CINCO PONTOS PARA A LAICIZAÇÃO DO ESTADO



por

Fernando Rosas



            A situação é recorrente: no dia 25 de Dezembro, no quadro da programação normal dos dois canais públicos de televisão, o bispo de Lisboa proferia a mensagem de Natal da Igreja Católica. Dir-se-ia tratar-se do dignitário eclesiástico de um Estado confessional, em registo funcionalmente idêntico à mensagem do Primeiro Ministro no mesmo dia, aliás, anunciada por um separador de simbologia religiosa. Já para não falar, na véspera, da transmissão da missa do galo. Bem sei que nada disto é novidade, mas tudo isto coloca a urgência de uma discussão pública desassombrada sobre as relações entre o Estado português, constitucionalmente laico, e as confissões religiosas. E para quem, como eu, entende como prioritária, porque essencial à própria democracia, a defesa da laicização do Estado, há cinco questões que é tempo de encarar despreconceituadamente no campo político e legislativo.

            A primeira é a da subsistência da Concordata. É sabido que as concordatas de entre as guerras, ao menos nos países latinos, foram historicamente formas de a Santa Sé celebrar alianças políticas e ideológicas objectivas com os regimes fascistas e autoritários de Mussolini, Salazar e Franco, mediante as quais a Igreja Católica obtinha largos privilégios espirituais e materiais e ampla liberdade de acção, na metrópole e nas colónias, condicionada ao respeito e ao apoio ideológico à ordem estabelecida. Só que, designadamente no caso português, esses regimes desapareceram; o império levou-o a descolonização; o veto político à nomeação dos bispos caiu em desuso; o monopólio do ensino católico nas escolas foi restringido; a indissolubilidade do casamento católico foi revogada pela revolução de 1974 e o que sobrou da Concordata ¾ o escândalo das isenções fiscais à Igreja ¾ não sustenta, nem moral nem politicamente, a permanência deste instrumento herdado de um passado pouco dignificante de colaboração da hierarquia católica com a ditadura. Revogar a Concordata ¾ no que muitos católicos estão hoje de acordo ¾ seria, pois, a primeira condição para uma clarificação e normalização das relações do Estado português com as confissões religiosas.

            A segunda questão decorre desta: a subsistência inadmissível do privilégio de que continua a gozar a Igreja Católica de não pagar impostos, o qual foi reforçado por diplomas legais do marcelismo e do cavaquismo. A Igreja Católica, os seus membros e as suas instalações são a única associação religiosa que não paga IRS, IRC, IVA ou sisa, o que, além de ser imoral, fere o princípio constitucional de igualdade de tratamento das confissões religiosas pelo Estado e viola o direito comunitário. Nem se diga que o privilégio se justificaria a título de compensação pelas expropriações da I República. Basta lembrar que os quase 60 anos de vigência da Concordata terão largamente indemnizado a Igreja por essas perdas. Convirá dizer, no entanto, que a solução não está, também, na fórmula encontrada pelo projecto-lei recentemente reapresentado pelo PS. Numa habilidade típica de quem não quer tocar nos privilégios da hierarquia, o PS mantém a Concordata e as isenções fiscais da Igreja Católica, mas tenta estendê-las compensatória e parcialmente a algumas outras confissões religiosas (para o que tem de definir administrativamente quais são as religiões susceptíveis de beneficiar delas!). A meu ver, a doutrina que decorre do princípio da laicidade do Estado é precisamente a inversa: as confissões religiosas não devem beneficiar de financiamento do Estado ¾ a sua actividade pertence, por natureza, ao domínio do privado ¾ salvo quando desenvolvam actividades de interesse público, sendo sabido que estas são muitas, que são importantes para a colectividade e que, a esse título, devem ser apoiadas. Não fazer isto é manter e agravar a intromissão discriminatória do Estado no domínio das actividades religiosas, onde, em rigor, só lhe compete intervir para assegurar a liberdade de associação e de expressão a todas as confissões, em pé de igualdade e nos limites da lei.

            A terceira questão respeita ao ensino público. Não tem sentido o Estado continuar a subsidiar o ensino religioso nas escolas públicas, mesmo que só em regime opcional. Desde logo, porque, na prática, isso só funciona, salvo raras excepções, para pagar o ensino católico; mas, principalmente, porque atenta contra o carácter laico da escola pública e põe os cidadãos sem religião ou com outras religiões a financiar o ensino de uma ou de algumas confissões. O ensino religioso deve ser mantido e assegurado pelos fiéis dos respectivos cultos, nos seus locais próprios, posto que, mais do que qualquer outro, esse é um assunto que respeita à consciência religiosa de cada um e não ao interesse geral de um Estado onde convivem todas as religiões sem existir oficialmente nenhuma.

            A quarta questão deduz-se de tudo o mais. Num Estado laico e separado de igrejas não é admissível, como hoje continua a ser prática corrente, a introdução de actos ou símbolos religiosos nas cerimónias de Estado, nos estabelecimentos públicos ou na programação normal dos órgãos de informação públicos, salvo, quanto a estes, em espaços reservados e devidamente assinalados para esse efeito. A laicidade dos espaços e actividades públicas, a não instrumentalização pelos agentes do poder político de qualquer religião não é um gesto contra elas, mas condição primeira de uma efectiva liberdade de associação e de expressão de todos os cultos.

            Finalmente, e à luz do que se disse, impõe-se rever o protocolo do Estado onde, usos herdados da época salazarista continuam a prever a representação exclusiva dos dignatários do clero católico nas cerimónias públicas. Também aqui se não trata de convocar protocolarmente as demais religiões para tais actos, mas de estender o princípio da laicidade a este espaço, tão simbolicamente relevante, das representações externas do poder político.

            Estes poderão ser alguns dos princípios fundamentadores de uma reforma laicizante do Estado português, essencial para a sua reforma democrática. Estou convicto que os católicos atentos aos desafios do presente os entenderão não como a decorrência de quaisquer intempestivos preconceitos anticlericais, mas exactamente como o oposto disso: a exigência de colocar todos os cultos em pé de igualdade jurídica e funcional perante a lei e o Estado, como requisito prévio do livre e plural exercício da liberdade religiosa. Estou convicto, igualmente, de que nenhum católico aceitaria ver, nos dias de hoje, o predomínio histórico e cultural da sua religião alicerçado em privilégios administrativos e financeiros tutelados por uma qualquer forma de neoregalismo estatal mais ou menos disfarçada.

            Menos convicto estou de que os medos e as conveniências mesquinhos em não ferir os poderes hierárquicos há muito instalados, não empurrem o socialismo governamentalizado e meio beato que por aí temos a deitar às urtigas o laicismo que, houve tempo, foi tradição do socialismo português.


(Público)



Associação República e Laicidade