«laicidade» ou «laicidade», que diferença?

 

Em crónica recente (“Fado, futebol e Fátima”), Pedro Mexia – assumidamente “Católico [com] alguma distância face a Fátima” – reconhece que, em Portugal, embora “cada vez mais em crise em todos os índices e indícios”, “o catolicismo continua invulgarmente beneficiado para o que seria normal num Estado laico” e que, assim sendo, “nos encontramos atrasados em matéria de laicidade”. Reconhecendo ainda que “o domínio religioso devia pertencer apenas à «sociedade civil», sem nenhum nexo especial com a esfera pública” e que “a religião é, por natureza, dos indivíduos, e só tem trazido maus resultados a sua promoção ou cooptação pelo poder”, Pedro Mexia acaba a fazer votos para que “a revisão da Concordata e outros acertos [quais?] afastem definitivamente o Estado português do modelo salazarista (aliança com a religião) mas também do modelo francês (contra a religião)”...

É com agrado – e, sobretudo, com esperança – que constatamos as progressivas mudanças de atitude e perspectiva que muitos católicos portugueses têm vindo a demonstrar perante a questão da «laicidade», mudanças essas que o artigo de Pedro Mexia bem ilustra.

Gostaríamos, contudo, de deixar aqui as três curtas notas que se seguem.

1. A Concordata, qualquer Concordata, concretiza forçosamente uma violação do princípio e da norma da «laicidade» do Estado, já que, com fundamento em matéria de convicção («esfera privada» do indivíduo), institui um «regime especial» de relacionamento – um «regime discriminatório», portanto – entre esse Estado (espaço da «esfera pública») e uma parcela dos seus cidadãos, no caso, os católicos;

2. Não existe uma «laicidade à francesa» (contra a religião), pois uma «laicidade anti-religiosa», tal como uma «laicidade religiosa» (concordatária, por exemplo), constituiria um absurdo conceptual: a «laicidade» – do termo grego «laos» que se refere ao universo social total de uma comunidade – nada mais visa que garantir uma efectiva possibilidade universal e equitativa de acesso e fruição do «espaço público» e, decorrentemente, impedir que qualquer grupo social dele se possa apropriar e/ou que nele possa existir qualquer discriminação, seja ela positiva ou negativa;

3. A questão da «laicidade» tem sido geralmente mal entendida pelos católicos – pelos católicos portugueses e não só – na medida em que ela implica um entendimento precisamente contrário ao que, por regra, tem sido adoptado: efectivamente a «laicidade» não se pode construir por processos de extensão a outras comunidades (religiosas ou não) de privilégios historicamente detidos por uma comunidade – tal como faz, por exemplo, a “Lei da Liberdade Religiosa”, em Portugal –, mas sim pelo abandono de todo e qualquer «regime de privilégio»...

27-04-2004

Luis Manuel Mateus (Presidente da Direcção da Associação República e Laicidade)

 

Publicado no “Diario de Notícias” de 30/4/2004, com o corte assinalado a itálico, com referência ao nome da Associação, e com o título “Catolicismo, religiões e Estado”.