ALGUMAS PRECISÕES



por

Fernando Rosas



            Se outro mérito não tivesse, e eu acho que tem, o projecto de lei do Bloco de Esquerda (BE) sobre a laicidade do Estado já regista a seu favor o de ter lançado a primeira discussão pública sobre um tema quase tabu mesmo após o «25 de Abril».

            Precisamente, uma primeira crítica que tenho ouvido fazer à iniciativa do BE é sobre a sua «não oportunidade». Poderia argumentar-se que não coube ao Bloco escolher a oportunidade, uma vez que o seu projecto surge como resposta a uma iniciativa legislativa do PS/Vera Jardim sobre «liberdade religiosa». Mas esta era tão decepcionante, tão rastejante, que se achou ser altura de encarar o problema de frente. Até porque a verdade é esta: 60 anos depois da Concordata do Estado Novo com a Santa Sé, e mais de 25 anos após a Revolução de 1974, quando é que vai ser «oportuno»?

            Também li, entrando mais na substância do assunto, que se pretenderia «laicizar a sociedade», expulsar a religião da vida pública, torná-la coisa «privada». É certo que a opção religiosa de cada um é uma escolha privada. O que não significa que as confissões religiosas não tenham, aliás assegurado constitucionalmente, o pleno direito de publicitarem as suas crenças e de difundi-las socialmente. Mas para haver essa liberdade religiosa é preciso que o Estado seja religiosamente neutro, isto é, laico. O que se pretende, portanto, não é laicizar a sociedade, é laicizar o Estado como condição básica da liberdade religiosa na sociedade, da livre expressão de todas as confissões, em condições de igualdade perante a lei, sem privilégios estatalmente tutelados para nenhuma igreja semi-oficiosa. O Estado laico e sem religião, neste sentido, é indissociável da própria democracia.

            Também conviria deixar sossegados, lá onde quer que estejam, o Dr. Afonso Costa e os fantasmas da «guerra religiosa» e do anticlericalismo, agitados por certas declarações demagógicas e sobretudo disparatadas de alguns zelotas do PS. O jacobinismo afonsista, e não só, por circunstâncias históricas que não cabe aqui apreciar, foi uma batalha política e ideológica contra o catolicismo e a Igreja Católica, na qual o Estado se arrogou larguíssimos poderes de intervenção no património e na vida interna daquela igreja. Qualquer pessoa de bom senso compreenderá que os tempos mudaram: no Estado, na sociedade e até na cultura religiosa. O que hoje estamos a procurar liquidar, precisamente, são as sequelas da reacção estatal-clerical do salazarismo dos anos 40 ao anticlericalismo republicano. Repondo o princípio constitucional da separação do Estado e das igrejas em todos os principais aspectos onde ainda não vigora: na escola, nos estabelecimentos públicos, no fisco, no protocolo de Estado. Ou seja, não estamos a tratar de religião, mas de política. Não estão em causa as igrejas da fé ou a fé das igrejas, estão sim as igrejas do privilégio e o privilégio anticonstitucional de certas igrejas.

            Que se está a «hostilizar a Igreja Católica», acusam-nos das bandas do Dr. Vera Jardim e não só. Há nesta sugestão, devo dizer, algo de profundamente paradoxal que tem a ver com a capitulação das esquerdas tradicionais face ao problema do laicismo. É assim: a hierarquia da Igreja Católica abençoou durante quase meio século a ditadura e, consequentemente, as suas violências contra os direitos humanos, sem nunca, salvo honrosíssimas excepções (a nível da hierarquia, claro), levantar um dedo, ao menos em nome da caridade e do amor ao próximo; viveu, e vive, desde 1940, à sombra de uma Concordata que lhe conferiu, como compensação, os mais amplos privilégios em todas as áreas (fisco, ensino, forças armadas, etc.) e que, hoje,  toda a gente reconhece ser inconstitucional. Mas quando alguém, rompendo o comprometido silêncio quase geral, propõe que se aplique a Constituição, se ponha fim à Concordata, se defenda com seriedade a liberdade religiosa ¾ é sobre essa «ousadia» que cai o labéu da «hostilização»! E o que será «não hostilizar»? Deixar tudo essencialmente como está, com algumas compensações às confissões não católicas, como pretende o projecto Vera Jardim?

            Se alguma coisa se está a «hostilizar» com o presente projecto-lei não são seguramente os católicos e o catolicismo que não hão-de desejar ver a sua fé, nos dias de hoje, progredir à sombra da vara umbrosa do Estado; nem a hierarquia da Igreja Católica, quero crer que a mais interessada em demonstrar que pode e sabe discutir a embaraçosa herança concordatária com despreconceituada abertura e dignidade. Hostilidade, só se for contra esse espírito feito de demissão, de temor reverencial, de mesura beata que se recusa a aplicar a Constituição e as leis da República para não afectar a nova aliança promíscua de importantes sectores da hierarquia católica com o actual governo socialista.

            É claro que há críticas a que não respondo: as do vozear ultramontano que vem da profundeza dos tempos. Só ele é que ainda não percebeu que já não é deste mundo.


(Público)



Associação República e Laicidade