Uma das grandes conquistas do
constitucionalismo liberal foi o fim dos privilégios e prerrogativas especiais
bem como dos estatutos privativos de pessoas, categorias sociais ou
instituições, em favor do princípio da universalidade e da igualdade de direitos
e de obrigações, estabelecidos em lei geral e abstracta. Esse princípio conta-se
hoje entre as traves-mestras do Estado de Direito. Mas o regime concordatário
entre Portugal e o Vaticano, agora renovado com a nova Concordata, reiterando o
estatuto especial da Igreja Católica em matéria de liberdade religiosa e de
relações com o Estado, constitui uma prova evidente de que subsistem ainda
algumas manifestações próprias do "Antigo regime". A Concordata significa que
a Igreja não aceita a lei geral senão na medida em que concorda fazê-lo por via
bilateral, não prescindindo de tratamento especial naquilo que lhe diz respeito.
Acima de tudo ela não admite ser considerada como uma igreja entre outras,
submetida à mesma lei. Por isso temos dois regimes em matéria religiosa, a Lei
da liberdade religiosa, para todas as demais igrejas, e a Concordata que
estabelece o regime privativo da Igreja Católica e que, ao contrário daquela,
não emana nem depende exclusivamente do legislador nacional. Mesmo quando
coincidem em boa parte, trata-se de estatutos jurídicos distintos. É certo
que a Concordata não prevalece contra a Constituição, devendo antes ser sempre
interpretada e aplicada de acordo com ela (princípio da "interpretação em
conformidade com a Constituição") e desaplicada sempre que incompatível com ela,
incluindo por violação do princípio da separação entre os Estado e as confissões
religiosas e do princípio da igualdade de tratamento. Mas a experiência com a
anterior Concordata mostra que os órgãos encarregados da guarda da Constituição
nunca se preocuparam em eliminar as suas diversas inconstitucionalidades. E a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, especialmente em matéria de ensino da
religião e moral católica a cargo do Estado, evidenciou uma orientação mais
amistosa da Concordata do que da Constituição. É evidente que a nova
Concordata está em muitos aspectos, desde logo na sua linguagem, longe da que
foi acordada entre Salazar e Pio XII, que selou a obscena solidariedade política
entre o Estado Novo e a Igreja Católica. Mas por isso mesmo bem poderia ter sido
omitida no preâmbulo da nova Concordata a infeliz homenagem à sua predecessora,
que no mínimo é uma falsificação histórica e no máximo um injúria aos muitos
que, mesmo no campo católico, denunciaram a sua iniquidade (lembre-se por
exemplo a proibição de divórcio nos casamentos celebrados sob forma canónica) e
o seu significado político. A Concordata abunda em garantias, prerrogativas
e isenções para a Igreja. Se se perdem algumas das antigas, não são poucas as
que permanecem, incluindo algumas novas, como as que respeitam à Universidade
Católica e à garantia de disponibilidade de terrenos para fins religiosos.
Especialmente relevantes são as que respeitam às numerosas isenções fiscais
(onde deixou porém de figurar a escandalosa isenção da tributação dos
rendimentos dos eclesiásticos) e ao ensino da religião e moral católica nas
escolas públicas. Neste ponto, manteve-se o regime de ensino a cargo e a
expensas do Estado, acrescentando-se agora que o ensino dessa disciplina será
feito ?sem qualquer forma de discriminação?. Não se percebe bem o que se quer
dizer com isto, ou seja, se a proibição de discriminação diz respeito às demais
religiões ou às demais matérias lectivas, o que implicaria idêntico regime de
horário e de avaliação... Já no que respeita às escolas da Igreja Católica
não existem grandes novidades, ressalvado o reconhecimento expresso da
Universidade Católica e da sua ?especificidade institucional?. Mas aqui a
Concordata é explícita em que as escolas católicas estão sujeitas à lei, no que
respeita à sua criação, graus, títulos e diplomas, pelo que continua a não
existir qualquer espaço para a invenção de um "ensino concordatário" como
"tertium genus" ao lado do ensino público e do ensino particular, oportunamente
engendrado, sem qualquer base constitucional nem concordatária, por alguns
comissários jurídicos para justificar a não submissão da Universidade Católica à
lei geral em matéria de criação de cursos, "numerus clausus", graus académicos,
etc. Um dos muitos aspectos em que a nova Concordata segue a anterior diz
respeito ao regime dos casamentos celebrados sob forma canónica, sujeitando
esses casamentos ao direito canónico e à jurisdição dos tribunais canónicos,
para efeito de validade e de anulação, dizendo-se agora porém que as sentenças
de anulação dos tribunais canónicos carecem de ser reconhecidas e confirmadas
pelos tribunais do Estado para produzirem efeitos jurídicos civis. Mesmo assim,
esse regime canónico continua a contrariar a norma constitucional segundo a qual
os casamentos canónicos só se distinguem dos civis pela forma de celebração (só
a esta se refere a Constituição), ficando porém submetidos substancialmente à
lei, ou seja, ao Código Civil e, consequentemente, à jurisdição exclusiva dos
tribunais do Estado. Especialmente lamentável e despropositado (para dizer o
menos) é o preceito segundo o qual, «celebrando o casamento canónico os cônjuges
assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às
normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas
propriedades essenciais[, bem como] o grave dever que lhes incumbe de se não
valerem da faculdade civil de requerer o divórcio» (art. 15º). Se tal formulação
era admissível no protocolo de 1975, que revogou a primitiva proibição jurídica
do divórcio (substituindo-a por essa "interdição religiosa"), já não tem nenhum
cabimento numa Concordata nova, quando esse problema já se não coloca. O Estado
é por princípio alheio à definição e cumprimento dos deveres religiosos dos seus
cidadãos, pelo que não deve associar-se à sua ?oficialização? num instrumento
jurídico bilateral subscrito por ele, porque lho não permite o princípio da
separação, sem falar, no caso concreto, do direito ao divórcio independentemente
da forma de casamento, constante da Constituição (que ainda não existia em
1975). Existem ainda outras normas, que embora reformulando normas
anteriores, podem dar lugar a situações equívocas ou melindrosas. Tal é o caso
do preceito que permite acções conjuntas da Santa Sé e do Estado Português «no
espaço dos Países de língua portuguesa» (art. 4º), o que pode parecer uma
ingerência nos seus assuntos internos; e o mesmo sucede com o preceito que
garante à Igreja a protecção estadual contra «o uso ilegítimo de práticas ou
meios católicos» (art. 7º), o que pode supor a intromissão do Estado nos
conflitos internos daquela ou na execução das suas medidas
disciplinares.