Senhor Director,
apesar de o futuro do projecto de Constituição para a Europa permanecer incerto, as constantes exortações de Karol Wojtyla já evidenciavam que a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) não se conformara com a ausência de uma referência explícita ao cristianismo no preâmbulo constitucional. Na sua recente mensagem, José Policarpo reiterou os argumentos papais a favor dessa referência que impossibilitaria a identificação com a UE aos cidadãos não crentes, aos seguidores de religiões não cristãs e aos países sem tradição cristã.
A obessão da ICAR com a referência religiosa do preâmbulo tem sido esclarecedora. Permitiu compreender que o ideal europeu, para a ICAR, é uma mera componente do objectivo papal de reunificação da cristandade; e que a religião tradicional, para alguns católicos, deve ser um guia da política estatal. Em qualquer dos casos, conclui-se que muitos não distinguem os assuntos de fé -que pertencem à esfera privada da liberdade de consciência que qualquer Constituição deve garantir- dos assuntos políticos e portanto públicos -onde a religião não pode ser tomada como referência.
No entanto, a polémica do preâmbulo serviu à ICAR principalmente como uma cortina de fumo, ocultando a importante vitória obtida com a inclusão do artigo I-51º no projecto de Constituição. Este garante às “Igrejas e comunidades religiosas” que a UE manterá com estas um “diálogo aberto, transparente e regular” no “reconhecimento da sua identidade e do seu contributo específico” -visando garantir às Igrejas um direito de intervenção específico nos processos legislativos europeus. A Laicidade, que permitiria às instituições europeias minorar os conflitos originados por questões de consciência, foi assim, infelizmente, recusada como princípio estruturante.
Lisboa, 4 de janeiro de 2004
Nota: esta carta de leitor foi publicada na secção "Meu Caro DN" do Diário de Notícias de 9/1/2004.