A NOVA DIREITA VELHA



por

Fernando Rosas



Um dos mais estimulantes paradoxos dos tempos que correm é a contradição existente entre a modernidade quase ficcional da revolução tecnológica induzida pela globalização capitalista e o carácter regressivo, por vezes quase neo-obscurantista, do discurso ideológico da «nova direita» que a procura legitimar e traduzir a sua lógica em factos políticos e sociais a partir dos governos que ocupa em vários países europeus e não só.

Em termos económico-financeiros ou em termos sociais, esta nova direita velha, com a recuperação solene do dogma do equilíbrio orçamental, regressa ao pré-keynesianismo. Regressa às estratégias de reposição das taxas de lucro por parte do capital através de ciclos provocados de destruição de forças produtivas, de desemprego, de desregulamentação do trabalho, de baixas dos salários. Há muito que se sabe que esse é o efeito das políticas de rígido equilíbrio orçamental: são esmagadoramente pagas pelos mais pobres e mais fracos, vítimas de eleição do corte das despesas públicas, dos congelamentos salariais e do agravamento das receitas públicas através dos impostos indirectos. É sobre os escombros sociais do desemprego e do desespero social que a nova direita espera poder desorganizar o mundo do trabalho, esvaziá-lo das suas conquistas políticas e sociais, impor-lhe as suas novas/velhas regras do jogo e iniciar «um novo ciclo de prosperidade». Tudo em nome de um apregoado aumento da «produtividade», obtido essencialmente através da sobreexploração do trabalho e da sua condição social.

O exemplo da actual política do governo PSD/PP, nesta matéria, constitui um autêntico «study case». A aplicação, como se de um dogma intocável, indiscutível e incontornável se tratasse, do princípio do equilíbrio orçamental, até nos termos em que é formulado, faz-nos regressar economicamente ao salazarismo e socialmente a muito antes do marcelismo. Só faltará depois, como nas origens do Estado Novo, tratar do sistema político capaz de executar e impor essa estratégia económico-financeira. Mas o actual discurso direitista sobre a «ordem», a «disciplina» e o «trabalho nacional», também ele fantasmagoricamente desenterrado das brumas mais obscuras do passado recente, deixam-nos adivinhar que vão amadurecendo doutrinariamente as propostas de superação de cariz autoritário desta herança democrático-parlamentar, tão morosa, tão dispendiosa, tão excessivamente garantista e tão «ineficaz» do ponto de vista da lógica de acumulação e expansão do capitalismo global.

Mas a nova direita velha começa a assestar baterias para os domínios essenciais dos aparelhos de reprodução ideológica. Entre nós, em termos de educação, está aí, de velas desfraldadas, uma verdadeira ofensiva orquestrada pelos partidos da direita e pelos seus tenores nos «media» contra a escola pública. Tudo, claro está, em nome do princípio da «liberdade de escolha» das «famílias». As «famílias», afirmam eles, haveriam de ser financiadas pelo Estado para poderem pôr os seus filhos nas escolas do ensino privado da sua preferência. Dito de outro modo: o dinheiro dos contribuintes haveria de servir para financiar os negócios privados do ensino - ainda por cima, em muitos casos, confessional ou ideologicamente orientados - em detrimento do ensino público. Isto é, do ensino como serviço público universal e tendencialmente gratuito, do ensino como função central da democracia social, paulatinamente reduzido nesta versão da «liberdade de escolha» a um sistema marginal, subfinanciado e degradado de depósitos escolares de jovens pobres e sem sucesso. Um sistema que asseguraria uma espécie de salário mínimo educacional, enquanto o grosso do financiamento público se destinaria a alimentar um ensino privado, que, do ponto de vista do acesso, tenderá sempre a ser a coutada do privilégio social e, do ponto de vista pedagógico e científico, salvo honrosas excepções, e elas existem, nunca poderá furtar-se, como mola motora essencial, ao critério da rentabilidade e do lucro.

