de que eu encorajava.os meus filhos a assistirem ao ato sexual? Passou-se isto pouco depois de eu ter publicado o meu primeiro artigo sobre os direitas da criança à atividade genital. De uma outra vez (eras presidente temporário de uma espécie de associação cultural de Berlim) fizeste correr que eu saía de carro para o campo com adolescentes a fim de as seduzir. Nunca seduzi adolescentes, Zé Ninguém. A obscenidade da fantasia é tua, não minha. Amo a minha mulher e a minha filha – é a tua incapacidade de amares as tuas que te leva ao desejo inconfessável de andar pelos bosques seduzindo rapariguinhas. E tu, rapariguinha, não é verdade que sonhas com o «másculo» ídolo cinematográfico? Não és tu que levas a sua fotografia contigo para a cama? Que fazes o jogo da aproximação e da sedução, afirmando-te como maior de 18 anos? E não és tu ainda que o acusas em tribunal de crime de violação? E imaculada de culpas ou condenada, serão as tuas avós que continuarão a beijar-lhe as mãos. Querias ir para a cama com ele, mas foste incapaz de assumir a responsabilidade. Por isso o acusas, pobre menina violada. Ou tu, mulher madura, também dita violada, que conheceste maior prazer na relação sexual com o teu motorista que com o teu marido. Não foste tu que o seduziste por lhe sentires mais sã a sua sexualidade de homem de cor? E não foi então que o acusaste de crime, a ele que não possuía apoios, vitima da sua condição de «raça inferior»? Evidentemente que não, tu és pura e branca, os teus antepassados vieram no May-flower, és «Filha Desta ou Daquela Revolução», Nortista ou Sulista, cujo avô enriqueceu à custa da escravatura negra. Como és inocente, pura, branca, como é inexistente o teu desejo do Negro, pobre criatura. Miserável cobarde, descendente de uma raça de caçadores de escravos, descendente de um Cortês que atraiu milhares de astecas confiantes à emboscada onde os exterminou. Desgraçadas filhas desta ou daquela revolução. Mas qual é a vossa concepção da emancipação? Que fizeram do esforço dos revolucionários americanos, dos esforços de Lincoln, que vos libertou os escravos para serem entregues agora ao «mercado livre da competição»? Olhem para o espelho, filhas de revoluções – vejam como são idênticas às «Filhas da Revolução Russa», meninas inocentes e castas. Se ao menos uma vez na vida vos houvesse sido possível dar amor a um homem, quantas vidas de negros, de judeus, de trabalhadores, poderiam ter sido salvas. Tal como esmagais a vida de vossos filhos, assim vos aproximais dos negros para matar em vós próprias o pouco que resta do impulso de amar, a fantasia pornográfica e frívola da luxúria. Como eu vos conheço, filhas e mulheres da alta finança, e a toda a vileza contida nos vossos sexos mortos. Não, filhas desta ou daquela revolução, não tenho a menor intenção de me tornar um L.L.D. ou comissário, cargo que deixo de bom grado às rígidas criaturas em uniforme que vos comandam. Guardo o meu amor para os pássaros e esquilos, os animais livres que tão perto estão dos negros, não os negros de Harlem, com os seus colarinhos engomados e fatiotas rígidas, mas os negros integrados nas suas tribos na floresta. Não as rotundas mulheres negras de argolas nas orelhas, cujo prazer negado lhes arredonda os flancos até ao absurdo, mas os corpos esbeltos e suaves das raparigas dos mares do Sul, em cujas carnes se compraz a vileza dos homens deste ou daquele exército, raparigas que desconhecem que o seu amor. puro é «usado» como numa relação de bordel. Não, menina, tu desejas a vida que não entendeu ainda até que ponto é explorada e desprezada. Só que os teus dias estão contados. A tua versão «virgem da raça germânica» foi extinta - ainda subsistes como «virgem da classe proletária» na Rússia, ou como «filha da Revolução Universal». Mas daqui a uns quinhentos, a uns mil anos, quando rapazes e raparigas saudáveis puderem enfim proteger o amor e nele achar alegria, nada mais restará de ti do que a memória do teu ridículo. Não foste tu que recusaste ouvir a maravilhosa voz vibrante de vida de Marian Anderson, tu, mulherzinha cancerosa? O seu nome permanecerá na música dos séculos, quando já nada restar de ti. Pergunto a mim próprio se também a ela lhe é possível pensar em termos de séculos, ou se faz parte do número dos que proíbem o amor de seus filhos. Ignoro-o – os verdadeiros vivos ora correm ora vagueiam. A própria vida os satisfaz – a verdadeira vida que tu desconheces, mulherzinha putrefata. Inventaste o mito de que representas «A SOCIEDADE», mito que o teu Zé Ninguém se apressou a ratificar de alma e coração. Não o és. É verdade que continuas a anunciar quotidianamente no teu jornal judeu ou cristão que e quando se vai a tua filha deitar com um homem, mas qual é o indivíduo com o mínimo de senso a quem tal coisa interessa? «A Sociedade» sou eu e o carpinteiro e o jardineiro e o professor e o médico e o operário. Isto, e não tu, criatura rígida, dissimulando a tua putrefação. Tu não és a vida, mas sim a sua distorção. Mas entendo porque te retiraste para a tua fortaleza de bens e poder - que outra coisa poderias fazer face à mesquinhez dos carpinteiros, jardineiros, médicos, professores e operários? Sendo o horror que é, a tua retirada justifica-se. Mas a mesquinhez e a vileza estão-te nos ossos, na tua prisão de ventre, no teu reumatismo, na tua dissimulação, na tua negação da vida. És desgraçada, mulher, porque os teus filhos se destroem, as tuas filhas se prostituem, os teus homens secam. e a tua vida se putrefaz, e com ela os teus tecidos. E não me inventes histórias, Filha da Revolução; eu já te vi completamente nua. És covarde e sempre o foste. Tiveste a felicidade nas mãos e deixaste-a fugir. Pariste presidentes e infectaste-os com a tua vileza. Deixam-se fotografar a pendurar medalhas nas pessoas em perpétuo sorriso, e não se atrevem a nomear as coisas pelo seu nome. Tiveste o mundo nas tuas mãos e lançaste-lhe em Hiroxima e Nagasaqui as tuas bombas atômicas – isto é, o teu filho fê-lo por ti. Cavaste o teu túmulo por tuas próprias mãos, mulherzinha cancerosa. Com uma, só destas bombas, aniquilaste para