Digamo-lo sem rodeios: a
cobertura televisiva e radiofónica das cerimónias de Fátima no passado dia 13 de
Maio, salvo honrosas excepções (para algumas rádios), foi um dos mais
lamentáveis espectáculos de manipulação a que os media portugueses se prestaram desde que
desapareceu a censura no nosso país. Entre as coberturas televisivas do passado
«13 de Maio» e as que se faziam no tempo do Estado Novo só mudou a cor. Digo-o
sem pretensão de exagero: repórteres no local transformados em oficiantes (como
assinalou, sempre pertinente, Mário Mesquita neste jornal), alguns em transe,
lançados em arrobos disparatados; referindo-se, sem o menor distanciamento ou
rigor profissional, aos «milagres», aos «pastorinhos» e aos «segredos», como se
fossem funcionários eclesiásticos de serviço no local; comentadores e «debates»,
antes e durante as reportagens, unilateralmente alinhados, e em coro, com o mais
redutor espírito mariano, como se não houvesse, dentro e fora do campo cristão,
vozes críticas e dissonantes (nem o programa, normalmente de salutar pluralismo,
de Maria Elisa escapou a este unanimismo ¾ escapou, sim, como quase
sempre, a TSF, louvado seja Deus...); tentativa grosseira de fabricar um
consenso nacional (incluindo o recurso a sondagens risíveis) em torno do «altar
da pátria»; omissão quase generalizada do óbvio incómodo: que a mobilização
ficou muito aquém do «milhão» anunciado e que a revelação do «segredo» lançou na
estupefacção geral dos meios teológicos ¾ tudo isto com triste
destaque para a televisão do Estado regressada, no passado Sábado, à vertente
mais sinistra dos tempos da propaganda.
Confesso que, apesar de
esperado, me custou assistir ao espectáculo a que se prestaram os dirigentes do
Estado e de quase todos os partidos parlamentares: Jorge Sampaio, rosto
compungido, contricto, dizendo-se «reconfortado» com o quarto de hora de
conversa que o Papa lhe concedeu, passeando-se no meio daquilo tudo qual
«pássaro sem asas», como canta a Betânia; Durão Barroso que, apesar dos ares de
conselheiro Acácio em dia de missa, não consegue sair da pele de ex-maoísta
convertido aos mistérios de Maria; Paulo Portas, desfazendo-se em lágrimas de
unção, estava no seu ambiente: dali há-de ter seguido para Vidal Pinheiro,
passando de um «F» ao outro com a mesma convicção com que visita a feira de
Viseu, e o dr. Carlos Carvalhas não podia faltar, ainda que só para cumprir o
protocolo, muito composto na fila dos cumprimentos papais, naquela atitude que
marca o PCP nestas e noutras questões: não entra, nem fica de fora. De fora
ficou, e bem, a meu ver, o Bloco de Esquerda, solitariamente certo na sua
atitude de condenação do envolvimento do PR e do Governo nas cerimónias
fatimistas. Por vezes, a minoria tem razão e, neste caso, há três razões para
ter razão.
A primeira, é que, como se
confirma neste rescaldo do «13 de Maio», o chamado milagre de Fátima é uma
questão muito controversa, mesmo do ponto de vista teológico (não é por acaso
que ele não é dogma de fé) não só entre os cristãos, mas nos meios católicos.
Este marianismo idólatra, assente na exploração dos sentimentos e emoções
primárias da massa, fomentador do espectáculo absurdo e intolerável de gente,
dos mais jovens aos mais idosos, arrastando-se de joelhos ou rastejando em
«pistas» preparadas pelo santuário para o efeito ¾ este culto com
indiscutíveis ressaibros mais de obscurantismo do que de fé, está longe de ser
consensual entre os crentes e é sabido ter sido objecto de críticas e reservas
pelo espírito e pela letra conciliar do Vaticano II. Que os representantes do
Estado português se adiantem a caucionar uma das leituras e expressões públicas
desta polémica religiosa (e logo a mais conservadora), só porque ela arregimenta
grande número de fiéis, é algo que, obviamente, transcende o que lhe compete no
relacionamento com a Igreja, e transcende o entendimento laico dessa
relação.
Em segundo lugar, porque o
«milagre» e as «mensagens» de Fátima foram sempre, historicamente, desde a sua
origem, em 1917, uma arma de arremesso política e ideológica. Contra a República
afonsista e a participação portuguesa na Grande Guerra, naquele ano; recuperada
a partir do patriarcado do cardeal Cerejeira (1929), Fátima transforma-se, já
com caução explícita da hierarquia católica portuguesa, nos anos 30, em bandeira
do anti-comunismo: para consagrar Salazar e o salazarismo como expressões da
«providência divina» e da «bondade de Maria»; para apoiar a «cruzada» de Franco
contra a República espanhola ¾ e é neste contexto que se
«revela» o «segredo» respeitante à «conversão da Rússia», nunca referido
anteriormente. A Fátima e à Virgem percorrendo o país se recorrerá, como
prevenção contra as ameaças dissolventes do pós-guerra, nos anos críticos para o
Estado Novo de 1945 e 1946. E com especial apoio de Pio XII (o Papa que se calou
sobre o holocausto e deu a fuga aos criminosos de guerra nazis), a vertente
anti-comunista continua marcante na Fátima dos anos da guerra fria: a «praça
branca» contra a «praça vermelha», um argumentário insistentemente utilizado
pelo regime salazarista e pela sua polícia política para legitimar a perseguição
e a violência contra a oposição e a resistência à ditadura. Finalmente, a Fátima
que abençoava a guerra colonial e o colonialismo português. Se se trata da
unidade dos portugueses e de os representar como um todo, eu pergunto se a
caução dos dirigentes do Estado a uma cerimónia religiosa com esta carga
política, não acentua mais os factores de divisão e de polémica do que a
discreta abstenção de nela participar, o que, aliás, era imposto como
decorrência do princípio constitucional de separação do Estado e das
igrejas.
O problema, e esta é a
terceira razão, é que a revelação, ou a proto-revelação, do «terceiro segredo»
não vem senão acentuar os factores de polémica e de perplexidade anteriores.
Para quem esperava uma «revelação» voltada para os sofrimentos da humanidade e
para o futuro, depara-se um Papa que se auto-declara como miraculado, que faz do
seu percurso o próprio milagre, num contexto de repetição de uma estafada e
desactualizada retórica anti-ateísta. Como alguém escreveu, Fátima, sem
«segredos» e voltada para o passado, parece deixar de Ter futuro para a
esperança dos fiéis na redenção dos homens. E o PR, queira ou não, acaba por
ficar pendurado nisto tudo.
Em resumo: o que se passou
em Fátima confirma que o Presidente da República Jorge Sampaio não devia ter
participado nas cerimónias religiosas da Cova da Iria, com ou sem beatificação
dos pastorinhos. A razão política, e muito especialmente a razão de Estado, para
ser lúcida, tem de Ter a coragem de remar contra a corrente quando é necessário.
Lamento dizê-lo, mas foi essa coragem política que faltou ao Presidente da
República no passado «13 de Maio».
(Público)