Houve quem visse e houve
quem não quisesse ver: na inauguração do comboio na Ponte 25 de Abril, durante
uma cerimónia de Estado, um alto dignitário da Igreja católica, o bispo de
Setúbal, benzeu o evento, procedeu a umas rezas e aspergiu a circunspecta e pia
assembleia, constituída pela fina flor do poder socialista. A benzedura
fazia-se, naturalmente, a pedido governamental, e integrando os fastos oficiais
do acto. O próprio Primeiro-Ministro, em público exercício de funções, secundou
as rezas e benzeu-se. Como se calculará, nada tenho contra as convicções
religiosas particulares do engº Guterres ou de quem quer que seja, mas a sua
exteriorização enquanto chefe de Governo de um Estado que é constitucionalmente
laico e, mais do que isso, a integração no protocolo da República de cerimonial
de uma confissão religiosa ¾ isso, levanta-me a maior
das perplexidades. Porque viola frontalmente o princípio constitucional da
areligiosidade do Estado e, sobretudo, atenta contra o direito fundamental à
liberdade religiosa que a laicidade de instituições públicas deveria
garantir.
Mas este foi, unicamente, o
mais recente episódio de uma série de cedências inconstitucionais por parte dos
governos cavaquistas e do engº Guterres à Igreja Católica, demonstrando a
influência e interferência crescentes daquela hierarquia religiosa nos assuntos
da governação e da política. Que a Igreja Católica queira influenciar a vida
política, admite-se como normal decorrência da sua liberdade de actuação. Que o
Estado ceda a essas pressões, violando a essência laica da sua natureza
constitucional e desrespeitando as convicções dos cidadãos com outras crenças
religiosas ou sem religião ¾ aí pisa-se o terreno das
liberdades públicas. Não há verdadeira democracia sem liberdade religiosa, isto
é, sem igualdade dos cidadãos perante a lei, também no domínio das crenças
religiosas. E aquela não existe, onde existe o Estado confessional ou
disfarçadamente confessional, situação para que parecem querer empurrar as
governações do PSD e do PS.
Senão, como interpretar os
privilégios de nomeação de docentes e financiamento de que continua a gozar o
ensino católico nas escolas públicas secundárias? Ou o escândalo do
financiamento público à Universidade Católica, situações criadas pelo tutelar da
Educação dos ministérios do PSD, o engº Roberto Carneiro, e mantidos pelo actual
Governo? E alguém já se esqueceu do vergonhoso negócio congeminado pela direcção
do PS para sabotar a aprovação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez
(IVG)?
E que dizer da legislação em
preparação sobre o financiamento das confissões religiosas? Com vista a não
tocar numa Concordata com a Santa Sé herdada do Estado Novo e claramente
inconstitucional, designadamente nas amplíssimas (e ilegais) vantagens fiscais
que confere à Igreja Católica, o Governo prepara-se para fazer precisamente o
contrário do que se esperaria que fizesse. Em vez de colocar todas as confissões
em pé de igualdade perante o Estado na base do princípio do não financiamento
público, salvo para actividades de indiscutível interesse para a colectividade,
distribui algum dinheiro a certas confissões por ele «seleccionadas», para poder
continuar a pagar muito, directamente ou pela via das isenções fiscais, à Igreja
Católica. Dinheiro público, ou seja, cobrado também aos rendimentos dos não
católicos.
Simultaneamente, fortes do
pseudo-sucesso contra a IVG, os meios católicos conservadores lançam-se numa
campanha contra os preservativos nas escolas secundárias e mandam uns meninos
protestar ao Presidente da República. Para os papás e as mamãs dos meninos a
prioridade está na «educação moral» no seio da «família» (não na educação sexual
nas escolas a que sempre se opuseram). Entretanto, enquanto não são iluminados
pelo Espírito Santo, de preferência por via familiar, os adolescentes
continuarão, todos os dias, a correr o risco de uma gravidez precoce e
indesejada ou de contrair a SIDA. E para que nada falte, o Papa e os meios
conservadores do Vaticano, com o apoio de alguns bispos portugueses, mas contra
o parecer dos sectores mais moderados e lúcidos da Igreja, prepara a canonização
dos «pastorinhos» de Fátima. Isto é, a reedição das aspectos mais primitivos e
reaccionários do discurso mariano sobre o «milagre».
A defesa do Estado laico foi
uma das bandeiras essencialmente identificadoras do nosso primeiro
republicanismo, herdada pelo conjunto das esquerdas anti-salazaristas, tanto
mais, quanto a Igreja católica se identificou profundamente com o Estado Novo,
legitimando-o como «fruto da divina providência» junto dos crentes. Mas essa
tradição seria intencionalmente silenciada durante a Revolução de 1974/75.
Receosos da reedição de uma «questão religiosa» semelhante à da Iª República,
com a hierarquia católica a poder apoiar os sectores anti-democráticos, o
PS e o PCP deixaram cair uma pesada
pedra sobre o passado e o presente da Igreja Católica portuguesa. Qual
intolerável elefante branco, a hierarquia católica nunca viu questionada a
Concordata de 1940 ¾ apesar de abertamente
contrária, no espírito e na letra, à Constituição de 1976 ¾ e, sobretudo, nunca sentiu
necessidade, sequer, de se explicar perante a democracia portuguesa sobre o seu
passado de apoio à ditadura e de silenciamento dos seus crimes e abusos, mesmo
quando cometidos contra católicos oposicionistas. E talvez isso a tenha
estimulado à presente ofensiva discreta, mas eficaz, no sentido de regressar,
com as devidas adaptações e com muito maior liberdade de movimentos, a uma
situação semelhante à que obtivera em 1940: um regime de separação concordata
mas com o estatuto implícito de «religião dominante».
Ora a questão é esta: se o PS perdeu, também, e perdeu, as suas amarras ideológicas à defesa do laicismo; se o PCP está demasiado cansado, sequer, para equacionar o assunto, e estará, porque acerca dele quase nada de relevante tem dito, então são as forças novas, à esquerda, que têm de retomar, como causa, a defesa do Estado laico. Estou em crer que a próxima campanha eleitoral será uma excelente oportunidade para o fazer.
(Público)