sempre a tua classe e toda a tua casta. Porque não tiveste sequer a humanidade de avisar os homens, as mulheres e as crianças de Hiroxima e Nagasaqui. Nem um gesto de grandeza, e por esse gesto não cumprido toda a tua espécie desaparecerá como um seixo largado no oceano. Nem importa o que possas ter a dizer ou penses, pobre parideira de tantos mentecaptos – daqui a; quinhentos anos serás motivo apenas de pasmo e gáudio. Que o não sejas já é apenas parcela da miséria do mundo. Sei o que vais dizer, criatura. Todas as aparências são a teu favor; «a defesa do país» etc. Usou-se o mesmo argumento outrora na velha Áustria. Nunca ouviste um cocheiro vienense berrar: «Viva o meu Kaiser!» Pois é a mesma música. Não, desgraçada, de ti não tenho medo -não há nada que possas fazer-me. É verdade que o teu genro é vice-presidente da Câmara ou que o teu sobrinho é alto funcionário do Ministério das Finanças. Mais chazinho, menos chazinho e vais-lhes dizendo umas coisas a meu respeito. Ao indivíduo que quer passar a presidente da Câmara ou a diretor-geral não há-de deixar de convir a utilização duma vítima em nome da «Lei e da Ordem». Bem sei como se mexem os cordelinhos, mas não há-de ser isso que te safa – a minha verdade tem mais força do que tu. «O homem é um obcecado, um fanático! Será que eu não tenho nenhuma função na sociedade?»Apenas te demonstrei que és medíocre e vil, Zé Ninguém, tu e a tua mulher - ainda nem sequer mencionei a tua utilidade e importância. Ou julgas que arriscava o pescoço numa conversa destas se não te achasse importante? Toda a tua mesquinhez e vileza é bem mais grave se vista à luz da tua imensa responsabilidade e importância. Afirma-se habitualmente que és estúpido – ora, eu sei-te inteligente, mas cobarde. Afirmam-te que és a escória da humanidade – eu diria que és a sementeira. Diz-se ainda que a cultura carece da experiência de escravos. Eu afirmo que nenhuma cultura pode ser edificada sobre qualquer forma de escravatura. A monstruosidade deste nosso século tornou ridícula toda e qualquer evolução cultural a partir de Platão. A cultura humana ainda nem sequer existe, Zé Ninguém! Começamos agora a entender a patológica degenerescência do animal humano. Esta «conversa com o Zé Ninguém» ou qualquer outro escrito válido que possa ser publicado hoje em dia estará para a cultura de daqui a mil ou cinco mil anos como a primeira roda de há milênios está para as locomotivas diesel dos nossos dias. Pensas sempre a curto prazo, Zé Ninguém, o teu tempo medeia de uma refeição a outra. Terás de aprender a memória em termos de séculos, e a perspectiva do futuro em termos de milênios. Terás de aprendê-la em termos da verdadeira vida, em termos do teu desenvolvimento desde o primeiro floco plasmático até ao animal humano, capaz de caminhar ereto, mas incapaz ainda de pensar com justeza. Porque a tua memória não retém acontecimentos de há dez ou vinte anos, continuas repetindo as mesmas asneiras de há dois milênios. E mais ainda: agarras-te a elas – à tua «raça», «classe», «nação», aos teus ritos religiosos compulsivos, à supressão do amor, como um piolho se aferra à pele. Nem te atreves a ver até que ponto te encontras atolado na tua miséria. De vez em quando, pões a cabeça pra fora e berras «Viva!». O coaxar duma rã no charco tem pelo menos mais sentido. «Porque não me tiras então do lameiro? Porque não participas nas minhas reuniões do partido, nos meus parlamentos, nas minhas conferências diplomáticas? És um traidor! Dizes que lutaste por mim, que sofreste e que te sacrificaste, e agora insultas-me!» Eu não posso arrancar-te do lameiro. Só tu podes fazê-lo. Nunca participei dos teus círculos e conferências porque a regra de ouro consiste em «calar o essencial», «falar apenas do acessório». É verdade que durante vinte e cinco anos lutei por ti, te sacrifiquei a minha segurança profissional e a paz da minha família; financiei organizações tuas, participei em marchas e manifestações de protesto. É verdade que, na minha qualidade de médico, te dei milhares de horas, sem receber qualquer compensação – errei de país em país por tua causa, substituindo-te muitas vezes quando a voz se te apagava no calor dos brados. Fui literalmente capaz de arriscar a vida por ti, no tempo da grande praga política, quando te transportava clandestinamente a melhor abrigo, sob pena de morte se descoberto; ajudei a proteger os teus filhos das investidas da policia contra as suas manifestações públicas - e gastei tudo quanto me restava na criação de instituições de saúde mental onde fosse possível achar orientação e apoio. Mas tu nada tiveste para me dar em troca. Querias ser salvo, mas nem uma só vez no decorrer destes trinta monstruosos anos de peste emocional foste capaz de gerar uma única idéia fecunda. E uma vez finda a segunda guerra mundial encontras-te exatamente no mesmo ponto onde estavas quando ela começou; talvez uns milímetros mais à «esquerda» que à «direita», mas para frente, nada! Malbarataste as aquisições da luta francesa pela emancipação, e até a extraordinária emancipação russa conseguiste transformar em aborto aos olhos do mundo. O teu falhanço, que foi, e que só espíritos verdadeiramente grandes e isolados podem entender sem cólera, sem desprezo, foi causa do desespero em todo o mundo de todos aqueles dispostos a sacrificar-te tudo. Durante todos esses anos de horror, essa sangrenta metade de século, nem uma só palavra se te ouviu que não fosse banal, nem uma só palavra de bálsamo ou sequer de bom senso. No entanto, não desanimei de todo, pois aprendi a conhecer-te ainda melhor e mais profundamente. Entendi que não te era possível pensar ou agir de outro modo. Reconheci então o medo mortal que te suscita toda a forma de vida, medo que sempre ameaça a continuidade de tudo o que tentes de genuíno e certo. Tu não podes entender que o conhecimento seja fonte de esperança. A esperança, para ti, sempre terá de vir dos outros, nunca de ti próprio. É por isso que, face à minha atitude perante o colapso do teu mundo, me chamas «otimista», Zé Ninguém. E queres saber porque sou otimista e crente no futuro? Ouve: