Se outro mérito não tivesse, e eu acho que tem, o projecto de lei do
Bloco de Esquerda (BE) sobre a laicidade do Estado já regista a seu favor o de
ter lançado a primeira discussão pública sobre um tema quase tabu mesmo após o
«25 de Abril».
Precisamente, uma primeira crítica que tenho ouvido fazer à iniciativa do
BE é sobre a sua «não oportunidade». Poderia argumentar-se que não coube ao
Bloco escolher a oportunidade, uma vez que o seu projecto surge como resposta a
uma iniciativa legislativa do PS/Vera Jardim sobre «liberdade religiosa». Mas
esta era tão decepcionante, tão rastejante, que se achou ser altura de encarar o
problema de frente. Até porque a verdade é esta: 60 anos depois da Concordata do
Estado Novo com a Santa Sé, e mais de 25 anos após a Revolução de 1974, quando é
que vai ser «oportuno»?
Também li, entrando mais na substância do assunto, que se pretenderia
«laicizar a sociedade», expulsar a religião da vida pública, torná-la coisa
«privada». É certo que a opção religiosa de cada um é uma escolha privada. O que
não significa que as confissões religiosas não tenham, aliás assegurado
constitucionalmente, o pleno direito de publicitarem as suas crenças e de
difundi-las socialmente. Mas para haver essa liberdade religiosa é preciso que o
Estado seja religiosamente neutro, isto é, laico. O que se pretende, portanto,
não é laicizar a sociedade, é laicizar o Estado como condição básica da
liberdade religiosa na sociedade, da livre expressão de todas as confissões, em
condições de igualdade perante a lei, sem privilégios estatalmente tutelados
para nenhuma igreja semi-oficiosa. O Estado laico e sem religião, neste sentido,
é indissociável da própria democracia.
Também conviria deixar sossegados, lá onde quer que estejam, o Dr. Afonso
Costa e os fantasmas da «guerra religiosa» e do anticlericalismo, agitados por
certas declarações demagógicas e sobretudo disparatadas de alguns zelotas do PS.
O jacobinismo afonsista, e não só, por circunstâncias históricas que não cabe
aqui apreciar, foi uma batalha política e ideológica contra o catolicismo e a
Igreja Católica, na qual o Estado se arrogou larguíssimos poderes de intervenção
no património e na vida interna daquela igreja. Qualquer pessoa de bom senso
compreenderá que os tempos mudaram: no Estado, na sociedade e até na cultura
religiosa. O que hoje estamos a procurar liquidar, precisamente, são as sequelas
da reacção estatal-clerical do salazarismo dos anos 40 ao anticlericalismo
republicano. Repondo o princípio constitucional da separação do Estado e das
igrejas em todos os principais aspectos onde ainda não vigora: na escola, nos
estabelecimentos públicos, no fisco, no protocolo de Estado. Ou seja, não
estamos a tratar de religião, mas de política. Não estão em causa as igrejas da
fé ou a fé das igrejas, estão sim as igrejas do privilégio e o privilégio
anticonstitucional de certas igrejas.
Que se está a «hostilizar a Igreja Católica», acusam-nos das bandas do
Dr. Vera Jardim e não só. Há nesta sugestão, devo dizer, algo de profundamente
paradoxal que tem a ver com a capitulação das esquerdas tradicionais face ao
problema do laicismo. É assim: a hierarquia da Igreja Católica abençoou durante
quase meio século a ditadura e, consequentemente, as suas violências contra os
direitos humanos, sem nunca, salvo honrosíssimas excepções (a nível da
hierarquia, claro), levantar um dedo, ao menos em nome da caridade e do amor ao
próximo; viveu, e vive, desde 1940, à sombra de uma Concordata que lhe conferiu,
como compensação, os mais amplos privilégios em todas as áreas (fisco, ensino,
forças armadas, etc.) e que, hoje,
toda a gente reconhece ser inconstitucional. Mas quando alguém, rompendo
o comprometido silêncio quase geral, propõe que se aplique a Constituição, se
ponha fim à Concordata, se defenda com seriedade a liberdade religiosa
¾ é sobre essa «ousadia» que
cai o labéu da «hostilização»! E o que será «não hostilizar»? Deixar tudo
essencialmente como está, com algumas compensações às confissões não católicas,
como pretende o projecto Vera Jardim?
Se alguma coisa se está a «hostilizar» com o presente projecto-lei não
são seguramente os católicos e o catolicismo que não hão-de desejar ver a sua
fé, nos dias de hoje, progredir à sombra da vara umbrosa do Estado; nem a
hierarquia da Igreja Católica, quero crer que a mais interessada em demonstrar
que pode e sabe discutir a embaraçosa herança concordatária com
despreconceituada abertura e dignidade. Hostilidade, só se for contra esse
espírito feito de demissão, de temor reverencial, de mesura beata que se recusa
a aplicar a Constituição e as leis da República para não afectar a nova aliança
promíscua de importantes sectores da hierarquia católica com o actual governo
socialista.
É claro que há críticas a que não respondo: as do vozear ultramontano que
vem da profundeza dos tempos. Só ele é que ainda não percebeu que já não é deste
mundo.
(Público)