Senhor ministro da Educação, quanto ao Projecto Bíblia Manuscrita Jovem, a ideia de fazer as crianças copiar a Bíblia nas escolas públicas, fora das aulas de religião e moral, é má por três razões fundamentais. A primeira e a mais seria é a mais óbvia: esta iniciativa é ilegal e um Estado que não faz cumprir a lei não merece o respeito de ninguém.
A segunda razão diz respeito à democracia e à justiça. A partir de agora o Estado deve autorizar todas as organizações religiosas que queiram fazer as criancinhas copiar o Alcorão, etc.
Mas a terceira razão, a que eu não vejo nunca discutida em profundidade, é relativa à ideia generalizada de que a religião é uma coisa objectivamente boa. Será? Eu acho que não. Se pensarmos bem, a religião pode ser uma coisa boa, mas também pode ser uma coisa má.
Com uma longa história de brutalidades, perseguições e autos de fé, a Igreja Católica não é uma organização com credenciais acima das nossas suspeitas. Durante o século XX a Igreja Católica apoiou e aplaudiu ditadores e regimes hediondos: Mussolini, Salazar, Franco, Fulgencio Baptista, Pinochet, Videla, e tantos outros. O papel do papa Pio XII em relação aos crimes de Hitler está muito mais perto do de um homem de estado do que do de um homem fé. E há uma semana os jornais americanos anunciavam que nos EUA cerca de 4.450 padres estão acusados de abusos sexuais a menores desde 1950. Há cerca de 11.000 queixas a serem investigadas. Onze mil! E há dias o bispo O’Brien, acusado de encobrir crimes inenarráveis na sua diocese, foi condenado porque atropelou um homem e fugiu. O homem veio a morrer, enquanto o bispo tentava discretamente mandar arranjar o carro. Quero dizer, ler e copiar a Bíblia não melhorou o carácter deste bispo, nem o de tantos outros, insensíveis aos sofrimentos infligidos pelos criminosos que governaram a Itália, Portugal, Espanha, Cuba, o Chile ou a Argentina durante ditaduras que duraram décadas.
Porque é que achamos então que ler e copiar a Bíblia é objectivamente bom para as criancinhas portuguesas? Pessoalmente acho que a Bíblia é um conjunto de textos sem nexo, escritos por pessoas diferentes, com culturas diferentes, e em tempos diferentes, e que não faz bem às criancinhas copiar as partes que dizem que deus acha que devemos apredrejar os homossexuais até a morte.
Que partes da Bíblia é que queremos que as nossas criancinhas copiem? A que diz para darmos um dia de folga aos nossos escravos? A que diz para levarmos as criancinhas desobedientes aos anciãos da aldeia para serem apredejadas até à morte? Ou aquela em que um desgraçado não mistura bem os incensos para queimar em oferenda, Deus não gosta do cheiro, e mata-lhe um filho?
Não nos devemos esquecer duma quarta razão, à qual os portugueses são porventura menos sensíveis. Este projecto promove implicitamente uma determinada visão do mundo (a dos católicos) como sendo melhor que as outras (as dos protestantes, muçulmanos, judeus, indus, etc.). É isto que Portugal precisa? Mais ódios e convicções romanticas do estilo ”o meu deus lava mais branco que o teu”?
Bertrand Russel escreveu que as controvérsias mais selvagens são sempre sobre ideias que não se podem provar de forma irrefutável. A perseguição é usada em teologia, não em aritmética.
Porque é que não investimos então na promoção da aritmética nas nossas escolas?
Filipe Vieira de Castro
Texas, 22 de fevereiro de 2004
Nota: esta carta de leitor foi publicada no «Diario de Notícias» a 27 de fevereiro de 2004 com o corte assinalado a itálico.