LAICIDADE DO ESTADO E LIBERDADE EDUCATIVA



por

Luis Mateus



A questão da inclusão/exclusão de uma "disciplina" de Educação Moral e Religiosa (EMR) no corpo base - e no tempo lectivo - das matérias curriculares do ensino ministrado pela Escola Pública continua curiosamente a ser um tema recorrente do debate político no nosso país.

Recentemente incomodados com o facto de o actual Governo ter retrocedido na intenção de reintegrar aquela matéria no currículo disciplinar do Ensino Básico, os defensores do retorno a uma expressão reforçada da EMR na Escola Pública têm vindo a invocar [cf., por exemplo, o artigo de Mário Pinto - Jornal Público de 30/set.] uma argumentação que convém refutar com alguma veemência, já que assenta num entendimento distorcido do conceito de Laicidade, numa leitura enviesada das normas constitucionais que visam a neutralidade do Estado em matérias que relevam das convicções dos cidadãos e numa interpretação abusiva do papel do Estado na garantia do direito de os pais escolherem livremente a educação a dar aos filhos.

Efectivamente, num sistema republicano, a Laicidade - tal como sucede com a Liberdade, a Igualdade e a Democracia - constitui um princípio de regime, uma modalidade de organização da vida colectiva que decorre directamente do objectivo da promoção do "bem comum" e que consiste na institucionalização da neutralidade no espaço da vivência social colectiva, por forma a garantir uma possibilidade igualitária da expressão livre e democrática das múltiplas opções confessionais (filosóficas, ideológicas, etc.) dos cidadãos.

Assim entendida, a Laicidade - muito embora se oponha claramente a todos os clericalismos e regalismos que visam impor e perpetuar uma religião oficial e única a uma sociedade - não implica, por forma alguma, uma postura de ateísmo ou sequer de anti-religiosidade de Estado e, muito pelo contrário, constitui o modo de assegurar a máxima liberdade e igualdade entre os cidadãos na vivência e na expressão das suas crenças e convicções. Por esse motivo, um Estado que assume e promove a Laicidade como a boa regra de conduta entre os seus membros nunca poderá ser considerado totalitário, tal como será absurdo falar de uma ditadura da Liberdade ou de uma discriminação da Igualdade...!

Numa outra perspectiva, porque a Laicidade constitui a norma de Direito Público que faz relegar para o domínio do Direito Privado as relações dos cidadãos no universo das suas crenças e convicções (religiosas, filosóficas, ideológicas, etc.), muito embora o Estado deva permanecer neutro e equidistante perante as diferentes opções dos seus membros naquelas matérias, compete-lhe uma conduta pró-activa na afirmação e promoção da Laicidade, tal como lhe compete garantir a Liberdade, a Igualdade e a Democracia que também enformam o regime.

Da mesma forma, a norma constitucional que estabelece que "o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas" (nº2 do art.43º) não pode servir para inibir o Estado de, precisamente, garantir que a educação e a cultura não sejam programadas segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

Quanto ao direito de os pais escolherem livremente a educação a dar aos filhos e, designadamente, ao direito de os educarem segundo as suas convicções (religiosas, filosóficas, ideológicas, etc.), é naturalmente ao Estado - no seguimento, aliás, da sua postura de Laicidade - que cabe a função de o assegurar através da garantia das mais largas liberdades cívicas; contudo, esse direito não pode implicar o dever de o Estado proporcionar, a cada um e no âmbito da Escola Pública, um modelo de educação dependente da vontade dos pais, situação que, no limite, o levaria a aceder aos mais variados (e inimagináveis) caprichos...!

Na verdade, o dever que cabe ao Estado na garantia do direito individual e universal à educação e à instrução deve entender-se, por um lado, na sua dimensão de promover uma educação para a cidadania - para a intervenção e participação cívicas, para a solidariedade e a responsabilidade sociais, para a abertura e a tolerância culturais, etc. - e, por outro lado, na sua vertente de assegurar uma instrução tão alargada e avançada quanto seja materialmente possível. A educação para a confessionalidade, essa deverá obviamente competir aos pais e às igrejas, no quadro das liberdades que a Laicidade do Estado forçosamente lhes garante...!

Braga, Outubro de 2002


Nota: a publicação deste artigo foi recusada no «Público».



República e Laicidade!