O ESTADO E AS IGREJAS



por

Fernando Rosas



                        O anteprojecto de lei sobre a liberdade religiosa apresentado pelo Ministro Vera Jardim propõe-se, quase 23 anos após o "25 de Abril", concluir aquilo que pareceria dever ter sido uma das obras prioritárias do Estado republicano, laico e democrático: acabar com os resquícios de tratamento privilegiado da Igreja Católica por parte do Estado e estabelecer, com base no princípio da separação, uma relação de plena igualdade de todas as confissões religiosas perante a lei e a Administração. Sem separação absoluta do Estado e das igrejas, sem clara consagração legal do carácter laico do Estado e sem o seu correlativo que é a plena igualdade de condições para a criação e o exercício de todos os credos religiosos no plano jurídico, não há liberdade religiosa. E sem liberdade religiosa não há verdadeira democracia.

                        Portanto, mais vale tarde do que nunca: após as medidas parcelares de revisão da Concordata, em 1975, o presente anteprojecto vem continuar aquilo que, a meu ver, foi o principal legado da I República: a laicização do Estado, não obstante os excessos e desvios que acompanharam, na teoria e na prática, a Lei de Separação de Abril de 1911.

                        No entanto, seria enganoso ver no aparente consenso que cercou o anúncio do anteprojecto - designadamente por parte de alguns dignatários da Igreja Católica, a entidade potencialmente mais prejudicada com ele, dado o fim eventual dos seus privilégios remanescentes a vários níveis - um curso fácil para a respectiva aprovação, pelo menos sem possíveis deformações graves fruto de um qualquer novo acordo rectificativo da parte do "Bloco Central"...

                        Dois problemas merecem atenção particular.

                        Primeiro, o da "separação do trigo do joio", para retomar a expressão do Bispo de Bragança, logo glosada pelo Primeiro Ministro. Isto é, para reduzir a coisa aos seus verdadeiros termos, a questão de separar as "boas" das "más" religiões, as "verdadeiramente religiosas" das "falsas", as "religiões" propriamente ditas das "seitas". Não me parece de forma alguma aceitável que o Estado possa vir a promover qualquer tipo de autorização prévia para a legalização das associações religiosas baseado em critérios de fiabilidade, directa ou indirectamente ligados a princípios de "legitimidade" ou de "autenticidade" religiosa. Esse é um problema dos crentes, não do Estado ou de qualquer "Comissão para a Liberdade Religiosa". A qual, se com essas funções, acabaria sempre por descambar num lobby de selecção prévia ao serviço das religiões mais influentes, neste caso da própria Igreja Católica.

                        Às associações religiosas deve aplicar-se, creio eu - e é isso que julgo ver consagrado no anteprojecto - um estatuto semelhante ao de qualquer associação cultural: liberdade de constituição, devendo elas, em especial neste domínio, ser alvo de criteriosa fiscalização pública que ateste da conformidade da respectiva acção com a lei. A legalidade da actuação compete ao Estado fiscalizá-la a posteriori; a credibilidade do culto é assunto privado dos cidadãos crentes que só a eles cabe ajuizar.

                        O segundo problema tem sido apresentado como o da igualdade de tratamento dos vários cultos por parte do Estado, designadamente no domínio fiscal (a Igreja Católica goza, solitariamente, desde a Concordata de 1940, do privilégio de isenção fiscal) e do financiamento público.

                        Salvo melhor opinião, parece-me que a questão está mal posta. Em princípio, o Estado laico não tem que interferir na actividade religiosa a nenhum título - designadamente isentando de impostos ou financiando -, salvo para fazer cumprir a lei. Não se compreende, à luz dos princípios da separação, que a comunidade, através do Orçamento de Estado, continue a subsidiar a Igreja Católica ou que alargue esse financiamento a todas as demais (e com que critérios de distribuição?), excepto em situações particulares onde de tais actividades (designadamente no campo assistencial) resultem indiscutíveis benefícios para a vida das populações. Só em tais casos se justificaria o apoio público, criteriosamente avaliado e concedido para cada um deles.

                        O mesmo se diga quanto aos privilégios de que ainda goza a Igreja Católica no tocante ao ensino da sua religião nas escolas. Não se trata de o ensino público os alargar aos demais credos: trata-se de reconhecer que a difusão das crenças religiosas é um assunto privado dos respectivos crentes, a ser realizado nos seus espaços privativos e com os seus meios próprios, fora do espaço e do domínio curricular e docente do ensino público e sem qualquer apoio (logístico ou financeiro) da parte dele.

                        À luz de tais princípios, o problema não será o de "democratizar" e estender os actuais privilégios da Igreja Católica, mas sim o de extingui-los genericamente, cabendo ao Estado apoiar pontualmente aquelas actividades de qualquer confissão religiosa que se revistam de indiscutível interesse e benefício público.

                        Nem se argumente, como já adiantou o Bispo de Bragança, que o privilégio da isenção fiscal ou de certos financiamentos públicos (por exemplo, para a construção de templos católicos) se deve manter para a sua Igreja a título de ressarcimento das expropriações decretadas pelas leis de 1834 e de 1911. A questão é duplamente falaciosa: por um lado, porque caberia perguntar que indemnização era devida a uma Igreja que, antes e depois de 1834, até 1911, no quadro do sistema regalista, do Estado confessional então vigente, viveu longamente à custa do erário público e do orçamento dos cultos; por outro, porque após uma primeira devolução dos bens diocesanos durante o consulado sidonista, em 1918, a Concordata de 1940 regulou, por mútuo consenso, as restituições a que a Igreja tinha direito.

                        Os privilégios então concedidos de jure e de facto (a isenção fiscal, o reconhecimento da personalidade jurídica, o papel no ensino, etc.) foram-no não a título de indemnizações, mas no quadro de uma cooperação político-ideológica entre o Estado Novo e a Igreja Católica, em que esta chamava a si funções complementares de enquadramento e legitimação ideológica do regime salazarista. E, convenhamos, esse tempo já passou.


(Público)



Associação República e Laicidade