Abertura do Ano Judicial
Homilia
do Cardeal Patriarca
1. Nesta celebração, em que vós, que trabalhais no âmbito da administração da justiça, quereis dar à Abertura do Ano Judicial uma dimensão espiritual e crente, proponho-me reflectir convosco sobre um tema difícil, mas apaixonante, lançado pelo Papa João Paulo II na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, celebrado no passado dia 1 de Janeiro: a relação entre a justiça e o perdão. O Papa propõe-nos o tema, como testemunho pessoal da sua reflexão preocupada sobre as desordens e violências do mundo contemporâneo. Confessa-nos Ele: “muitas vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada? A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando-me com a reflexão bíblica, é que não se estabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão”.
A primeira reflexão que é justo fazer é que o Santo Padre tem como referência o conceito bíblico de justiça, que consiste no repor progressivamente a ordem e a harmonia desejadas por Deus para o homem e para a sociedade. Supõe a proposição positiva dos valores constitutivos dessa harmonia, porque a justiça não se promove apenas corrigindo os erros, mas supõe também a superação dos erros e dos conflitos, para que cada homem e a sociedade como um todo, continuem a ter como horizonte a plenitude da vida, da harmonia e da paz. E essa superação positiva dos fracassos, pessoais e colectivos, na perspectiva bíblica supõe o amor misericordioso que perdoa, esse perdão que recupera interiormente a dignidade do homem. Era esse o desafio lançado pelo Apóstolo Paulo aos cristãos de Corinto: “revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra o outro. Tal como o Senhor vos perdoou, assim deveis fazer vós também”. Na óptica da Sagrada Escritura, a reposição da justiça, isto é, da harmonia da ordem e da verdade, supõe necessariamente a misericórdia e o perdão.
2. Mas a questão não é fácil. Na nossa cultura e, porventura, na lógica da ordem jurídica, justiça e perdão não vão facilmente em conjunto. Fazer justiça parece contrapor-se a perdoar. Mas lembra-nos o Papa que o perdão não se opõe à justiça, mas ao rancor e à vingança. “O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências da reparação da ordem violada; mas visa, sobretudo, aquela plenitude da justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação de hostilidades, porque consiste na cura, em profundidade, das feridas que sangram nos corações. Para tal cura, ambos, a justiça e o perdão, são essenciais”.
A primeira base para que não haja oposição entre justiça e perdão é a relação entre justiça e verdade. A justiça, na sua dimensão objectiva, é a reposição da verdade ofendida, verdade da Lei desrespeitada, da dignidade ou integridade dos outros ofendida, da harmonia social perturbada. E o restabelecimento da verdade põe a claro a responsabilidade, dos culpados, das pessoas e das instituições. A verdade da justiça exige que ela seja, na medida do possível, a reposição da ordem. Mas a verdade da justiça é também a verdade interior das pessoas, das suas fraquezas, da esperança de recuperação, do sentido e motivações dos seus comportamentos. E a esse nível pode situar-se o perdão. Porque a justiça é uma dimensão do relacionamento social das pessoas, estas podem ser objectivas no repor da verdade e misericordiosas no coração, amando quem julgam ou, porventura condenam, desejando a sua recuperação, pois só então será completamente reposta a justiça. Diz o Papa: “Como acto humano, o perdão é, antes de mais, uma iniciativa individual do sujeito, na sua relação com os seus semelhantes”.
O perdão situa-se, assim, numa ordem moral das exigências do amor, que não exclui, antes completa, a objectividade da verdade. Acrescenta ainda o Santo Padre: “Só na medida em que se afirmem uma ética e uma cultura do perdão é que se pode esperar uma «política do perdão», expressa em comportamentos sociais e instrumentos jurídicos, nos quais a mesma justiça assuma um rosto mais humano”. O perdão introduzido na administração da justiça, é o sorriso da esperança dirigido a quem falhou e precisa de acreditar no caminho da dignidade recuperada.
Sendo uma atitude de pessoas para com outras pessoas, o perdão pode ter uma dimensão comunitária e social. Ouçamos ainda a Mensagem Pontifícia: “A pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma. Consequentemente o perdão torna-se necessário também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão, para restaurar os laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a tentação de excluir os outros, negando-lhes a possibilidade de apelo. A capacidade de perdão está na base de cada projecto de uma sociedade futura mais justa e solidária”.
O progresso da justiça só pode significar o avanço para uma ordem social mais harmónica e mais autêntica e isso é impossível sem acreditar no homem, sem generosidade para perdoar, fazendo de cada tentativa uma manifestação da esperança.
† JOSÉ, Cardeal Patriarca