O director do «Público» julga que o Presidente faz bem em ir a Fátima. Eu discordo, por duas razões.
Em primeiro lugar, por respeito à laicidade da nossa República. É verdade que Jorge Sampaio já esteve presente em cerimónias religiosas hindus, judaicas, e muçulmanas. Também já esteve presente em cerimónias religiosas católicas, nomeadamente aquando da sua recente visita a Timor. Mas a beatificação dos pastorinhos em Fátima não é uma qualquer missa católica. As pretensas visões dos pastorinhos, pelo momento histórico em que tiveram lugar, e pelo seu conteúdo ideológico anti-republicano e anticomunista, são tudo menos politicamente neutras. Foram uma reacção contra a laicização do Estado. Como foi em ruptura com o regime fascista e católico de Salazar que o actual Estado democrático se construiu, é por isso difícil de compreender que o Presidente democraticamente eleito de uma República laica compareça no altar onde Salazar orou contra a Separação da Igreja e do Estado.
Em segundo lugar, há uma razão moral. A substância do acontecimento é a «beatificação» de duas crianças, Jacinta e Francisco, pela ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana). Isto significa que uma das várias confissões religiosas activas em Portugal passará a considerar como modelar o comportamento destas crianças, que incluiu faltar às aulas para rezar, a autoflagelação com uma corda, passar fome e sede , e beber água suja. Isto não é um exemplo a seguir por ninguém, nem é coisa que gostaríamos que quaisquer crianças portuguesas fizessem. Ao estar presente na cerimónia da beatificação, o Presidente poderá estar a caucionar este género de comportamentos, que infelizmente se repetem com frequência na Cova da Iria. Não se compreende que um Presidente que tanto tem discursado contra a iliteracia científica e contra o analfabetismo empreste a sua dignidade a cerimónias que celebram o mais pagão e inculto dos catolicismos europeus, e que são justamente um sintoma do nosso atraso cultural e científico.
Nota: esta carta de leitor foi publicada no «Público» de 16/5/2000.