Proposta de Base Prática e Teórica para os Membros dos Organismos de uma Federação Comunalista (*)

1. Viver e comportar-se de maneira digna de pessoas engajadas em uma tarefa tão grandiosa quanto esta: a construção de uma sociedade mais justa. Ser humildes e amáveis. Ser pacientes uns com os outros, ter tolerância pelas falhas uns dos outros por causa dos laços que nos unem. Procurar sempre ser juntamente guiados pelo bom senso, e assim viver em paz uns com os outros.

2. Cada um de nós será membro de um organismo local(1), que por sua vez fará parte de um único organismo composto, todos no mesmo espírito, e todos na mesma inspiração para o mesmo futuro glorioso, uma sociedade mais justa. Para nós há um só ideal, uma só convicção, um só caminho: a melhora social pela revolução no caráter de cada um, e todos nós temos o mesmo alvo: a justiça social, que está acima de mesquinharias e de nossos interesses individuais, e pela qual todos nós lutamos e vivemos através de todo o conjunto. Entretanto, na medida em que o organismo local cresce e se desdobra em outros, várias aptidões especiais surgirão em cada um dos membros -- típico de qualquer organização que nasce e cresce com suas bases fincadas no meio do povo.

3. Desde as Revoltas Camponesas do século XVI até as grandes organizações de trabalhadores do início do século XX, por causa de sua ação, por pouco não revolucionaram todo o mundo de então. E essas muitas ações e organizações podem nos servir de inspiração, inclusive para não cometermos os mesmos erros e falhas de caráter de seus membros, principalmente algumas de suas lideranças. Pois quando se trata de derrotar inimigos -- os piores estão dentro de nós mesmos -- tão poderosos e tão recalcitrantes como os que temos pela frente, a criação e o desenvolvimento de uma sociedade mais justa tem que significar visibilidade ao proletariado e ao lumpem(2), mas uma visibilidade sem holofotes e sem palco, onde os mais humildes não sejam os menos importantes.

4. Alguns de nós recebemos um talento especial para a propaganda; outros são bons oradores; alguns têm a habilidade especial de ganhar pessoas para aderir ao movimento, ajudando-as a levantar a cabeça e fazer parte da luta; outros, ainda, têm o dom de descobrir informações preciosas para o crescimento dos membros no aspecto qualitativo do pequeno organismo.

5. Por que é importante que cada um dos membros de cada organismo tenha a oportunidade de exercitar seus talentos especiais de fazer melhor determinadas coisas? É que assim, os organismos federados estarão mais bem preparados para fazer avançar a luta pela auto-emancipação do proletariado, e para edificar seu organismo composto -- o protótipo de sociedade mais justa que pretendemos alcançar -- elevando-o a uma condição de vigor e maturidade; até que finalmente todos abracemos do mesmo modo, aqui e agora, uma revolução social permantente que começa dentro de cada um de nós pela transformação do caráter, a auto-emancipação do proletariado, e todos nos tornemos senhores de nosso próprio destino. Sim, crescermos a ponto de cada um de nós ser capaz de distinguir entre o bem e o mal e ficar do lado do bem, sem intermediários nem representantes.

6. Então não seremos mais como escravos assalariados(3), sempre mudando nossa idéia a respeito de nossas convicções porque alguém nos disse uma coisa diferente, ou habilmente nos mentiu, e fez que a mentira soasse como verdade. Em vez disso, seguiremos com amor a verdade em todo tempo -- falando com verdade, tratando com verdade, vivendo em verdade -- e assim nos tornaremos cada vez mais, e de todas as maneiras, parecidos com tudo aquilo que sonhamos, seres livres e responsáveis. Optando pela prática constante do bem tudo se ajusta e tudo acaba funcionando perfeitamente, e cada pessoa do seu jeito auxilia os outros camaradas, semelhantemente cada um dos organismos locais em sua maneira particular auxilia os demais organismos, de tal modo que todo o organismo composto saudável, crescerá pleno de mútua solidariedade.

7. Não devemos viver como aqueles que dão sustentação ao sistema vigente, pois eles estão cegos e confundidos por suas falhas de caráter, alcoolismo, drogas e todo tipo de vícios. Seus corações estão fechados. Em público aparentam fazer coisas boas para o povo mas secretamente agem em busca de seus interesses pessoais, tudo que fazem é por baixo do pano, às ocultas, para que não venha à tona o mundo de podridão em que estão mergulhados; eles estão muito distantes da vida de justiça porque fecharam a mente contra ela, e não podem compreender seus caminhos. Não se preocupam mais com o que está certo ou errado, e se entregaram à corrupção. Então, eles não se detêm diante de nada, e são guiados pelas suas mentes malvadas e sua desenfreada vocação pela cabeceira das mesas, esnobismo, vícios, mando, ouro, poder e fama.