Enquanto fui ficando agarrado a ti, tal como foste e continuas sendo, fui levando pontapés, vítima da tua curteza de vistas. Vez após vez esqueci as ofensas que se seguiam ao apoio que te dava, mil vezes fui forçado a ter em conta a tua insanidade. Até que abri os o lhos e te vi - o primeiro movimento foi de desprezo e cólera, mas aprendi gradualmente a substitui-los pela compreensão do mal que te afeta. Não mais senti raiva perante o colapso da tua primeira tentativa de possuíres a terra. Comecei antes a entender que esse fora o único resultado possível após milhares de anos de repressão da verdadeira vida. Enunciei a lei funcional do que vive, Zé Ninguém, ao tempo em que andavas por ai espalhando a minha insanidade. Eras então um psiquiatra insignificante, com uma certa experiência de movimentos de juventude e com altas probabilidades de uma futura afecção cardíaca, dado que eras impotente – morreste, pois, anos mais tarde, literalmente de coração partido, pois não é impunentemente que se rouba e difama quem quer que seja; na desonestidade é a própria vida que está em causa se um mínimo de pureza ainda sobrevive escondido em ti. E tu possuías essa ínfima centelha, Zé Ninguém. Quando te passaste de amigo para inimigo, pensaste que eu estava «pronto» e deste-me o pontapé final, porque sabias que eu tinha razão e que não te era possível seguir-me. Quando anos mais tarde eu voltei à liça, qual teimoso «sempre-em-pé»,. e agora mais forte, mais exato e determinado que nunca, apanhaste o susto que te foi mortal. Tiveste, porém, tempo de verificar quais os abismos que fui forçado a transpor, o terreno instável que havias preparado para a minha queda. Porque proclamaste como teus, nas tuas tão prudentes organizações, conhecimentos a que só eu te dera acesso? Afirmo-te que a gente honesta que te rodeava o sabia; sei-o porque mo disseram. A tática, a tua, Zé Ninguém, é a via mais rápida para a morte prematura. E porque a vida a teu lado é demasiado arriscada, porque na tua proximidade é impossível servir a verdade sem ser esfaqueado pelas costas e enlameado no rosto, optei pela separação. E repito-o -não a separação do teu futuro, mas da tua proximidade. Não a da tua humanidade, mas a da tua desumanidade e mesquinhez. Mantenho-me capaz de sacrifício em nome da verdadeira vida - não por ti, Zé Ninguém. Só há bem pouco me dei conta do tremendo erro no qual laborei durante vinte e cinco anos: dediquei-me à tua pessoa e à tua forma de vida, crente de que tu eras a vida, a inteireza simples, o futuro e a esperança. Tal como eu, outros foram os que, desprevenidos e de boa fé, em ti procuraram achar o sentido da vida. Nem um só sobreviveu. Sendo assim, decidi-me a não me deixar morrer vitimado pela tua estreiteza de vistas e tua mesquinhez. Porque creio na importância do que faço. Descobri a vida, Zé Ninguém - mas já não cometo o grave erro de confundir-te com o que de vivo pude achar em mim próprio e em ti procurei. A minha contribuição real para a segurança do que é deveras vivo e do teu futuro só será possível se puder, de forma bem clara e nítida, fazer a separação entre a vida, as suas funções e, características e a tua forma de vida. Sei que é necessária coragem para entrar em conflito contigo – mas vou continuar a trabalhar pelo teu futuro, porque me inspiras compaixão e porque não me move o desejo de ser içado à posição de «grande» líder medíocre a que aspiram os teus miseráveis chefes. Há já algum tempo que a vida em ti começa a dar sinais de rebeldia perante a distorção que lhe é imposta. Esta é a hora primeira de um futuro maior, do fim de toda a forma de mediocridade. Porque entretanto o modo como age a peste emocional se foi tornando demasiado óbvio. Acusa a Polônia das intenções de agressão militar, depois de tomada a decisão de agredir a Polônia. Acusa o rival da intenção de crime depois de decidir eliminá-lo. Acusa de pornografia a vida sexual sã, «que tem em mente intenções pornográficas. Já te topamos, Zé Ninguém; vais-te tornando transparente sob a tua fachada de desgraça e submissão. O que te é pedido é que determines o rumo do mundo com o teu trabalho e a tua realização - substituir uma forma de tirania por outra é que nunca. O que se te exige é que te submetas às leis da vida tal como quererias que os outros fizessem; que te modifiques à medida que os vais criticando. Cada vez é mais óbvia a tua predisposição para a tagarelice a tua avidez, a tua irresponsabilidade - o mal de ti que conspurca toda a beleza da Terra. Sei que não te agrada o que ouves, que preferes berrar «Viva!», que és bem capaz de parir o futuro do proletariado do IV Reich. Mas não é menor a minha convicção de que as coisas te vão sendo mais difíceis hoje que no passado – embora sejas ainda brutal sob a tua máscara de sociabilidade e gentileza, Zé Ninguém. Não acreditas? Deixa então que te refresque a memória: Lembras-te da magnífica tarde em que vieste, como lenhador que eras, pedir trabalho à minha cabana na montanha? Depois de farejar-te, o meu cachorro saltou-te aos joelhos. Viste que era cão de boa raça e disseste então: «Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso de mais». Ao que eu te respondi: «Eu não quero ter uma fera amarrada com correntes. Não gosto de cães raivosos.» Ali, lenhador, tenho bem mais inimigos no mundo do que tu, mas continuo a preferir o meu majestoso cão, meigo com toda a gente. Lembras-te do domingo chuvoso em que a angústia perante o fenômeno da tua rigidez biológica me levou a sair de casa, largando o trabalho, para me enfiar num dos teus bares? Sentei-me a uma mesa e pedi um uísque (não, Zé Ninguém, não sou alcoólico, embora goste de beber de vez em quando). Ia, pois, bebendo o meu copo quando te ouvi, no teu paleio de recém-desmobilizado, descrever os Japoneses como «macacos horrendos». E foi então que afirmaste, com a expressão facial que eu tão bem conheço do meu trabalho terapêutica: «Vocês sabem o que a malta devia fazer com os Japoneses da costa ocidental? Estrangulá-los todos, um por um, mas devagar, lentamente, apertar-lhes o garrote a pouco e pouco, assim...», e ias