Laicidade e Constituição europeia
A Comunidade Económica Europeia foi lançada, nos anos
posteriores à guerra de 1939-45, com a preocupação de prevenir que a Europa
voltasse a ser dilacerada por guerras como as que causaram dezenas de milhões
de mortos durante o século 20 e que provocaram a perda da supremacia dos países
europeus no quadro mundial. O seu objectivo inicial era a coordenação de algumas
políticas económicas sectoriais dos países considerados centrais –a Alemanha, a
França, a Itália, os países do Benelux, eventualmente o Reino Unido–
impossibilitando assim o desenvolvimento de rivalidades económicas que pudessem
descambar em afrontamentos nacionais. Após a desagregação da esfera de influência
soviética na Europa de Leste, definiram-se em 1991 objectivos mais ambiciosos
alargando quer o âmbito de intervenção das políticas comunitárias, quer a área
geográfica a integrar na –desde então– União
Europeia.
Nesse momento em
que a CEE se alargava rebentou nos Balcãs a primeira guerra europeia após 1945.
No entanto, os países reunidos na CEE não conseguiram acertar numa estratégia
conjunta que permitisse evitar ou conter as guerras jugoslavas. Efectivamente,
a Alemanha recém-unificada decidiu unilateralmente reconhecer a independência
da Croácia e da Eslovénia católicas –uma posição em que fora precedida por um
único Estado, a Santa Sé– e ameaçou mesmo adiar o Tratado de Maastricht se os
restantes onze países não a acompanhassem nesse movimento diplomático. Posteriormente,
a Grécia –particularmente durante a guerra do Cosovo– tomou posições de
solidariedade para com a Sérvia explicáveis, em parte, pela partilha de um
fundo religioso cristão ortodoxo que a isola na União Europeia. Finalmente, no
início do século 21, os atentados de 11 de setembro de 2001 inauguraram uma
nova era de crispações internacionais dominadas, em parte, por razões
religiosas, numa época em que a imigração já trouxe para a Europa ocidental
importantes contingentes de crentes muçulmanos. A União Europeia corre portanto
o risco permanente da divisão ao longo de linhas de fractura religiosas. No
sentido de obstar a essas divisões, seria importante que a União Europeia se
abstivesse de se definir como um “clube cristão”, e adoptasse valores que
pudessem ser partilhados por todos os povos e cidadãos independentemente das
suas opções de consciência e das suas referências identitárias.
Nos anos mais
recentes, a União Europeia tem vindo a intervir cada vez mais em áreas que
afectam direitos humanos ou sociais, e nas quais as realidades sociais e os
regimes nacionais dos países membros (laicidade do Estado, confessionalismo de
Estado, multiconfessionalismo de Estado), de tão distintos, geram inevitavelmente
conflitos que muitas vezes colocam a questão de saber qual deve ser o
relacionamento entre a UE e as igrejas, e se o direito comunitário deve afectar
o relacionamento entre os Estados e as igrejas. Estes conflitos ficaram
evidentes quer aquando da adopção da directiva comunitária[1]
contra a discriminação “racial” e religiosa –que colocou a questão de saber se
as disposições anti-discriminação da União Europeia devem ou não afectar as
igrejas e comunidades religiosas enquanto empregadores–, quer devido às
directivas comunitárias tendentes a harmonizar o regime fiscal dos Estados
membros[2] –em
consequência das quais Portugal e a Espanha foram denunciados junto da Comissão
Europeia por manterem a Igreja Católica isenta de IVA, sonegando assim fundos
comunitários. No Parlamento Europeu, tem havido lugar para divisões de origem
religiosa, nomeadamente aquando da discussão de relatórios e recomendações sobre
o planeamento familiar, sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo
sexo[3] ou
sobre o financiamento europeu à investigação científica em embriões, assuntos cuja
discussão suscita pressões enormes de lóbis clericais. É previsível que, no
futuro, a União Europeia se ocupe cada
vez mais de produzir legislação que dividirá o Parlamento Europeu entre laicos
e clericais.
No final do ano de
2002, iniciaram-se os trabalhos da Convenção, com o objectivo de produzir um
texto para-constitucional que sistematizasse e clarificasse os vários Tratados
já assinados (Roma em 1957, Luxemburgo em 1970, Maastricht em 1991, Amesterdão
em 1997, Nice em 2001).
A contribuição da
Igreja Católica para a futura Constituição fora tornada pública anteriormente,
através de um documento da COMECE (Comissão dos Episcopados da Comunidade
Europeia)[4].
Nesse documento, exigia-se:
i)
a adopção da declaração nº11 anexa à acta final do Tratado de Amesterdão[5],
garantindo assim constitucionalmente o “respeito pelo estatuto das Igrejas e
comunidades religiosas” nos respectivos contextos nacionais e o respeito pela
sua “organização interna”;
ii)
“um diálogo estruturado entre as instituições europeias e as Igrejas e
comunidades religiosas”, no reconhecimento do seu “contributo específico”;
iii)
que fosse feita referência ao “nome de Deus”, “a fim de permitir a
identificação dos cidadãos com os valores da União Europeia, e para mostrar que
o poder público não é absoluto”[6];
As demandas da
Igreja Católica seriam reforçadas na exortação apostólica “Ecclesia in Europa”[7],
onde –num momento em que o debate sobre a Constituição Europeia já produzira,
provisoriamente, alguns artigos– o Papa Karol Wojtyla “[dirige-se] aos
redactores do futuro tratado constitucional europeu” reiterando a exigência
“para que seja inserida nele uma referência ao património religioso, especialmente
cristão, da Europa” e, em termos claros, exorta a que seja adoptada a declaração
nº11 anexa à acta final do Tratado de Amesterdão, nessa altura já vertida num artigo
constitucional.