8. Esse, porém, não é o caminho para alcançar uma sociedade mais justa. Se realmente queremos alcançá-la tendo por base tudo aquilo que aprendemos até agora e certamente aprenderemos no desenvolver da luta, então devemos nos desfazer de toda inversão de valores que nos ensinaram nas escolas do sistema, e na cultura capitalista: as relações sociais baseadas na arrogância, representação, escravidão assalariada, motivo de lucro, classes, propriedade privada dos meios de produção e de vida, impostos, patriarcado, alienação, exploração, elite de controle profissional de qualquer atividade, e divisões formais por raça, gênero, idade, etnia, pontos de vista, convicções, ou inteligência, tudo isso deve ser descartado, como ruínas de uma civilização maldita já completamente apodrecida -- que, erradamente, muitos de nós partilhamos desses maus caminhos no passado, fazendo coisas aos nossos companheiros que nunca desejaríamos para nós.

9. Como membros de um protótipo já em funcionamento de uma sociedade mais justa, nossas atitudes e nossos pensamentos, todos devemos estar constantemente mudando para melhor. Sim, cada um de nós a cada momento em cada lugar deve ser uma pessoa nova e diferente. Devemos ser gente boa, amável que a cada dia procura pelo seu próprio exemplo e palavras tentar melhorar o caráter dos seus irmão. Se não for assim, seremos falsos como àqueles que queremos combater. Devemos começar a ser e a viver hoje, o mundo que queremos lá fora.

10. Devemos deixar de mentir uns aos outros; falemos sempre a verdade, pois se somos membros de um único organismo quando mentimos uns aos outros fazemos mal a nós mesmos. Quando estivermos irados, não devemos piorar ainda mais as coisas alimentando nosso próprio rancor. Não deixemos que o sol se ponha entre nós ainda irados -- resolvamos isso logo; porque quando estamos irados oferecemos um fortíssimo ponto de apoio aos poderosos que queremos derrotar.

11. Se alguém pretende obter, fazendo parte desse protótipo de nova sociedade, vantagens pessoais, sejam elas quais for, posição, dinheiro, fama, poder, deve desde já tirar tais idéias da cabeça e começar a arregaçar as mangas, a fim de poder contribuir como os demais membros do organismo local ao qual pertence. Devemos evitar a boca suja, o fuxico e a língua ferina. E dizer só o que é bom e útil àqueles com quem estivermos falando, e que resulte em algo positivo para eles.

12. Não fazer com que as pessoas simples que acreditam que essa luta é prá valer fiquem tristes e desanimadas em ver o modo como vivemos. Devemos nos lembrar que são justamente essas pessoas que irão garantir que todos nós alcancemos a meta que almejamos, a auto-emancipação.

13. Deixemos de ser mesquinhos, irritadiços e mal humorados. As contendas, as palavras ásperas e a antipatia pelos outros camaradas não deve ter lugar na vida da gente. Em vez disso, devemos ser leais e bons uns com os outros, compassivos, perdoando-nos mutuamente, pois isso garante, no mínimo, uma boa base para um bom crescimento rumo à maturidade.

COLETIVO PERIFERIA

São Miguel Paulista, 10 de julho de 2004]



(*) Vide Evento Debate Ruas em Chamas em http://www.oocities.org/projetoperiferia6/ruasemchamas.htm

(1) organismo local. Unidade de uma Rede.

(2) proletariado. Classe trabalhadora consciente de sua situação subprivilegiada, e sem propriedades. lumpen. Relativo a indivíduos desvinculados da produção social, que se dedicam a atividades marginais.

(3) escravo assalariado. Indivíduo assalariado que despende esforço físico e mental para originar os muitos e variados bens e serviços que o sistema econômico produz. Pode ser profissional especializado, semi-especializado e não especializado. Não tem autoridade sobre os demais trabalhadores. Quando um escravo assalariado adquire autoridade ou passa a controlar outros, torna-se administrador, quando o que ele faz, nesse caso, não o classifica como escravo assalariado no sentido estrito do termo.




railtong@g.com sitio