fazendo o gesto com as mãos, Zé Ninguém. O criado apoiava-te, fazia que sim em admiração perante a tua heróica masculinidade. Já alguma vez tiveste um bebê japonês recém-nascido nos braços, patriótico de merda? Durante muitas décadas continuarás ainda a estrangular espiões japoneses, aviadores americanos, camponeses russos, oficiais alemães, anarquistas ingleses e comunistas gregos – hás-de fuzilá-los, condená-los à cadeira elétrica, às câmaras de gás -, o que em nada irá alterar a tua, prisão de ventre generalizada, a tua incapacidade de amar, o teu reumatismo ou a tua doença mental. Não serão os crimes que possas cometer que irão arrancar-te ao lameiro. Olha para ti, Zé Ninguém. É a tua única esperança. Lembras-te, Maria Ninguém, do dia em que vieste ao meu consultório espumando de raiva contra o homem que se tinha separado de ti? Durante anos e anos tiveste-o debaixo de mão, a ele e à tua mãe, tias, sobrinhos e demais família, enquanto o desgraçado se ia encolhendo cada vez mais, dando-te de comer a ti e a todos os outros. Até que num último esforço para manter vivo em si o que a vida possa ter de sentido te deu com os pés e desandou; só que como não se sentia suficientemente forte para poder libertar-se isolado do teu jugo, me veio pedir auxílio. Pagou-te de boa vontade a pensão que lhe foi imposta pela lei, três quartos do total dos seus ganhos – o preço do seu amor pela liberdade. Porque este homem era deveras um grande artista, e a verdadeira arte, tal tomo a ciência genuína, não sobrevive a quaisquer algemas. Tu, porém, na tua raiva cega, o que querias era que fosse ele a sustentar-te totalmente, apesar de teres a tua própria profissão – e sabias que eu o ajudaria a eximir-se a obrigações sem justificação possível. Enfureceste-te. Ameaçaste-me com a polícia porque, segundo dizias, era eu que lhe tirava o que tinha, aproveitando-me da sua necessidade de apoio. Por outras palavras, tu, como mulherzinha medíocre que és, acusaste-me das tuas próprias intenções. Nunca te ocorreu tentar progredir na tua situação profissional, porque isso teria significado a tua independência dohomem por quem, há já tantos anos, nada mais sentias do que ódio. Achas que é assim que se pode construir um mundo novo?, tu que te apresentaste como ligada a certos meios socialistas que «saberiam tudo a meu respeito»? Não vês até que ponto o teu comportamento é típico, que há milhões como tu dispostos a destroçar a Terra? Bem sei que és «fraca» e «só», «dependente da tua mãe», «desamparada», que te odeias a ti própria, que não te suportas e estás desesperada. E é por isso que destróis a vida dó homem com quem viveste, Maria Ninguém, e a tua vida segue o rumo medíocre da maior parte das vidas. E sei ainda que os juizes e advogados estão do teu lado porque não possuem outra resposta para a tua desgraça. Revejo-te a ti também, secretariazinha dum tribunal de província, tomando notas sobre o meu passado e o meu presente, sobre as minhas opiniões acerca do sentido da propriedade, acerca da Rússia e da democracia. Perguntam-me qual a minha posição social. Respondo que sou membro honorário de três sociedades científicas, entre as quais a Sociedade Internacional de Plasmogenia, o que parece impressionar a audiência. Na sessão seguinte, o oficial de diligências diz-me: «Há aqui uma coisa estranha – que o senhor é membro da Sociedade Internacional de Poligamia. Isto está certo?» E ambos nos rimos do teu engano, criaturinha medíocre. Percebes agora por que motivo as pessoas me difamam? Na base estão as tuas fantasias, não a minha forma de viver. É ou não verdade que tudo o que recordas de Rousseau é o seu apelo de «retorno à natureza», o fato de que pouca atenção deu a seus filhos e que os colocou num orfanato? A tua natureza é perversa, porque apenas vês e ouves o que é desagradável, e nunca o que possa ser bom ou ter beleza. «Ouçam! Eu vi-o correr as persianas à uma da manhã. O que é que vocês pensam que o tipo estava a fazer? E durante o dia tem-nas sempre abertas. Há! Ali há qualquer coisa!». De pouco ou nada te servirá continuar a usar esses métodos contra a verdade. Nós já os conhecemos. Não são as minhas persianas que te preocupam, o que te interessa é ocultar a minha verdade. Tu queres continuar a ser difamador e delator, sempre que o teu vizinho se não acomode ao teu modo de vida, ou porque é bondoso, ou livre, ou simplesmente porque trabalha e pouco se incomoda contigo – por isso desejas que o prendam. És demasiado intrometido, Zé Ninguém, metes o nariz onde não és chamado para em seguida difamares, as costas quentes de saberes que a polícia não divulga a identidade dos seus informadores. «Ouçam, contribuintes! E é isto um professor de Filosofia que uma das grandes universidades da vossa cidade quer contratar para ensinar a nossa juventude! Fora com ele!». E a tua não menos preclara esposa e contribuinte põe a circular um abaixo-assinado contra o professor em causa, que, evidentemente, perde assim o lugar. Tu, virtuosíssima esposa e contribuinte, honorável parideira de patriotas, assim consegues ser mais poderosa que quatro mil anos de filosofia natural. Só que começamos a entender-te e, mais tarde ou mais cedo, a tua hora há-de soar. «Ouçam bem todos aqueles que se interessam pela moral pública. Na nossa esquina mora uma mulher com a filha. E a filha recebe o namorado à noite. Vamos levá-la a tribunal, acusá-la de manter uma casa de passe! Polícia! Queremos a proteção dos costumes!» E a mãe em causa é condenada, porque tu espias o que se passa na cama dos outros. Demasiado claramente o expressas, demasiado claras são as motivações dos teus apelos à «moral e à ordem».Ou não é verdade que tentas beliscar o rabo a todas as empregadas, Zé Ninguém moralista? SIM, DESEJAMOS PARA OS NOSSOS FILHOS A EXPRESSÃO LIVRE E ABERTAMENTE ALEGRE DO SEU AMOR E QUE NÃO TENHAM QUE VIVÊ-LO CLANDESTINAMENTE, EM BECOS ESCUROS, NA OBSCURIDADE DE ENTRE PORTAS. Queremos respeitar os pais corajosos e honestos que entendem e protegem o amor adolescente dos seus filhos e filhas. Tais pais e mães são o germe das gerações futuras, cujo corpo e sentidos