O véu islâmico

O véu islâmico

 

José Ferreira Fernandes

 

 

Se é um símbolo religioso é de uma ideia religiosa inferior: a da inferioridade das mulheres. É um insulto que tem de acabar. Por decreto se for preciso

 

 

Uma lei polémica (“Nas escolas, colégios e liceus públicos, são proibidos os sinais e as vestes que manifestam ostensivamente a confissão religiosa dos alunos”) vai ser votada na Assembleia Nacional francesa na primeira semana de Fevereiro. A consequência mais importante dessa lei ­- e por isso ela foi inventada ­- é que o véu islâmico vai ser proibido nas escolas. Cientes disso, milhares de muçulmanos em vários países manifestaram-se, na semana passada, frente às embaixadas francesas.

Com o atraso que nos chegam sempre os ecos do Mundo e sendo as nossas comunidades islâmicas pequenas (comparativamente a Espanha, Bélgica, Holanda, Grã-Bretanha, Alemanha, França...) isto não deve ser tema que tire o caso Casa Pia das manchetes. Mas é questão maior: o que é que a Europa deve fazer com os seus muçulmanos fanáticos? Mesmo nós, com poucos muçulmanos e, pelo cálculo de probabilidades, ainda com menos muçulmanos fanáticos, temos interesse em pensar no assunto.

A pergunta feita linhas acima, se desviada para outras comunidades religiosas ­- o que é a que a Europa deve fazer com os seus católicos? o que deve fazer com os seus presbiterianos? ortodoxos?... ­  - tem, e ainda bem, resposta simples: deixá-los viver como eles querem. A coisa, hoje, é consensual: os Estados europeus respeitam as religiões. Na verdade, é atitude fácil porque as religiões, hoje, fazem-se respeitar. Sendo que está implícito que aqueles que puserem o pé em ramo verde, levam com a lei. Não acontece muito porque parece que já não há crentes em Odin levando no seu funeral virgens vivas até Walhalla. Nem é preciso fazer uma lei especial para os mórmons adeptos da poligamia para que um imigrante vindo de Salt Lake City saiba que não se pode casar com meia dúzia de lisboetas. Talvez por serem poucos (os imigrantes de Salt Lake City), eles são tímidos. Mas já os muçulmanos fanáticos, talvez pela força do oceano onde banham ­- isto é, os milhões de muçulmanos europeus ­-, têm uma tendência para o abuso que justifica a pergunta: o que fazer com eles?

Há ideias com que não perco muito tempo para escolher o meu lado. Bastou-me saber que o apartheid considerava os negros inferiores para eu não gostar dele. Sou contra o nazismo porque quis exterminar os judeus. Não suporto os muçulmanos fanáticos porque para eles as mulheres são inferiores. Apartheid, nazismo e islamismo radical certamente têm muito mais que se lhes diga. Mas as razões simples que referi bastam-me para ter uma visão utilitarista: qual a melhor maneira de acabar com eles?

Os franceses têm uma resposta. Foi bom ouvir o líder o Partido dos Muçulmanos de França, Mohamed Latrèche, o organizador da manifestação contra a lei, em Paris, apelar para a necessidade de “aterrorizar politicamente aqueles que nos insultam”. Foi sinal de que se fez alguma coisa contra os muçulmanos fanáticos. “Toda a acção suscita reacção. Quando se quer barrar o caminho ao fanatismo é natural que os fanáticos não gostem”, disse Régis Debray, autor do relatório que levou ao projecto de lei contra o véu islâmico nas escolas.

Eu só lamento que o politicamente correcto tenha facilitado um falso debate. Para que a medida não fosse entendida como sendo dirigida exclusivamente contra o fanatismo muçulmano deu-se-lhe um cariz religioso geral: a escola devendo ser laica não permitia nenhum símbolo religioso. Ora uma cruz ao pescoço, um "kipah" judeu à cabeça ou um crescente muçulmano ao peito podem conviver numa escola, mesmo laica. São símbolos de se pertencer a religiões respeitáveis, são afirmação sem proselitismo (isto é, sem querer impor ao outro as suas ideias).

O véu islâmico não é isso. É a afirmação da mulher como inferior. No limite, pode permitir-se que uma adulta seja masoquista o suficiente para andar a alardear a sua submissão. Admito também que na igreja ou no clube haja costumes próprios: que os sexos não se misturem ou a assembleia-geral de benfiquistas não aceite gente de azul-e-branco. É lá entre eles. Mas na escola, na escola europeia, não. Ali se formam cidadãos e cidadãs. E a base dessa formação é: somos iguais. Somos iguais, de pais deste continente ou de outro, os Martins e os Palmela, nascidos rapazes ou raparigas. Isso é assim porque é assim e para quem não o entende é assim por decreto.

Por falar em França, em 1792 também houve quem não aceitasse a “egalité”. Não importa, ela foi imposta.


(in revista «FOCUS», nº 223, 21/Jan/04)