Não deixa de ser quase patético que esta nova direita velha, tão retoricamente ciosa da livre concorrência e do mercado, se torne subitamente estatista, intervencionista e defensora da distorção da concorrência quando se trata de o Estado financiar o ensino privado. Seguramente que este tem um papel a desempenhar como sistema subsidiário do ensino público, enquanto este não consegue completar a sua rede de cobertura regional e curricular. Fora disso, goza da plena liberdade de existir como qualquer iniciativa empresarial privada: por si própria, pelos seus méritos ou, no caso do ensino confessional, pela fé dos seus fiéis que hão-de financiar o ensino orientado pelas crenças que livremente escolheram e sustentam. Em matéria de educação e ensino, a nova direita velha parece querer regressar aos saudosos tempos anteriores à I República, quando o ensino secundário e superior era um estrito privilégio das elites, sendo largamente dominado ou hegemonizado pela inefável tutela da Companhia de Jesus...

Mas a nova direita velha, neste entusiasmo doutrinário regressista, quer também questionar, e não só nas escolas, o princípio da laicidade do Estado. Não que pretenda o regresso ao regalismo ou ao Estado confessional (o que colocaria as igrejas em geral e, no nosso caso, a católica em particular, na incómoda posição de serem tuteladas pelo Estado). Mas, manifestamente, sonham com a plena restauração (até porque ele nunca foi revogado) do regime salazarista da «separação concordatada». Ou seja, um Estado formalmente laico, mas reconhecendo, em termos de privilégios dos domínios do ensino, dos meios de informação, do regime fiscal, etc... o «papel especial» da Igreja Católica como guardiã da «religião da maioria dos portugueses». O Estado, para não cair no mais desbragado e jacobino dos laicismos, haveria de aceitar e promover esse estatuto especial da igreja maioritária nos vários domínios sociais e culturais, designadamente, e desde logo, na escola.

Voltaríamos, assim, aos aspectos mais sombrios e discriminatórios da Concordata de 1940. A Igreja Católica como confissão oficiosa do Estado com o benefício suplementar - que lhe trouxe a democracia, e ainda bem - de não ter de servir, como serviu obedientemente, salvo raras e muito ilustres excepções, ao longo de 40 anos, de principal baluarte ideológico do regime, e sem a rigorosa obrigação, que Salazar também lhe impôs, de não piar, nem como murmúrio, no domínio do político. Ora, precisamente por ser a crença religiosamente dominante, é que se impõe, em nome da liberdade de consciência, a rigorosa separação do Estado e das Igrejas e a neutralidade religiosa do Estado, nomeadamente no tocante à escola. Ao contrário do que pretende o neoconfessionalismo serôdio de que se reivindica a nova direita velha, isso em nada impede as igrejas, sejam elas quais forem, de livremente cumprirem o seu apostolado na sociedade, sendo que em domínios de manifesto interesse público hão-de nisso ser ajudadas pelo Estado. O resto é com a livre e privada escolha de cada um, porque as crenças de cada um são irredutivelmente privadas. E só assim poderá ser, assegurando a liberdade religiosa e a democracia, se o Estado, salvo os casos de manifesto interesse geral, não fizer das actividades religiosas um espaço livre e privativo de actuação. Daí que as religiões tenham liberdade de manter as suas escolas e ensino próprios, mas a escola pública tenha o dever de não ser religiosamente orientada por qualquer crença. Sessenta e dois anos de Concordata já chegam...

Tudo isto para dizer que a revolução tecnológica, só por si, pode não ser sinónimo de modernidade, de progresso económico ou social. É por isso que é importante adjectivar o termo «globalização». A nova direita velha feita governo da globalização capitalista, tal como os «centrões» que a antecederam e catapultaram para esta tarefa, significa sofisticação técnica ao serviço das piores formas de regressismo político e social. Precisamos, os que nisto se não reconhecem, de lhe mudar o adjectivo, porque uma globalização alternativa há-de significar dar ao progresso material o seu verdadeiro sentido emancipatório da condição humana.


(Público)



Associação República e Laicidade