serão sãos, libertos enfim da obscenidade das tuas fantasias, Zé Ninguém impotente do século XX. «Ouçam a última! Houve um rapaz que foi ter com ele para se tratar e teve de sair correndo com as calças na mão, porque, o tipo é homossexual!» Não sentes o fedor do teu hálito, Zé Ninguém, quando espalhas por aí esta «verdade»? Não lhe reconheces a origem no teu monte de esterco, na tua prisão de ventre e lascívia? Eu nunca tive desejos homossexuais, tal como tu; nunca tentei seduzir rapariguinhas, nunca violei uma mulher, nunca sofri de prisão de ventre; nunca roubei afeto, como tu; só me liguei a mulheres que me queriam bem e a quem eu queria; nunca me exibi publicamente, como tu fazes - nem me deleito como tu em fantasias obscenas. «Mas ouçam esta: o tipo atreveu-se de tal forma com a secretária que a rapariga teve que fugir de casa. Vivia com ela de persianas sempre corridas e a luz acesa até às três da manhã!». E De la Mettrie era um sensualão que morreu atochado de bolos, segundo a tua versão; e o príncipe Rodolfo vivia em mancebia; e a Srª Roosevelt nunca foi muito certa da cabeça, e o reitor da Universidade X encontrou a mulher em flagrante delito de adultério, e o professor desta ou daquela escola de província tem uma amante. Não és tu que.o afirmas, Zé Ninguém? Não és tu que espalhas tais «ditos»? Tu, miserável cidadão do mundo, que durante. milênios assim malbaratas a tua própria vida, cavando tu mesmo a fossa onde te manténs. «Agarrem-no! O tipo é um espião alemão, ou talvez russo, ou mesmo da Islândia! Eu vi-o às três da tarde na rua 86 de Nova Iorque e ainda para mais com uma mulher!» Sabes qual é o aspecto dum piolho quando exposto a um foco de luz muito intenso? Bem me parecia que não. Um dia virá em que a lei usará da sua força contra o piolho humano – leis capazes de proteger a verdade e o amor. Tal como hoje se enviam para reformatórios adolescentes carecidos de afeto, haverá um dia instituições onde isolar os que enlameiam a reputação dos outros. Surgirão novos juízes e delegados de justiça, que não mais administrarão em formalismo e impostura, mas sim em verdade e tolerância. Leis novas hão-de erigir-se em proteção da vida, leis a que terás de obedecer, por muito que isso te pese. Sei, porém, que durante três, cinco ou dez séculos teremos de suportar-te como o portador por excelência da peste emocional, o riúcleo da difamação, da intriga, da inquisição abusiva. Mas acabarás por sucumbir à tua própria pureza; hoje enterrada tão profunda e inacessivelmente no teu ser. Posso contudo asseverar-te que nenhum Kaiser, nenhum Czar ou Pai do proletariado pode jamais conquistar-te. Escravizar-te, sim, mas nenhum foi capaz de superar a tua mediocridade. A única coisa capaz de conquistar-te será o teu sentido da pureza, a tua aspiração à verdadeira vida – e quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Uma vez superada a tua mediocridade e mesquinhez, começarás a pensar – de início, sem dúvida, errática, ridícula e erroneamente, mas pensarás com seriedade. Terás de aprender a suportar a dor que todo o esforço de pensamento comporta em si mesmo, tal como eu e outros suportamos a pena de pensar-te – durante anos, em silêncio, de dentes cerrados. Esta nossa dor far-te-á pensar. E quando começares a fazê-lo sentirás a magnitude do absurdo dos teus quatro milênios de «civilização». Ser-te-á difícil entender como foi possível que os teus jornais nada mais tivessem a relatar e comentar que paradas sem sentido, condecorações, crimes, enforcamentos, diplomacias, calúnias, mobilizações militares, desmobilizações, de novo mobilizações, pactos, bombardeamentos – e que não tenhas nunca reagido com agressividade ou te tenhas sequer apercebido do perigo que corrias. Talvez te houvesse sido possível entenderes-te a ti próprio se não tivesses engolido bovinamente tudo o que te cala nas mãos. Mas o que deveras será difícil aceitar é a verificação do fato de que tudo foste macaqueando e papagueando através dos séculos; o fato de que o que no teu íntimo acharas certo o era realmente, e que tomaste por patrióticos os teus erros. Terás vergonha da história que fizeste, e nisso reside a única esperança de que os nossos bisnetos não venham a ser obrigados a ler a tua história militar. E não mais será possível a montagem duma grande revolução apenas para pôr em cena um novo «Pedro, o Grande».UM OLHAR AGORA PARA O FUTURO. Não saberia dizer-te ao certo como será. Não sei se alcançarás a Lua ou Marte com o orgone cósmico que me foi possível isolar. Nem posso saber de que forma se irão erguer no espaço e aterrar as tuas naves espaciais, ou se utilizarás a luz do Sol para iluminar à noite as tuas casas. Mas sei O QUE NÃO MAIS farás dentro de quinhentos, ou mil, ou cinco mil anos. «O tipo é visionário! E ainda por cima ditador, a prescrever-me o que não farei!». Não sou ditador, Zé Ninguém, embora, quisesse eu sê-lo, a tarefa teria sido fácil perante a tua mediocridade. Os teus ditadores só podem dizer-te o que não podes fazer no presente, sob pena de seres enviado para a câmara de gás. Mas não podem dizer-te o que farás no futuro distante, tal como lhes não é possível provocar o crescimento mais rápido de uma árvore. «E de onde te vem a tua sabedoria, tu, escravo intelectual do proletariado revolucionário?». Do mais íntimo de ti mesmo, eterno proletário da razão humana. «Essa é boa! Foi a mim que o tipo veio buscar a sabedoria, às minhas profundezas! Eu não tenho profundezas! E que espécie de conceito individualista de ‘profundezas’, de ‘mais íntimo’, é esse?». Digo-te que as tens, embora as desconheças. Tens um medo mortal da tua própria profundidade, por isso nem sequer a sentes. Se te abeiras dela, tens vertigens, como se fora um abismo. Temes a queda e a perda da tua «individualidade», quando só terias a ganhar com o abandono. Embora com as melhores intenções, a tua trajetória é, porém, sempre a mesma: a de uma criatura ávida, cruel, malevolente, mesquinha. Se não te achasse afundado em tua própria fundura não me teria dado ao trabalho desta longa conversa. Conheço a tua capacidade de ir fundo, do tempo