Numa actuação que passou praticamente despercebida à opinião púbica, os parlamentares da actual coligação conservadora PSD-CDS/PP tiveram o supremo desplante de incluir na sua proposta de revisão constitucional a supressão pura e simples da alínea b) do Artigo 288.º (limites materiais da revisão) onde se estabelece que:
“As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
a) A independência nacional e a unidade do Estado;
b) A forma republicana de governo;
c) A separação das Igrejas do Estado;
d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; (...)”,
Propunha-se desse modo introduzir a possibilidade constitucional da alteração (na sequência de referendo? por decisão do Parlamento?...) do regime republicano e a consequente possibilidade de, porventura a exemplo dos espanhóis, os portugueses poderem ver restaurada a monarquia no país.
Um acordo estabelecido entre as representações parlamentares da coligação PSD-CDS/PP e do PS veio garantir a maioria qualificada de votos necessária para legitimar mais uma revisão da Constituição da República Portuguesa, mas não permitiu, contudo, ir além de uma alteração «mínima» do nosso texto fundamental... e é assim que, por mais algum tempo, ainda iremos poder continuar constitucionalmente republicanos!
Apesar da gravidade dos aspectos envolvidos, este assunto foi ofuscado na imprensa pelos «casos sensação» do momento e, incompreensivelmente, também permaneceu ausente do/s discurso/s da oposição.
A verdade é que está em causa o «nosso» regime republicano – isto é: o regime a que aspiramos durante grande parte do século XIX, o regime que implantamos com a Revolução de 5 de outubro de 1910, o regime em que vivemos durante os períodos de liberdade de que gozamos durante o século XX (de 1910 a 1926 e de 1975 até hoje), o regime por que lutamos durante os 48 anos da ditadura (de 1926 a 1974) que então também nos subjugou – e, desse modo, aquela questão não se pode dar facilmente como encerrada.
Uma Constituição é a «espinha dorsal» do regime de um país porque nela se condensam as maiores aspirações do seu povo e porque nela se estabelecem os grandes princípios e as normas gerais que enformam a sua ordem jurídica e, assim sendo, para garantir a sua estabilidade e perenidade, uma Constituição também se deve assumir como um texto muito consistente e duradouro nos aspectos que fundam o «contrato social» que consubstancia... e, em Portugal, tal é seguramente o caso da «forma republicana de governo» cuja continuidade ora se pretendeu pôr em causa.
Desse modo, embora estejamos inteiramente de acordo com o texto da proposta de revisão constitucional da coligação PSD-CDS/PP quando nele se afirma que a Constituição Portuguesa “deve continuar a ser a depositária e a salvaguarda dos princípios fundamentais da democracia pluralista e do Estado de direito, sem entravar, e antes sendo factor e estímulo ao progresso social e económico e à continuada modernização do País, fortalecendo a sociedade civil, sem que o Estado abdique do papel que só a ele deve continuar a caber”; embora também possamos facilmente partilhar da posição daqueles partidos quando declaram que a Constituição, entendida como um “traço de união entre todos os portugueses, independentemente das suas opções políticas ou ideológicas”, “não é nem pode ser um guião ideológico datado, que se impõe e condiciona a livre vontade dos portugueses expressa através do exercício do direito de voto”, devendo antes “permitir que, consoante a vontade dos portugueses e os resultados eleitorais, se governe à direita, ao centro ou à esquerda”; embora também possamos acompanhar aquele texto quando sustenta que “Portugal não pode nem deve manter-se refém de um texto datado” e até mesmo quando, em termos práticos, propõe que, na revisão constitucional em curso, se proceda à “eliminação de um conjunto de referências ideológicas totalmente desfasadas dos nossos tempos”, temos que nos manifestar – e manifestar veementemente – contra qualquer manobra de flexibilização da actual impossibilidade constitucional de alteração das normas fundadoras que, designadamente, estabelecem a “forma republicana de governo”.
É que a “forma republicana de governo” – tal como a “separação das Igrejas do Estado” (ie: a «Laicidade» do Estado), os “direitos liberdades e garantias dos cidadãos”, bem como o “sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania” (ie: a forma «democrática» de escolha daqueles que nos devem governar), o “pluralismo de expressão e organização política”, a “independência dos tribunais”, etc. – não pode ser encarada ao mesmo nível das tais “referências ideológicas” que, mais ou menos “datadas”, mais ou menos do tipo “direita, centro ou esquerda”, devem ser passíveis de modificação simples através do voto livre e responsável dos cidadãos.
Os regimes mudam-se, quer abruptamente, pela determinação e pela força, em processos de «Revolução» – que não de «Evolução» – ou de «Golpe de Estado» apoiado na organização militar, quer de modo subtil e insidioso, através de manobras e artimanhas de gabinete que aproveitam períodos de astenia e distracção dos cidadãos.
Sob o silêncio cúmplice dos demais partidos representados na Assembleia da República, a actual maioria conservadora, ao tentar flexibilizar a norma da irrevogabilidade do princípio constitucional do regime republicano tentou, objectivamente, uma movimentação atentatória dos fundamentos do regime político que, constitucionalmente e desde há quase um século, alicerça o Estado Português. (nem Salazar se atreveu a alterar a forma republicana do Estado de que foi ditador e chamou-lhe “República Orgânica e Corporativa”!)
Na Comemoração em curso dos 30 anos da «Revolução de Abril» (1974), os sectores mais retrógrados da sociedade portuguesa tentaram fazer cair o «R» daquela «Revolução» e evocar uma qualquer «Evolução de Abril»...! Será que se preparavam também para, daqui por meia dúzia de anos, assinalar o primeiro Centenário da República Portuguesa com... a restauração da Monarquia?
25-04-2004
Luis Manuel Mateus
Enviado para o «Público» e para o «Diario de Notícias» e não publicado.