A Laicidade na construção europeia
O projecto da construção de uma entidade política pan-europeia pressupõe que será possível definir o interesse geral de uma futura res publica europeia a partir de valores partilhados por todos, salvaguardando assim as instituições comuns da instrumentalização por interesses particulares. No entanto, –e deixando de lado as especificidades sociológicas nacionais– o espaço que a União Europeia pretende abranger inclui cidadãos que professam todas as principais variantes das religiões cristãs, conta hoje no seu interior mais de dez milhões de pessoas de tradição muçulmana –e outras de variadas religiões com ou sem tradição histórica europeia–, para além de englobar muitas pessoas que se revêem no pensamento ateu e agnóstico. Seria portanto necessariamente desejável –para que se possibilitasse a coesão social europeia– que os valores cívicos comuns da União Europeia fossem definidos independentemente das pertenças confessionais, que historicamente foram sempre, aliás, uma fonte de divisões e de conflitos, senão mesmo de guerras. A Laicidade, que consiste na separação rigorosa entre a esfera pública –que deve ser confessionalmente neutra e regida por valores cívicos e políticos consensuais– e a esfera privada –que deve ser um espaço de liberdade individual– garantiria que a res publica europeia fosse independente de interesses clericais ou corporativos, remetendo o livre exercício das várias opções religiosas ou filosóficas para a esfera privada.
Longe de ser um estatuto cívico comum aos
sistemas políticos de todos os Estados que fazem parte da União Europeia, a
Laicidade é mencionada explicitamente apenas no texto constitucional de um
único Estado, a França –que é o Estado que mais se aproxima do ideal laico–,
enquanto persistem alguns regimes marcadamente confessionais (na Grécia, na
Irlanda, no Reino Unido ou na Dinamarca) e outros semiconfessionais (na
Alemanha, na Holanda, na Bélgica, na Suécia ou na Finlândia) ou concordatários
(na Itália, na Espanha, na Áustria, no Luxemburgo e em Portugal –em contradição
com a afirmação constitucional da separação do Estado e das Igrejas). As
variações na forma das relações entre o Estado e as Igrejas ou entre o Estado e
o cidadão são consideráveis. Assim, no Reino Unido o monarca é o chefe da
Igreja Anglicana e quatro bispos têm assento na Câmara dos Lordes; as
constituições da Grécia e da Dinamarca estabelecem respectivamente a Igreja Ortodoxa
Grega como “predominante” e a Igreja Luterana Evangélica como Igreja nacional;
a Constituição da Irlanda é proclamada “em nome da Santíssima Trindade”[1];
tanto na Grécia como na Dinamarca as
Igrejas são administradas directamente pelo Estado através de um
Ministério que salaria o clero e financia a construção de templos, enquanto que
no Reino Unido o Parlamento tem autoridade directa sobre a Igreja Anglicana,
sendo os bispos nomeados pelo Primeiro Ministro; os juramentos religiosos são
obrigatórios para as autoridades políticas e judiciais (na Irlanda) ou para os
membros do Governo (na Grécia). Nestes países europeus, passar pela escola,
mesmo pública, sem tomar parte em cerimónias religiosas ou sem frequentar uma
disciplina de religião é difícil senão mesmo impossível… No extremo oposto,
constitucionalmente “A França é uma República indivísivel, laica,
democrática, e social”[2],
encontrando-se o ensino da religião ausente do ensino público, e não sendo
subsidiada a construção de templos religiosos alguns (com a excepção dos
departamentos da Alsácia e da Mosela, onde vigora um regime concordatário). Ao
contrário da França, os outros países tradicionalmente católicos mantêm
concordatas com a Santa Sé, o que geralmente garante isenções fiscais para a
Igreja Católica, a existência de assistência religiosa católica paga pelo
Estado nos hospitais e nas forças armadas, e o ensino –pago pelo Estado– da
religião católica no ensino público, embora na Áustria e no Luxemburgo o ensino
da religião seja pago pelo Estado também nas escolas privadas, sendo o clero
pago pelo Estado –por obrigação constitucional– no Luxemburgo. Nos Estados de
regime concordatário, apareceu nos anos mais recentes uma tendência para
estender algumas das prerrogativas de que goza a Igreja Católica a determinadas
comunidades religiosas tradicionais que o Estado decide reconhecer (comunidades
essas cristãs ortodoxas ou protestantes, judaicas, ou mesmo muçulmanas no caso
da Espanha), o que se traduz, nomeadamente, num regime de isenções de taxas e
impostos, e na possibilidade de os contribuintes que se identificam com essas
comunidades verterem parte do imposto anual devido ao Estado para a sua
comunidade religiosa (Áustria, Espanha, em breve Portugal). Este «imposto de
igreja» é uma prática já há muito institucionalizada nos países aqui
classificados como de regime semiconfessional, como é o caso da Alemanha –onde tanto o imposto de igreja como
o ensino da religião são possibilitados à Igreja Católica e às comunidades
protestantes e judaicas–, e da Finlândia, onde há duas igrejas que beneficiam
do imposto de igreja –a Igreja Luterana Evangélica e a Igreja Ortodoxa. Na
Bélgica mantém-se um arranjo peculiar, em que o contribuinte pode descontar
para uma das seis confissões religiosas reconhecidas pelo Estado ou para uma
federação de associações laicas. O Estado subsidia as necessidades materiais e
financia o ensino da doutrina destes sete «pilares sociais». Num
desenvolvimento indubitavelmente positivo, a Suécia separou formalmente no ano
2000 a sua Igreja Luterana do Estado, embora mantenha tanto aulas de religião
obrigatórias como o apoio financeiro à Igreja e a todas as outras comunidades
religiosas.