A polémica sobre o Preâmbulo gozava já de alguma atenção da opinião
pública. A primeira versão,
datada de 28/5/2003, tentara ser inclusiva fazendo referência tanto ao “elã
espiritual que percorre a Europa”, como às “correntes filosóficas do Século das
Luzes”[8]. A
versão final do Preâmbulo suprimiu tanto uma como a outra, num esforço de
neutralidade.
“Inspirando-se
nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, cujos valores, ainda
presentes no seu património, enraizaram na vida da sociedade o papel central da
pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem
No entanto, desde a primeira versão conhecida
que o projecto de Constituição para a Europa incluía a Declaração nº11 do
Tratado de Amesterdão, tendo-lhe sido aditado um parágrafo prevendo o “diálogo”
com as igrejas e comunidades religiosas. A versão final mantém este artigo, o I-51º, na forma
seguinte:
Artigo I-51.º:
Estatuto das Igrejas e das organizações não confessionais
1.
A União respeita e não afecta o
estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as igrejas e associações
ou comunidades religiosas nos Estados-Membros.
2.
A União respeita igualmente o
estatuto das organizações filosóficas e não confessionais.
3.
Reconhecendo a sua identidade e o
seu contributo específico, a União estabelecerá um diálogo aberto, transparente
e regular com as referidas igrejas e organizações.
A Igreja Católica conseguiu assim o essencial daquilo que
reclamara: a certeza de que a UE não afectará o estatuto de que goza ao abrigo
do direito nacional em cada Estado (deve notar-se que a Igreja Católica tem
Concordatas com Portugal, Espanha, Itália, Áustria, Alemanha, Luxemburgo,
Polónia, Eslováquia e Eslovénia, goza de forte influência na Irlanda e é a
igreja de Estado em Malta); e a garantia de que será consultada sempre que se
tomem decisões em matérias como o planeamento familiar, a política de família e
a bioética. Não deve portanto espantar-nos que, num comunicado de imprensa
datado de 31/10/2003, a COMECE declare que “os bispos europeus foram unânimes
em acolher favoravelmente o projecto constitucional no seu conjunto” e que “saúdam
o lugar que foi reservado [às questões religiosas]” no projecto, “nomeadamente
o artigo I-51º”. No entanto, no mesmo comunicado é renovado o “apelo” a uma
“referência ao cristianismo no preâmbulo do tratado”. O tom vitorioso do
comunicado da COMECE constrasta fortemente com a ideia, que continuou a ser
transmitida à opinião pública, de que o projecto de Constituição para a Europa
constituía de alguma forma uma afronta ao catolicismo.
Podemos concluir que a Constituição europeia, embora
felizmente tenha evitado uma referência explícita ao património cristão que só
poderia afrontar quer países como a Turquia quer os cidadãos não cristãos, decidiu
proteger o estatuto de que gozam as igrejas nos respectivos contextos nacionais
e optou por estabelecer um regime de colaboração com as igrejas e comunidades
religiosas que fere decisivamente o princípio de laicidade da própria União
Europeia. Seria desejável que, pelo contrário, a União Europeia fosse baseada
no princípio da separação entre a política e a religião.
Ricardo Gaio Alves
Maio de 2004
[1] Directiva do Conselho Europeu
2000/78/CE de 27/11/2000,.
[2] Directiva do Conselho europeu,
17/5/1977, 77/388/CEE.
[3] Por exemplo, a recomendação do
Parlamento Europeu de 16/3/2000, que pedia aos Estados membros que garantissem
às famílias monoparentais, aos casais em união de facto e aos casais do mesmo
sexo os mesmos direitos de que disfrutam os outros casais.
[4] “L´avenir de l´Europe. Engagement politique,
valeurs et religion” - Contribution du secrétariat de la COMECE au débat
sur l´avenir de l´Union européene dans la Convention Européene. Bruxelas, 21/5/2002.
[5] “Declaração relativa ao estatuto das Igrejas e
das organizações não confessionais: A União respeita e não afecta o estatuto de que
gozam, ao abrigo do direito nacional, as Igrejas e associações ou comunidades
religiosas nos Estados-Membros. A União respeita igualmente o estatuto das
organizações filosóficas e não confessionais.” (Declaração nº11 anexa à Acta
Final do Tratado de Amesterdão, mas sem efeito vinculativo.)
[6] O documento da COMECE sugeria que
fosse usada a formulação do preâmbulo da Constituição polaca, que afirma querer
incluir “aqueles que acreditam em Deus enquanto fonte dos valores da verdade,
da justiça, do bem e da beleza bem como os que não partilham esta fé mas
respeitam estes valores universais provenientes de outras fontes”.
[7] Exortação apostólica “Ecclesia
in Europa” (28/6/2003), parágrafo 114.
[8] “Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e
humanistas da Europa, que, alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e
romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar
presente no seu património, e depois pelas correntes filosóficas do Século das
Luzes, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da
pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do
respeito pelo direito, (...)” (Excerto do Preâmbulo na sua versão de 28/5/2003.)