O ESTADO LAICO



por

Fernando Rosas



Houve quem visse e houve quem não quisesse ver: na inauguração do comboio na Ponte 25 de Abril, durante uma cerimónia de Estado, um alto dignitário da Igreja católica, o bispo de Setúbal, benzeu o evento, procedeu a umas rezas e aspergiu a circunspecta e pia assembleia, constituída pela fina flor do poder socialista. A benzedura fazia-se, naturalmente, a pedido governamental, e integrando os fastos oficiais do acto. O próprio Primeiro-Ministro, em público exercício de funções, secundou as rezas e benzeu-se. Como se calculará, nada tenho contra as convicções religiosas particulares do engº Guterres ou de quem quer que seja, mas a sua exteriorização enquanto chefe de Governo de um Estado que é constitucionalmente laico e, mais do que isso, a integração no protocolo da República de cerimonial de uma confissão religiosa ¾ isso, levanta-me a maior das perplexidades. Porque viola frontalmente o princípio constitucional da areligiosidade do Estado e, sobretudo, atenta contra o direito fundamental à liberdade religiosa que a laicidade de instituições públicas deveria garantir.

Mas este foi, unicamente, o mais recente episódio de uma série de cedências inconstitucionais por parte dos governos cavaquistas e do engº Guterres à Igreja Católica, demonstrando a influência e interferência crescentes daquela hierarquia religiosa nos assuntos da governação e da política. Que a Igreja Católica queira influenciar a vida política, admite-se como normal decorrência da sua liberdade de actuação. Que o Estado ceda a essas pressões, violando a essência laica da sua natureza constitucional e desrespeitando as convicções dos cidadãos com outras crenças religiosas ou sem religião ¾ aí pisa-se o terreno das liberdades públicas. Não há verdadeira democracia sem liberdade religiosa, isto é, sem igualdade dos cidadãos perante a lei, também no domínio das crenças religiosas. E aquela não existe, onde existe o Estado confessional ou disfarçadamente confessional, situação para que parecem querer empurrar as governações do PSD e do PS.

Senão, como interpretar os privilégios de nomeação de docentes e financiamento de que continua a gozar o ensino católico nas escolas públicas secundárias? Ou o escândalo do financiamento público à Universidade Católica, situações criadas pelo tutelar da Educação dos ministérios do PSD, o engº Roberto Carneiro, e mantidos pelo actual Governo? E alguém já se esqueceu do vergonhoso negócio congeminado pela direcção do PS para sabotar a aprovação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG)?

E que dizer da legislação em preparação sobre o financiamento das confissões religiosas? Com vista a não tocar numa Concordata com a Santa Sé herdada do Estado Novo e claramente inconstitucional, designadamente nas amplíssimas (e ilegais) vantagens fiscais que confere à Igreja Católica, o Governo prepara-se para fazer precisamente o contrário do que se esperaria que fizesse. Em vez de colocar todas as confissões em pé de igualdade perante o Estado na base do princípio do não financiamento público, salvo para actividades de indiscutível interesse para a colectividade, distribui algum dinheiro a certas confissões por ele «seleccionadas», para poder continuar a pagar muito, directamente ou pela via das isenções fiscais, à Igreja Católica. Dinheiro público, ou seja, cobrado também aos rendimentos dos não católicos.

Simultaneamente, fortes do pseudo-sucesso contra a IVG, os meios católicos conservadores lançam-se numa campanha contra os preservativos nas escolas secundárias e mandam uns meninos protestar ao Presidente da República. Para os papás e as mamãs dos meninos a prioridade está na «educação moral» no seio da «família» (não na educação sexual nas escolas a que sempre se opuseram). Entretanto, enquanto não são iluminados pelo Espírito Santo, de preferência por via familiar, os adolescentes continuarão, todos os dias, a correr o risco de uma gravidez precoce e indesejada ou de contrair a SIDA. E para que nada falte, o Papa e os meios conservadores do Vaticano, com o apoio de alguns bispos portugueses, mas contra o parecer dos sectores mais moderados e lúcidos da Igreja, prepara a canonização dos «pastorinhos» de Fátima. Isto é, a reedição das aspectos mais primitivos e reaccionários do discurso mariano sobre o «milagre».

A defesa do Estado laico foi uma das bandeiras essencialmente identificadoras do nosso primeiro republicanismo, herdada pelo conjunto das esquerdas anti-salazaristas, tanto mais, quanto a Igreja católica se identificou profundamente com o Estado Novo, legitimando-o como «fruto da divina providência» junto dos crentes. Mas essa tradição seria intencionalmente silenciada durante a Revolução de 1974/75. Receosos da reedição de uma «questão religiosa» semelhante à da Iª República, com a hierarquia católica a poder apoiar os sectores anti-democráticos, o PS  e o PCP deixaram cair uma pesada pedra sobre o passado e o presente da Igreja Católica portuguesa. Qual intolerável elefante branco, a hierarquia católica nunca viu questionada a Concordata de 1940 ¾ apesar de abertamente contrária, no espírito e na letra, à Constituição de 1976 ¾ e, sobretudo, nunca sentiu necessidade, sequer, de se explicar perante a democracia portuguesa sobre o seu passado de apoio à ditadura e de silenciamento dos seus crimes e abusos, mesmo quando cometidos contra católicos oposicionistas. E talvez isso a tenha estimulado à presente ofensiva discreta, mas eficaz, no sentido de regressar, com as devidas adaptações e com muito maior liberdade de movimentos, a uma situação semelhante à que obtivera em 1940: um regime de separação concordata mas com o estatuto implícito de «religião dominante».

Ora a questão é esta: se o PS perdeu, também, e perdeu, as suas amarras ideológicas à defesa do laicismo; se o PCP está demasiado cansado, sequer, para equacionar o assunto, e estará, porque acerca dele quase nada de relevante tem dito, então são as forças novas, à esquerda, que têm de retomar, como causa, a defesa do Estado laico. Estou em crer que a próxima campanha eleitoral será uma excelente oportunidade para o fazer.


(Público)



Associação República e Laicidade