em que me procuravas como médico, como alguém a quem entregar o teu sofrimento. O que tens de verdadeiramente profundo é a pedra onde assentará a grandeza do teu futuro. É por isso que posso nomear com segurança o que não mais farás no futuro, porque será então que tu mesmo pasmarás perante o que fizeste durante toda uma era de quatro mil anos de incultura. Quererás agora ouvir-me? «Vamos a isso, porque é que eu não hei-de dar ouvidos a mais uma utopiazinha? Não há nada, a fazer, meu caro doutor -sou e continuarei a ser um pobre diabo, o homem da rua, que não tem opinião própria. Aliás, quem sou eu para...». Ouve. Escondes-te detrás da lenda do Zé Ninguém, porque tens medo de mergulhar e de ter de nadar no grande rio da vida, quanto mais não seja em nome dos teus filhos e dos filhos dos teus filhos. A primeira de todas as coisas que não mais farás será consentir na percepção de ti próprio como sujeito insignificante e sem opinião, que afirma a todo o momento «mas quem sou eu...» Tu tens a tua opinião própria e no futuro que prevejo passarás a considerar como vergonha não a conheceres, não a defenderes, não a expressares. «Mas o que dirá a opinião pública acerca da minha opinião? Os outros fazem-me em tiras se eu me atrever a expressá-la». Aquilo a que chamas «opinião pública», Zé Ninguém, nada mais é que o total de todas as opiniões de todos os homens e mulheres ditos comuns. Todo o homem e mulher tem opiniões erradas e certas. Expressa as erradas porque teme as igualmente erradas dos outros homens e mulheres comuns – e esta é a razão fundamental porque as opiniões corretas raramente são expressas. Tu já não crês, por exemplo, que a tua opinião «não conte». Um dia saberás e defenderás saber que és o suporte da sociedade humana. Não fujas. Não fiques aterrorizado. Não é assim tão terrível ser a base responsável da sociedade humana. «Que é então necessário que eu faça para me transformar no suporte da sociedade humana?» Nada terás que fazer de extraordinário ou de novo basta que continues arando os teus campos, usando o teu machado, examinando os teus doentes, levando os teus filhos à escola ou ao campo de jogos, contando aos teus o teu dia-a-dia, tentando penetrar mais fundo nos segredos da natureza. Tudo isso já és capaz de fazer – embora o tenhas na conta de insignificante perante os feitos do general cheio de condecorações ou príncipe «inchado», cavaleiro de armadura reluzente. «Mas o senhor é um visionário, doutor! Não vê que os generais e os príncipes são os detentores dos exércitos e das armas com que se fazem as guerras, do poder de convocar-me para o serviço militar, de destruir as minhas colheitas, o meu laboratório, o meu gabinete de trabalho?» És convocado para servir o exército e as tuas colheitas e fábricas são destruídas porque berras «Viva!» enquanto lá andas, e tudo o que te pertence é feito em estilhas. Os teus heróis de armadura reluzente não teriam soldados nem armas se claramente assumisses o fato de que mais importam as tuas colheitas e. a produção das tuas fábricas, e que nem campos nem fábricas existem para serem destruídos - coisa que os teus militares e heróis desconhecem, porque nunca trabalharam nos campos, nas fábricas ou.em laboratórios, e crêem que o teu trabalho se processa apenas para servir a honra da pátria alemã ou proletária e não para alimentar e vestir os teus filhos. «Que é que eu hei-de fazer? Odeio a guerra, a minha mulher chora de desespero cada vez que me chamam, os meus filhos morrem de fome quando os exércitos proletários ocupam as minhas terras e não tem conta o número dos mortos. Tudo o que desejaria era que me deixassem trabalhar em paz nos meus campos, brincar com os meus filhos à volta do trabalho, amar a minha mulher, e, aos domingos, poder tocar, dançar e cantar com alegria. Que hei-de fazer?» Tão-somente continuar a fazer o que fazes e o que desejas fazer-criar os teus filhos na alegria, amar a tua mulher. SE PUDESSES FAZÊ-LO CLARA E FIRMEMENTE NÃO MAIS HAVERIA GUERRAS – guerras que expõem a tua mulher aos ataques de soldados brutalizados por longos períodos de abstinência sexual, guerras que levam à morte por inanição os teus filhos tornados órfãos, guerras que só te oferecem a ilusória imagem de um celeste «campo de glória». «Mas que espécie de homem sou eu se vivendo apenas para o meu trabalho, para a minha mulher e para os meus filhos os vir ameaçados pelos hunos ou alemães, japoneses ou russos, ou quaisquer outros que me imponham a guerra? Não será meu dever defender o que amo e me pertence?» Tens razão, Zé Ninguém. Se te atacarem terás de pegar em armas. Mas poderás entender que o «inimigo», os hunos de todas as nações, nada mais são que milhões de Zés Ninguéns como tu, que berram «Viva!» sempre que os seus príncipes (que desconhecem o trabalho) os chamam às fileiras? Que, tal como tu, também cada um deles se tem em pouca conta e se interroga: «... mas quem sou eu para ter opinião própria?» Quando souberes um dia que és alguém, que a opinião que tens acerca de ti próprio é correta, e que os teus campos e fábricas foram feitos para servir a vida, e não a morte, então poderás responder tu próprio às questões que ora me pões. E para isso não precisarás da seção dos teus diplomatas. Em vez de continuares a berrar «Viva!» e a cobrir de flores o túmulo do soldado desconhecido, ou a consentir que qualquer príncipe à pressa ou general de todos os proletários venha esmagar com o seu peso a tua consciência nacional, deverás opor-lhe a tua auto-estima e a consciência do valor do teu trabalho. (Conheço o teu Soldado Desconhecido, Zé Ninguém. Encontrei-o em combates nas montanhas da Itália – é o mesmo Zé Ninguém que tu, descrente da existência de uma opinião própria, dizendo, «mas quem sou eu etc...») Poderias tentar conhecer o teu irmão, o Zé Ninguém do Japão, da China, de qualquer país «belicoso», e tentar dar-lhe a conhecer a opinião justa que tens acerca do teu trabalho como operário, médico, agricultor, pai ou marido, convencendo-o de que afinal tudo o que há a fazer é, simplesmente, tornar qualquer guerra impossível, pela força do amor ao trabalho