Tendo revisto a multiplicidade europeia de
relações institucionais com as comunidades religiosas, deve sublinhar-se que a
União Europeia –como construção distinta do conjunto de Estados que a compõem–
não seguirá necessariamente o caminho multiconfessional recentemente trilhado
por tantos Estados europeus, sendo pelo contrário desejável que adopte a
Laicidade como princípio que facilitaria a relação directa do cidadão com um
putativo Estado europeu, sem a mediação de uma comunidade religiosa ou
filosófica.
A importância da
Laicidade no processo de institucionalização da União Europeia ganhou a atenção
da opinião pública pela primeira vez aquando da discussão, no ano 2000, da
Carta dos Direitos Fundamentais. Efectivamente, foram numerosas as pressões
para que o Preâmbulo da Carta incluísse uma referência à «herança religiosa»
da Europa. Sob pressão de diversos países e organizações, a solução final
acabou por referir o “património espiritual”[3],
formulação essa que, todavia, na tradução alemã ainda significa “património
religioso”… A questão da necessidade (ou não) de um fundo religioso comum aos
diversos países da União Europeia tem sido também amplamente referida quando se
discute a possível entrada da Turquia na UE. Algumas personalidades e grupos
políticos têm afirmado sem ambiguidades que “a União Europeia é um clube
cristão” (a frase é de Helmut Kohl), no qual um país de tradição muçulmana não
tem lugar.
O debate actual sobre a «Constituição Europeia», desencadeado pelo início dos trabalhos da Convenção no final de 2002, teve até agora o seu único momento de polémica pública generalizada em torno da questão de saber se se deveria fazer ou não uma referência explícita a «Deus» no texto constitucional. Fora esse o desejo expresso pelo Papa e por individualidades conservadoras como Giscard d´Estaing (Presidente da Convenção) e Helmut Kohl, desejo esse veiculado na proposta adoptada pelo principal grupo parlamentar do Parlamento Europeu (o Partido Popular Europeu, que seguiu a sugestão de Karol Wojtyla de usar parte do Preâmbulo da Constituição polaca[4]). No entanto, os primeiros artigos da Constituição já conhecidos –na sua redacção provisória– não fazem referência a «Deus» como fonte dos valores comuns da União, embora também não adoptem a Laicidade como um princípio constitutivo[5]. Deve notar-se no entanto que estes artigos da futura Constituição da UE estão ainda sujeitos a alterações, e que um dos Vice-Presidentes da Convenção (o pós-fascista Gianfranco Fini) ainda insiste em que o texto constitucional refira a UE como “uma comunidade que partilha a herança judaico-cristã como os seus valores fundamentais”. Além disso, segundo o nº1 do Artigo 7º do texto (final) da Constituição, a Carta dos Direitos Fundamentais –que por enquanto é meramente uma proclamação– deverá ser retomada como parte integrante –e portanto vinculativa– da Constituição. Permanece portanto actual e premente a questão –que é muito mais do que simbólica– de saber se os valores constitutivos da União Europeia devem ser de origem religiosa e portanto apenas acessíveis à parcela dos cidadãos europeus que são crentes, ou se serão valores laicos –e portanto abertos a todos, crentes ou não.
Ricardo Gaio Alves
Abril de 2003
[1] “Em nome da Santíssima Trindade, de quem vem toda a autoridade, e a quem, como nossa finalidade última, todas as acções tanto dos homens como dos Estados se devem referir, Nós, o povo da Irlanda, humildemente reconhecendo as nossas obrigações para com o nosso Divino Senhor, Jesus Cristo, que sustentou os nossos antepassados através de séculos de provações, [...] estabelecemos esta constituição.” (Excerto do Preâmbulo da Constituição da Irlanda.)
[2] Artigo 1º da Constituição da República Francesa.
[3] “Consciente do seu património espiritual e moral,
a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser
humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios
da democracia e do Estado de direito.” (Excerto do Preâmbulo da Carta dos
Direitos Fundamentais.)
[4] “Os valores da União incluem os valores daqueles que acreditam em Deus como a fonte da verdade, da justiça, do bem e da beleza, assim como daqueles que não partilham tal crença mas respeitam estes valores universais como vindos de outras fontes.” (Artigo 57º do projecto de Constituição do PPE).
[5] Artigo 2º (Valores da União): “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, do Estado de direito, e do respeito pelos direitos do Homem, valores que são comuns aos Estados-membros. Visa ser uma sociedade pacífica que pratica a tolerância, a justiça e a solidariedade.“