NÃO AO FORAL DE BARRANCOS!



por

Luis Mateus(*)



A pretexto das comemorações do 10 de Junho e no quadro da " Presidência Aberta " que promoveu no Alentejo, Jorge Sampaio, com um apelo à "alma de agitação democrática" dos portugueses, veio dizer-nos ( cito da imprensa diária ) que "a cidadania nacional tem sido posta em causa pela dupla pressão das realidades supranacionais e das realidades regionais, a que se junta o peso excessivo e indevido dos interesses económicos, corporativos e de outro tipo", que "o espírito cívico, o exercício pleno de direitos e deveres e a coesão da comunidade política é indispensável para construir uma sociedade aberta e tolerante", que "devemos manter abertas as portas ( à imigração ), mas também devemos exigir uma demonstração real da vontade de integração desses imigrantes", que "não podemos dar direitos políticos a minorias que recusam os nossos valores e não acatam as nossas leis" mas… que, "em alguns casos ( e no caso concreto de Barrancos ), é necessário combinar a lei com as tradições"…

No essencial, estou perfeitamente solidário com as primeiras daquelas declarações de Jorge Sampaio e, mais concretamente, entendo que ameaças reais espreitam hoje a Democracia e que, por exemplo, o projecto europeu actualmente em marcha - a " Europa de regiões " que, entretanto e sem explicação clara, tomou o lugar da " Europa dos cidadãos " de que tanto se falava… -, no seu aparente objectivo de instituir uma solução que legitime o poder político na chamada " sociedade civil organizada ", visa afinal a constituição de uma União Europeia cujo perfil facilmente tenderá para o comunitarismo e o corporativismo, com todos os perigos que daí podem advir para todos nós.

É a essa " Europa multiculturalista ", a essa " Europa das identidades " que se vêm entretanto adicionar problemas novos, decorrentes dos expressivos movimentos demográficos imigratórios que lhe têm vindo a acrescentar populações oriundas de espaços exteriores às suas fronteiras e cujas culturas de origem - de raiz marcadamente tradicionalista e rural - não valorizam, nem uma cidadania baseada no indivíduo, nem os valores universais que lhe estão intrinsecamente associados.

É nesse quadro que também estou plenamente de acordo com Jorge Sampaio, quer quanto à necessidade de se estabelecerem soluções de abertura e tolerância face àqueles que nos procuram, quer quanto à urgência de simultaneamente se fixarem condições claras para a sua efectiva e desejável integração na nossa sociedade, condições que só podem assentar nos valores universais a que nos referenciamos e nas práticas de cidadania que os enformam e sustentam.

Com os atentados de 11 de Setembro fomos brusca e dramaticamente acordados para estas novas problemáticas e para o facto de elas não encontrarem uma resposta cabal, nem no discurso do " centro " ( dito " politicamente correcto " ), nem nos discursos da " esquerda " ( da " nova " e da " velha " ), cada qual enredado a seu modo numa história de práticas e pensamentos políticos onde essas questões tinham expressão diversa daquela com que hoje se nos apresentam.

É neste enquadramento e pela sua oportunidade e lucidez que, em meu entender, as alocuções produzidas pelo Presidente da República no Alentejo nos devem merecer especial atenção.

Contudo, num gesto muito difícil de compreender neste contexto, Jorge Sampaio, confrontado com o problema das touradas de morte em Barrancos, acabou por recomendar ( cito de novo ) "que tentemos preservar as tradições e perceber os povos mais distantes ( já que ) há tradições que seria conveniente enquadrar legalmente de outra maneira"…

Os efeitos que tal declaração provocou também são conhecidos e não será mero acaso o facto de ter sido o Partido Popular - precisamente o mesmo partido que considera a família como célula base da sociedade e que, nesse entendimento, tem actualmente em discussão no Parlamento uma lei que garanta a sua protecção - a aproveitar aquela " deixa " do Presidente da República e a avançar com a ideia de uma nova lei que, prevendo a manutenção da proibição da morte dos touros na arena, venha no entanto a permitir essa prática "nos casos em que a sua " tradição ininterrupta " seja comprovada pelas autarquias"…

Não cabe aqui discutir a questão essencialmente ética da clara rejeição que espectáculos bárbaros, como as touradas, deveriam merecer por parte da nossa sociedade - a violência gratuita, por mais tradição que tenha, nunca deixará de ser isso mesmo : brutal e inútil - ; o que aqui cabe, isso sim, é recusar toda e qualquer formulação legislativa que, em termos práticos, reconheça regimes de excepção, que reintroduza um sistema de legislações locais desenquadradas e desalinhadas da legislação geral do país - isto é : um regime semelhante ao dos forais medievais - no nosso quadro jurídico democrático e republicano.

Com a Constituição de 1822 - há quase dois séculos, portanto - passamos a ter no nosso país uma Lei Geral e Universal à qual todas as demais normas se passaram forçosamente a conformar. Somos todos, hoje, cidadãos iguais perante a Lei e, mau grado as leituras enviesadas que desse princípio se fizeram - e que levaram à produção de códigos como a "Lei da Liberdade Religiosa" -, temos sabido manter esse regime.

O problema dos touros de morte numa pequena povoação do Alentejo será porventura uma questão tão grave e premente que motive as movimentações que acima relatamos - e porque não ? pois se até o futebol ocupa neste país o espaço mais nobre da vida pública… - mas, em nome da Democracia e da Republica, não posso deixar de fazer aqui um apelo : NÃO NOS DOTEM COM O FORAL DE BARRANCOS !

Caso contrário, com que valores - e com que autoridade moral - poderemos depois apresentar-nos perante todos aqueles que, oriundos de outras paragens, seja por difíceis condições económicas, sociais ou políticas dos seus países, seja por qualquer outro motivo, têm vindo a procurar a nossa ajuda e se têm vindo a tentar juntar a nós ?

Braga, 22-06-2002

(*) membro da delegação portuguesa do "Mouvement Europe & Laïcité" ; um dos promotores da associação "República e Laicidade" (em constituição)


Nota: a publicação deste artigo foi recusada no «Diário de Notícias».



República e Laicidade!