e aos teus. «Bom. Mas eles têm as bombas atômicas, e uma só delas pode matar centenas de milhares de pessoas». Parece-me que ainda não entendeste bem, Zé Ninguém. Julgas que são os príncipes e generais que fabricam essas bombas? Não, são homens como tu que as constroem berrando «Viva!», em vez de se recusarem a fazê-lo. Como vês, tudo se encontra ligado ao fato de pensares certa ou erradamente. Se não fosses tão terrivelmente medíocre, grande cientista do século XX, terias achado maneira de servir não à consciência nacional, mas uma consciência internacional que pudesse para sempre impedir a utilização de bombas atômicas; ou, se tal fosse impossível, terias exercido toda a tua influência, por meio de palavras inequívocas, para que nem sequer fossem construídas. Cego com a tua invenção, não vês sequer uma saída possível, porque a buscas no sentido errado e porque pensas mal. E prometeste contudo a todos os Zés Ninguéns do mundo que a tua energia atômica seria a culpa do seu cancro ou do seu reumatismo, sabendo perfeitamente que tal não seria jamais possível, e que apenas tinhas entre mãos as bases de uma arma criminosa. E assim, a tua cegueira é idêntica às dos físicos das épocas anteriores. ESTÁS ARRUMADO PARA SEMPRE. Tu sabes, Zé Ninguém, que eu te dei a conhecer as possibilidades terapêuticas da minha energia cósmica. Mas mantiveste-te silencioso e continuas a morrer de cancro ou do coração berrando «Viva, viviam a cultura e a técnica». Afirmo-te, pois, Zé Ninguém, que vais cavando o teu próprio túmulo de olhos abertos. Crês que chegou uma nova era, a «era da energia atômica». Chegou de fato, mas não do modo como a imaginas. Não no teu inferno, mas no meu pequeno e recatado laboratório num recanto distante dos Estados Unidos. A decisão é tua, Zé Ninguém, quanto a desejares ou não a guerra. Se ao menos pudesses ter consciência de que o teu trabalho serve a vida, e não a morte. Se ao menos pudesses saber que todos os Zés Ninguéns da Terra são exatamente como tu, no que têm de mau e de bom. Mais tarde ou mais cedo -depende de ti não mais hás-de berrar «Viva» a torto e a direito e não voltarás a trabalhar nas tuas fábricas e campos consentido que possam vir a ser alvo de ataques militares. Mais tarde ou mais cedo aprenderás a servir apenas a vida, e nunca a morte. «Achas que devo fazer uma greve geral?» Não sei se deves fazer isto ou aquilo. Uma greve geral é um meio arriscado, pois que te expões à justa acusação de que deixas a tua mulher e os teus. filhos a morrer de fome. Não é a greve que irá provar o teu senso de responsabilidade perante os males da tua sociedade. Quando entras em greve não trabalhas. Um dia virá em que, em vez de fazeres greves, saberás TRABALHAR deveras em nome da vida. Chama-lhe então greve de trabalho, se tens apego à palavra «greve». Mas greve trabalhando para ti, para os teus filhos, para a tua mulher ou a tua rapariga, para a tua sociedade, a tua produção ou as tuas terras. Vai dizer-lhes que não te sobra tempo para as guerras deles, que tens, mais que fazer. Muralha cada cidade desta convicção e deixa então que diplomatas e marechais se matem uns aos outros, pessoalmente. Tais seriam as coisas a ser feitas, se não mais berrasses «Viva» e não mais te afirmasses como sendo ninguém, ou alguém sem direito a opinião própria. Tens tudo nas mãos, a tua vida e a dos teus filhos, o teu machado e o teu estetoscópio. Vejo-te abanar a cabeça, pensar que sou um utopista ou talvez mesmo um «comunista». Perguntas-me se poderei dizer-te quando saberás viver a tua vida em paz e segurança; a resposta consiste no inverso da tua forma de ser atual: viverás bem e em paz quando a vida significar para ti mais do que a segurança; o amor mais do que o dinheiro; a tua liberdade mais do que as linhas diretivas do partido ou a opinião pública; quando o modo de estar no mundo de um Beethoven ou de um Bach for o tom habitual de toda a tua existência (e já o é, Zé Ninguém, abafado pelo rumor da tua existência menor); quando a tua forma de pensar estiver de acordo, e não, como hoje, em discordância, com a tua forma de sentir; quando te for possível reconhecer os teus dotes a tempo e reconhecer a tempo o teu declínio, a tua velhice; quando te for possível viver o pensamento dos grandes homens em lugar dos crimes dos ditos grandes guerreiros, quando os professores dos teus filhos forem mais bem pagos do que os políticos; quando tiveres maior respeito pelo amor entre um homem e uma mulher do que por um certificado de casamento; quando puderes reconhecer os teus erros refletindo a tempo, e não demasiado tarde, como o fazes hoje; quando sentires que o teu espírito se engrandece conhecendo a verdade e as formalidades te inspirarem horror; quando comunicares diretamente com os teus camaradas de trabalho, não mais tendo diplomatas por intermediários; -quando: a alegria que a tua filha adolescente possa encontrar no amor for também a tua alegria, e não motivo da tua cólera; quando souberes abanar apenas a cabeça nas mesmas circunstâncias em que outrora se castigavam as crianças por tocarem nos seus órgãos sexuais; quando finalmente a face humana do homem da rua puder expressar a alegria, a liberdade e a comunicação, não mais a tristeza e a miséria; quando os seres humanos não mais povoarem a terra com as suas ancas retraídas e rígidas e os seus órgãos sexuais enregelados. Pedes orientação e conselho, Zé Ninguém. Quantas vozes, boas e más, se ergueram, pelos séculos, em resposta... Não é porque delas careças que permaneces na desgraça; é a tua própria mesquinhez que te condena. Também eu poderia aconselhar-te, mas sendo como és e pensam o como pensas não serias capaz de pôr em seção o que quer que te fosse aconselhado no interesse de todos. Imaginemos que eu te aconselhava a fazeres desaparecer toda a atividade diplomática e a substituí-la, pela fraternidade profissional e pessoal com todos os sapateiros, carpinteiros, mecânicos, técnicos, físicos, educadores, escritores, administradores, mineiros e camponeses de todos os países; que fossem, pois, todos os sapateiros do mundo os responsáveis pela decisão de qual o melhor modo de calçar todas as crianças chinesas; os mineiros responsáveis pelas reservas de carvão para aquecimento de todos os países frios; os educadores de todo o mundo volvidos guardiões da futura sanidade mental de todas as crianças recém-nascidas. Que farias tu, Zé Ninguém, sé te visses a braços com todos estes simples problemas da existência quotidiana? Decerto que a tua resposta, ou a de qualquer dos representantes do teu partido, governo ou sindicato, (a menos que me prendesses imediatamente como «comunista»), seria a seguinte: «Quem sou eu para poder substituir as relações diplomáticas por relações internacionais ao nível do trabalho e do desenvolvimento social?» Ou: «A eliminação das diferenças nacionais no domínio do desenvolvimento econômico e da cultura não é possível». Ou: «Queres que se restabeleçam relações de qualquer espécie com os fascistas alemães, ou japoneses, ou com os comunistas russos, ou com os capitalistas americanos?» Ou: «Acima de tudo interessam-me os destinos da minha Pátria – Rússia, Alemanha, América, Inglaterra, Israel ou Comunidade Árabe». Ou: «Já me chegam os problemas que tenho para manter a minha vida em ordem e para me entender com o meu Sindicato dos Alfaiates. Outros que se ralem com os sindicatos de outros países». Ou: «Não dêem ouvidos a este capitalista, bolchevista, fascista, trotskista, internacionalista, sexualista, judeu, estrangeiro, intelectual, mitómano, utopista, demagogo, doido, individualista, anarquista. Onde está a vossa consciência de americano, russo, alemão, inglês, judeu?» Podes ter a certeza absoluta de que usarias qualquer destes slogans, ou outros, a fim de evitar a tua responsabilidade na forma como se processam as relações entre os homens. «Mas, então, eu não sou nada? Parece que não me reconheces um único traço positivo! Afinal, que diabo, trabalho que me farto, sustento a minha mulher e os meus filhos, levo uma vida decente e sirvo o meu país. Não posso ser tão estupor quanto isso!» Sei que és uma criatura capaz, sólida, com qualidades de trabalho, tal como uma abelha ou uma formiga. Tudo o que tentei foi pôr-te à mostra o que tens de medíocre e te destrói a vida há já milhares de anos. És GRANDE, Zé Ninguém, quando não és medíocre e mesquinho. A tua grandeza é a única esperança que nos resta a todos. És grande quando desempenhas com gosto a tua tarefa quando trabalhas na alegria a madeira, quando constróis, quando pintas e embelezas os teus espaços, quando trabalhas a terra, quando contemplas o céu na quietude e te comprazes na existência dos animais simples, no orvalho, quando danças e cantas, quando amas a beleza dos teus filhos, o corpo do homem ou da mulher que escolheste; quando vais até um planetário tentar entender o espaço ou a uma biblioteca ler o que pensaram da vida outros homens e mulheres. És grande na tua velhice, com o teu neto no colo, dizendo-lhe de como foi outrora, respondendo à sua curiosidade confiante. És grande quando és mãe, embalando o teu filho nos braços, o coração cheio de esperança de que para ele venham melhores dias, a felicidade que, hora a hora, lhe vais construindo. És grande, Zé Ninguém, quando cantas as antigas canções do teu povo ou danças ao som do acordeão, porque os cantos do povo são pacíficos, e são-no em todos os lugares do mundo. E és grande quando afirmas ao teu amigo: «Ainda bem que o destino me concedeu até hoje uma vida limpa e sem ambições, que pude acompanhar o crescimento dos meus filhos, ouvir-lhes as primeiras palavras, vê-los mover-se, andar, brincar, fazer perguntas, assistir à sua, alegria; ainda bem que não deixei passar a Primavera sem a sentir, que pude gozar o vento ameno e o rumorejar dos regatos e o canto das aves; que não perdi o meu tempo em mexericos com os vizinhos, que amei a minha companheira e que senti correr no meu corpo o fluxo da vida; ainda bem que, mesmo em tempo de perturbação, não perdi o norte nem o sentido da vida. Pois que me foi possível escutar a voz que murmurava no meu intimo: ‘Existe apenas uma única coisa que vale a pena: viver bem e alegremente a própria vida. Escuta a voz do teu coração, ainda que tenhas de afastar-te do caminho trilhado pelos timoratos. E não consintas que o sofrimento te torne duro e amargo. E assim, na quietude do cair da tarde, quando me sento na erva em frente de minha casa, depois de um dia de trabalho, com a minha mulher e os meus filhos, ouço no pulsar da natureza à minha volta a melodia do futuro: ‘Humanidade inteira, eu te abençôo e abraço.’ E desejaria então que a vida aprendesse a defender os seus direitos, que fosse possível modificar os espíritos duros e os medrosos, que só fazem troar os canhões porque a vida os desapontou. E quando o meu - filho instalado no meu colo me pergunta: ‘Pai, o sol desapareceu, para onde foi, achas que volta depressa?’, respondo-lhe: ‘Sim, filho, há-de voltar amanhã para nos aquecer.’» Cheguei ao fim da minha conversa contigo, Zé Ninguém. Muitas coisas mais haveria, no entanto, a dizer-te. Mas se me leste com atenção e honestamente descobrir-te-ás agindo como Zé Ninguém mesmo em situações que te não referi, pois que todas as tuas ações e pensamentos têm sempre o mesmo tom. O que quer que me tenhas feito ou venhas a fazer no futuro, quer me glorifiques como gênio ou me encerres numa instituição psiquiátrica, quer me adores como teu salvador ou me enforques como espião, mais tarde ou mais cedo a necessidade forçar-te-á a entender que descobri as leis da vida e que te depositei nas mãos o instrumento capaz de orientar a tua existência para uma finalidade consciente, como até aqui pudeste fazer com as tuas máquinas. Fui um bom engenheiro do teu organismo. Os teus netos seguirão as minhas pegadas e serão bons engenheiros da natureza humana. Fui eu que te revelei o campo infinitamente vasto da tua própria energia vital, a tua natureza cósmica. Essa é a minha recompensa. Os ditadores e os tiranos, os aduladores e difamadores e os chacais sofrerão a sorte que outrora lhes foi anunciada por um velho sábio:
Plantei a semente
de palavras sagradas neste mundo.
[FIM de Escuta, Zé Ninguém] |